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A linguagem da exceção
Filólogo judeu que viveu na Alemanha nazista casado com uma ariana analisa o modo como o regime contaminou a linguagem cotidiana no país
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
LTI - A Linguagem do
Terceiro Reich", de
Victor Klemperer
(1881-1960), até pode
ser tachado como mais
um livro sobre o nazismo, mas
deve-se reconhecer que ele
ocupa um lugar único nessa categoria. A razão da singularidade está na própria trajetória de
Klemperer: professor universitário especializado no iluminismo francês, filho de rabino,
convertido ao luteranismo e
que passou a quase totalidade
dos 12 anos de nazismo na Alemanha sem precisar esconder-se nem ter sido levado a um
campo de concentração.
O "privilégio" se explica pelo
fato de ele ser casado com uma
ariana, o que, pelas leis de Nuremberg, lhe dava a possibilidade de viver nas "Judenhäuser" -as casas de judeus-, nas
quais as pessoas eram submetidas a um regime brutal de trabalho escravo e proibições, mas
tinham a chance de sobreviver.
Foi só no finzinho da guerra,
após o fatídico bombardeio
aliado a Dresden, cidade onde
habitava, que o autor decidiu
aproveitar o caos que se seguiu
e o previsível colapso do nazismo para desfazer-se de sua estrela amarela e viver clandestinamente como se fosse ariano.
Privado de livros e de quase
tudo nos piores anos, Klemperer dedicou toda sua energia
intelectual a escrever seus diários, hábito que cultivava desde
1919 e manteve até 1959. Peter
Gay, biógrafo de Freud, o considerou o melhor escritor de
diários em língua alemã.
Foi assim que Klemperer
nos legou um meticuloso registro de tudo o que ocorreu à sua
volta entre a ascensão e a morte de Adolf Hitler (1889-1945).
Filólogo por formação, deu ênfase à questão da linguagem, de
como a ideologia nazista contaminou o idioma alemão e as
pessoas -incluindo judeus-
que dele se serviam.
Passada a guerra, Klemperer
optou por não publicar seus
diários (que só ganharam edições nos anos 90, mais de três
décadas após a morte do autor), preferindo usar os apontamentos para redigir a "LTI"
("Lingua Tertii Imperii", o título original é em latim).
Vale observar que a bem feita
e bem anotada edição brasileira tomou o cuidado de conservar o texto alemão nas passagens em que isso era relevante.
O olhar de um judeu
De maneira bastante hábil,
Klemperer foi capaz de dar um
sentido histórico às suas impressões, sem perder o aspecto
anedótico, o valioso testemunho de um dos poucos judeus
que puderam acompanhar de
dentro e até o fim a transformação da Alemanha sob o regime
nazista.
Sua perspectiva única nos
permite tomar conhecimento
de detalhes que passariam despercebidos pelo historiador,
como a norma que proibiu os
judeus de manterem animais
de estimação -o que resultou
no sacrifício de milhares de
cães, gatos, passarinhos etc.
Após a guerra, Klemperer e
sua mulher, Eva, voltaram para
Dresden, onde ele se tornou
destacada figura do mundo cultural da Alemanha comunista.
As análises da linguagem feitas por Klemperer são absolutamente pertinentes e nos remetem mais para o campo da
psicologia social do que o da
linguística propriamente dita.
Um exemplo curioso é o da
obsessão de Hitler -e, por conseguinte, de seus asseclas- pelo ineditismo e pela eternidade:
"qualquer insignificância que
servisse aos propósitos do regime passava a ser um ato "histórico". Qualquer discurso que o
Führer proferisse se tornava
"histórico", mesmo que ele repetisse cem vezes a mesma coisa (...) Eram "históricas" a vitória de um automóvel de corrida
e a inauguração de uma estrada, de cada estrada e de cada
trecho de estrada".
A semelhança com o discurso
de personagens contemporâneos não chega a incomodar.
Embora a mania pelo "histórico" possa fazer parte da linguagem totalitária, na análise de
Klemperer ela denota antes um
desejo do governante de mostrar-se seguro da perenidade de
suas instituições.
Para o autor, o veneno específico do nazismo vem da combinação do antissemitismo racial (por oposição ao de matriz
religiosa) com o romantismo:
"Pois tudo o que interessa ao
nazismo já está contido, em
germe, no romantismo: o destronamento da razão, a animalização do ser humano, a exaltação da ideia de poder, do predador, da besta loura...".
Por esses e muitos outros
"insights" e análises, "LTI" é
um recurso único e bastante
valioso para todos aqueles que
buscam entender como e por
que um dos mais civilizados e
cultos países da Europa caiu no
abismo em que caiu.
LTI - A LINGUAGEM DO TERCEIRO REICH
Autor: Victor Klemperer
Tradução: Miriam Bettina Paulina Oelsner
Editora: Contraponto (tel. 0/xx/
21/2544-0206)
Quanto: R$ 60 (428 págs.)
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