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Jogo embaralhado
Como Collor e Jânio Quadros, Marina Silva encarna figura salvadora em um cenário político degradado, mas sua "doce" presença terá efeitos
mais promissores, defende
José Arthur Giannotti
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
A
senadora Marina
Silva abandona o
PT, inscreve-se no
Partido Verde e se
prepara para lançar-se como candidata à Presidência da República. De repente, todo o jogo político anterior,
que tendia a se polarizar entre
dois candidatos, se embaralha
e se torna mais imprevisível. O
que está acontecendo?
Antes explico meu vocabulário. Em geral não uso o conceito de sistema político porque
me parece muito abstrato, pois
capta antes de tudo a estrutura
das regras de um processo mais
rico. Prefiro aquele de jogo, não
no sentido da teoria dos jogos
porque, assim fazendo, cairia
nas mesmas armadilhas armadas pelo conceito de sistema.
Mas tomo "jogo" para descrever um processo real, como se
fosse uma partida de futebol. O
sistema demarca as regras; a
partida, o curso das interações
sociais; os times e partidos, os
grupos socializados.
Posso então dizer que o jogo
político brasileiro endoideceu,
deixando de cumprir as tarefas
que lhe correspondem em uma
sociedade moderna: representar interesses dos vários grupos
sociais, encená-los em um palco a ser visto e corrigido pela
opinião pública, sempre com o
intuito de reforçar e projetar
um ideal de nação.
Note-se que a implosão do
jogo pode muito bem não corresponder à destruição do sistema. Desse último ponto de
vista, as regras da política democrática continuam sendo
seguidas e os partidos têm
mantido os desempenhos esperados. Mas cada partida é um
desastre, os atores comem bola, revelam-se fantoches a
mando de caciques debochados. Qual é a qualidade de nossa democracia?
Seria longo demais fazer a
análise e a história desse derretimento. Mas me parece evidente que uma das causas foi a
vinda do PT para o centro político e o pragmatismo cada vez
mais descarado do lulo-petismo. De modo nenhum estou
isentando as oposições da responsabilidade pelo desastre,
apenas lembro que a ponta de
lança da confusão se formou
quando o PT de Lula, nas pistas
do PSDB, aderiu a uma social-democracia de cunho "neoliberal", bebeu até a última gota do
cálice das alianças envenenadas -se a política é essa sujeira,
então não há como não aderir a
ela, dizem eles- e se entregou
a tal ponto às práticas tradicionais que ressuscita os velhos
coronéis da política brasileira.
Luta política
É de esperar que, numa situação de anomia, surja uma
força nova, capaz de refazer o
sentido das jogadas. A disputa
eleitoral já está nas ruas e caminhava para um duelo entre situação e oposição, cada parte
fazendo todo o possível para
aparentar o que de fato não é.
De repente surge "santa" Marina. O que isso significa?
Costuma-se dizer que o poder corrompe. Isso tem muito
de verdade, pois reside na essência da ação política. Se no
início esta é quase sempre estimulada por ideais moralmente
impecáveis, ela se degrada ao
longo de seu exercício. Isso sobretudo porque se faz por meio
de alianças que tanto aglutinam vários atores em vista de
certos ideais como estabelecem
uma divisão entre aliados e adversários.
Pouco importa se ambas as
partes formulam esses ideais
pelas mesmas palavras, as práticas emprestam a elas sentidos
diferentes, à medida que ações,
manipulando os fundos públicos e orientando o exercício da
violência legítima, constroem
forças coletivas que sempre encobrem uma diferença larvar.
Procurando conciliar, a ação
política separa aliados e adversários. A decisão por maioria
apenas posterga, ou transfere
para outro plano, diferenças
que se mantêm conforme vão
sendo reformuladas. A luta pelo poder junta e divide.
Ora, nos últimos tempos, essa luta tanto se embaralhou que
as ações e os próprios atores
políticos estão progressivamente perdendo suas identidades. O termômetro é o presidente Lula, cujas falas e práticas contraditórias se espalham
por todas as direções.
Renovação possível
Nessa situação de derretimento das ações instituintes, se
espera que se levante um novo
ideário. Já tenho idade para ter
assistido a várias dessas irrupções salvadoras e moralizadoras: Jânio, Collor... Qual seria o
conselheiro da vez? Temia um
novo ator truculento, feroz demagogo querendo nos curar a
ferro e a fogo.
Mas veio a doce Marina Silva.
Sua presença já promete uma
renovação possível, pode tornar mais higiênico nosso jogo
político. Não me parece, até
agora, que possa vencer a eleição para a Presidência, mas
simplesmente sua atuação mobiliza novos atores, eleva o debate político, tende a reduzir os
golpes baixos e a demarcar regras e personagens.
Se fizer uma campanha de alto nível e inovadora, coloca de
vez a problemática do desenvolvimento sustentável na
agenda de qualquer governo
que resulte da próxima eleição.
E pode levantar a pergunta básica: que desenvolvimento queremos ter?
Mas que ela não caia no abismo que a espreita: uma campanha altamente centrada nos
problemas da moralidade pública desemboca, como já sabemos, na politicalha da sujeira.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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