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Medicina utópica
Trajetória de Wilhelm Reich,
que tem novo
título lançado no país, se insere
em tradição
de cientistas
de esquerda que defenderam causas grandiosas e exóticas, como o rejuvenescimento
O apelo do rejuvenescimento, no stalinismo, procurava mostrar
o poder da ciência, inclusive sobre
a religião
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MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Recentemente lançado no Brasil, "A Biopatia do Câncer"
[WMF Martins Fontes, trad. Maya Hantower, 486 págs., R$ 79], continuação de "A Descoberta do
Orgone" [cuja primeira parte é
"A Função do Orgasmo"], ambos de autoria de Wilhelm
Reich (1897-1957), é um texto
superado do ponto de vista
científico, mesmo porque data
de 1948, mas muito significativo como documento histórico.
Diz Reich que o câncer é uma
putrefação dos tecidos causada
pela privação do prazer. Segundo ele, um hipotético "T-bacilo" (T de "Tod", morte, em alemão) seria o responsável por
esta putrefação. O "T-bacilo"
proliferaria por causa da diminuição, no organismo, do orgone, a energia cósmica.
O orgone não existe. Era um
produto de imaginação desvairada, cuja gênese vale a pena
examinar.
De uma abastada família judaica da atual Ucrânia, Reich
formou-se em medicina em
Viena, especializou-se em psiquiatria e, discípulo de Sigmund Freud, tornou-se psicanalista. Como Freud, via na
neurose o resultado de conflitos de natureza sexual; mas a
isso acrescentava um componente ideológico: a repressão
também resultaria das imposições da moral burguesa.
Reich era comunista, ainda
que heterodoxo: o partido terminou por expulsá-lo. Fugindo
do nazismo, foi para os Estados
Unidos, onde suas ideias tiveram muita repercussão. Via-se
como um revolucionário, um
contestador; sua bandeira de
luta era exatamente o orgone,
cuja existência defendeu até o
fim. Mais do que isso, inventou
um "acumulador de orgone",
uma espécie de caixa, na qual a
pessoa poderia "recarregar a
bateria".
Entre os usuários do "acumulador" estavam escritores
conhecidos, como Norman
Mailer, J.D. Salinger e William
Burroughs; mas Albert Einstein, cujo apoio Reich buscou,
não se deixou convencer.
Mais cética ainda mostrou-se a FDA, órgão governamental
[norte-americano] de fiscalização [de alimentos e medicamentos] que, em 1954, iniciou
um processo contra Reich. Numa atitude muito típica, insistiu em defender-se sozinho,
sem recorrer a advogados.
Condenado, foi encarcerado
em 1957 e morreu de ataque
cardíaco na prisão. Obras suas,
como "Análise do Caráter",
"Escute, Zé-Ninguém!", "A Revolução Sexual" e "Psicologia
de Massas do Fascismo", são
ainda lidas e mostram-no como um pensador no mínimo
original.
Ciência transcendente
O caso de Reich não é único, e
situa-o num curioso grupo de
pessoas: cientistas comunistas
ou de esquerda que a certa altura de suas trajetórias passam a
defender causas tão grandiosas
quanto exóticas. Causas que
têm um denominador comum:
propõem-se, pela utilização da
ciência e da técnica, a resolver
um problema de saúde que seja
transcendente.
Um exemplo é o de Alexander Aleksandrovich Bogdanov
(1873-1928). Nascido Alyaksandr Malinouski, em Belarus
(como muitos revolucionários,
Lênin e Stálin inclusive, trocou
de nome), Bogdanov foi médico, filósofo, escritor. Sua trajetória de contestador teve início
já na escola médica da Universidade de Moscou; preso e exilado, em 1903 uniu-se aos bolcheviques de Lênin, de quem
era ardoroso defensor.
Por causa de suas posições
excessivamente radicais foi, como Reich, afastado do partido
bolchevique. Passou a dedicar-se a pesquisas médicas, atuando também nos campos da filosofia e da economia (foi professor universitário nessa área);
fez literatura de ficção, sendo
considerado um dos pioneiros
na ficção científica.
