São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2000


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Ponto de fuga

A pele da serpente

Jorge Coli
especial para a Folha

"Preencher a tela virgem de Mondrian, mesmo que seja com o nosso erro." A frase do pintor holandês Constant exprime um sentimento essencial para o grupo Cobra: negar modos de controle estritos, evitar a "frieza" de escolhas feitas sob pressão, fossem elas formais ou ideológicas. Não que a política lhes fosse indiferente. Ela devia, porém, ser vivida, em impulsos, onde a emoção subvertesse os enganos de pretensas análises objetivas.
Cobra une COpenhague, BRuxelas, Amsterdã. A sigla transformou-se na denominação expressiva de um grupo, formado por artistas que se queriam internacionais. Vieram dessas três cidades, cruzaram-se sobretudo em Paris. A eles, associaram-se outros, mais ou menos próximos. O grupo durou apenas três anos, suficientes para afirmar coerência e coesão. Seu fim, em 1951, não significou nem ruptura nem perda de intensidade nem mesmo pulverização em achados individuais.
Cobra sobreviveu a si próprio. Nutriu-se de recusas. Negava a abstração geométrica e tranquila; negava o realismo político, no seu modelo mais empobrecido, que imperava nas esquerdas; negava um surrealismo de imagens nítidas. Cresceu paralelo a outras experiências que buscavam no gesto impulsivo, nas entranhas inconscientes, a criação de um universo vital, onde o espontâneo se fizesse vigor, onde o imaginário surgisse misturado ao fluxo das formas. Assim, foram os legítimos contemporâneos da Action Painting, das metamorfoses gestuais que o surrealismo adquiria então.

Itinerário - A arte de Cobra não envelheceu em nada. Possui uma sinceridade incapaz de repetir fórmulas, e uma estranha jubilação dramática. É sem dúvida, um dos momentos visuais mais altos do século 20. Pode ser vista, em São Paulo, numa exposição essencial. Está na Pinacoteca do Estado. Parte do ano fundador, 1949, mas avança sem limites de data.
Alechinsky, que começou como tipógrafo e ilustrador, derrama-se em manchas vivas. Seu "Tinteiro de Viagem", de 1982, obra grande em papel, emprega a fluidez do acrílico para saturar de negros um mapa da China, como se a sugestão do nanquim reencontrasse o seu país de origem. Constant, com seu jeito irônico, fabrica sonhos malucos em tons espessos; Corneille levanta sua "Paisagem Dramática" com firmeza dinâmica; Appel tem um modo de controlar o gesto sem inibi-lo, para fazer brotar sua "Paisagem Humana". Há inscrições poéticas que permeiam manchas e massas coloridas, há um diálogo cerrado com mundos arcaicos, primitivos, subterrâneos, aflorando em telas e esculturas.

Escudo - Ridley Scott, um cineasta que saiu de moda? Vale voltar a "Gladiador". Um recente artigo de Fréderic Strauss, na revista francesa "Télérama", traz algumas boas chaves: "O filme é percorrido por uma estranheza difusa e profunda: mistura de eficácia e de devaneio, de energia e de melancolia, de sol e de noite. Ao modo de Maximus que, graças a Russel Crowe é, ao mesmo tempo, muito corpóreo e ausente, fantasmático, Ridley Scott consegue, de novo, como nos tempos de "Alien" e "Blade Runner", casar tensão e contemplação. (...) "Gladiator" é um filme que não tem nada para vender, nem fábula política nem lição de história nem erotismo musculoso nem entrelinhas. (...) Mesmo esse grande tema que é a morte torna-se aqui uma simples balada imaginária". Como em certos grandes "westerns", o herói não combate por sua vida, mas por seus mortos. Atravessa um mundo que possui a inconsistência transparente dos que já se foram.

Sapo - Deus, segundo Laerte, tem o seu lugar garantido dentro de uma metafísica do riso, suave e irresistível. Cem tirinhas, primeiramente publicadas na Folha, estão agora em álbum (Ed. Olho d'Água). Elas não dizem, mas Laerte já revelou que Deus sabe jogar crapô, a mais divina das combinações de cartas.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail:coli20@hotmail.com


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