Logo depois da revolução de
1917, fundou, junto com outros
intelectuais, o Proletkult, movimento de cultura obreira,
que, de início, recebeu o apoio
do governo comunista, e depois
foi denunciado como "burguês". Mais uma vez, Bogdanov
foi preso, acusado de conspiração. Liberado, passou a dedicar-se, em 1924, a experimentos médicos que tinham como
objetivo conseguir, por meio de
transfusões de sangue, o rejuvenescimento do organismo.
Muita gente se interessou
pelo procedimento, incluindo a
irmã de Lênin, Maria Ulianova,
que se ofereceu como voluntária para os experimentos. Bogdanov criou um instituto de hematologia e de transfusões.
Quando Lênin morreu [em
1924], ele foi chamado para,
diz-se, tentar a ressuscitação.
Morreu ao receber uma
transfusão; o sangue ou estava
contaminado (teria sido de um
jovem com malária) ou era incompatível com o seu tipo sanguíneo, coisa que à época não
era bem entendida.
Bogdanov mencionara o uso
da transfusão sanguínea na sua
futurista novela "Estrela Vermelha" (1908), que tem Marte
como cenário e na qual defende
a emancipação feminina e o
controle da sociedade pelos
trabalhadores.
Vida longa
Numa linha diferente trabalhou o contemporâneo de Bogdanov Oleksandr Oleksandrovich (ou Alexander Alexandrovitch) Bogomolets (1881-1946),
fisiologista ucraniano. Formado em medicina, Bogomolets
fez carreira universitária nas
áreas de fisiologia e patologia.
Em Kiev, fundou o Instituto
de Biologia Experimental e Patologia e o Instituto de Fisiologia Clínica Experimental; foi
membro da Academia Ucraniana de Ciências. Começou então
a estudar a questão da longevidade, fazendo pesquisas na Abkházia e na Geórgia [então
membros da União Soviética],
regiões famosas pela elevada
expectativa de vida.
Seu trabalho (descrito no livro "O Prolongamento da Vida") era apoiado pelo próprio
Josef Stálin, então dirigente da
União Soviética, que providenciou o financiamento necessário. Bogomolets injetava em cavalos uma mistura de células do
baço e de medula óssea extraídas de pessoas jovens e sadias
falecidas acidentalmente, visando à formação de anticorpos -era o soro antirreticular
citotóxico, que supostamente
reforçaria as defesas imunológicas do organismo, evitando
doenças e o envelhecimento. O
que, diga-se de passagem, nunca foi comprovado.
Mais recentemente, a tradição do rejuvenescimento e do
combate ao envelhecimento teve continuidade com a médica
romena Ana Aslan (1897-1988).
Formada em medicina, tornou-se docente na Universidade de
Tamisoara [na Romênia]. No final da década de 1940, começou a estudar os efeitos da procaína, um anestésico usado tradicionalmente pelos dentistas.
Surgiu daí um medicamento
conhecido como Gerovital H3,
usado por, entre outros, Marilyn Monroe, Marlene Dietrich, Claudia Cardinale, Kirk
Douglas, Salvador Dalí, Pablo
Picasso, Pablo Neruda, John
Kennedy, Suharto e Mao Tse-tung. Nos anos 1960, o então ditador da Romênia comunista,
Nicolae Ceaucescu, divulgou
ativamente no exterior esse
tratamento. O tratamento de
Aslan tornou-se um produto de
exportação, mas não teve o endosso da ciência médica.
Trabalhos dos anos 1970 sugeriam que o Gerovital H3 poderia ter um leve efeito antidepressivo, mas que não agia contra doenças da velhice, segundo
a conclusão de um artigo publicado em 1977 na revista da Sociedade Americana de Geriatria, que analisou dados referentes a mais de 100 mil pacientes ao longo de 25 anos. Em
1994, a FDA considerou o remédio "droga não aprovada".
O apelo do rejuvenescimento
era algo muito forte. Em um regime autoritário como era o
stalinismo, tinha outras finalidades. Primeiro, mostrar o poder da ciência, inclusive sobre a
religião: a vida eterna tornava-se dispensável. Segundo, e mais
importante, dava uma nova base ao projeto de criação de um
novo homem. O apelo dessa
proposta à imaginação de líderes e de pesquisadores revelou-se irresistível. Só que, lá pelas
tantas, a imaginação tomou
conta do projeto. Até envelhecer e morrer.
MOACYR SCLIAR é médico, escritor e membro
da Academia Brasileira de Letras.
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