São Paulo, domingo, 06 de setembro de 2009

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Medicina utópica

Trajetória de Wilhelm Reich, que tem novo título lançado no país, se insere em tradição de cientistas de esquerda que defenderam causas grandiosas e exóticas, como o rejuvenescimento


O apelo do rejuvenescimento, no stalinismo, procurava mostrar o poder da ciência, inclusive sobre a religião


MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Recentemente lançado no Brasil, "A Biopatia do Câncer" [WMF Martins Fontes, trad. Maya Hantower, 486 págs., R$ 79], continuação de "A Descoberta do Orgone" [cuja primeira parte é "A Função do Orgasmo"], ambos de autoria de Wilhelm Reich (1897-1957), é um texto superado do ponto de vista científico, mesmo porque data de 1948, mas muito significativo como documento histórico.
Diz Reich que o câncer é uma putrefação dos tecidos causada pela privação do prazer. Segundo ele, um hipotético "T-bacilo" (T de "Tod", morte, em alemão) seria o responsável por esta putrefação. O "T-bacilo" proliferaria por causa da diminuição, no organismo, do orgone, a energia cósmica. O orgone não existe. Era um produto de imaginação desvairada, cuja gênese vale a pena examinar.
De uma abastada família judaica da atual Ucrânia, Reich formou-se em medicina em Viena, especializou-se em psiquiatria e, discípulo de Sigmund Freud, tornou-se psicanalista. Como Freud, via na neurose o resultado de conflitos de natureza sexual; mas a isso acrescentava um componente ideológico: a repressão também resultaria das imposições da moral burguesa.
Reich era comunista, ainda que heterodoxo: o partido terminou por expulsá-lo. Fugindo do nazismo, foi para os Estados Unidos, onde suas ideias tiveram muita repercussão. Via-se como um revolucionário, um contestador; sua bandeira de luta era exatamente o orgone, cuja existência defendeu até o fim. Mais do que isso, inventou um "acumulador de orgone", uma espécie de caixa, na qual a pessoa poderia "recarregar a bateria".
Entre os usuários do "acumulador" estavam escritores conhecidos, como Norman Mailer, J.D. Salinger e William Burroughs; mas Albert Einstein, cujo apoio Reich buscou, não se deixou convencer. Mais cética ainda mostrou-se a FDA, órgão governamental [norte-americano] de fiscalização [de alimentos e medicamentos] que, em 1954, iniciou um processo contra Reich. Numa atitude muito típica, insistiu em defender-se sozinho, sem recorrer a advogados.
Condenado, foi encarcerado em 1957 e morreu de ataque cardíaco na prisão. Obras suas, como "Análise do Caráter", "Escute, Zé-Ninguém!", "A Revolução Sexual" e "Psicologia de Massas do Fascismo", são ainda lidas e mostram-no como um pensador no mínimo original.

Ciência transcendente
O caso de Reich não é único, e situa-o num curioso grupo de pessoas: cientistas comunistas ou de esquerda que a certa altura de suas trajetórias passam a defender causas tão grandiosas quanto exóticas. Causas que têm um denominador comum: propõem-se, pela utilização da ciência e da técnica, a resolver um problema de saúde que seja transcendente.
Um exemplo é o de Alexander Aleksandrovich Bogdanov (1873-1928). Nascido Alyaksandr Malinouski, em Belarus (como muitos revolucionários, Lênin e Stálin inclusive, trocou de nome), Bogdanov foi médico, filósofo, escritor. Sua trajetória de contestador teve início já na escola médica da Universidade de Moscou; preso e exilado, em 1903 uniu-se aos bolcheviques de Lênin, de quem era ardoroso defensor. Por causa de suas posições excessivamente radicais foi, como Reich, afastado do partido bolchevique. Passou a dedicar-se a pesquisas médicas, atuando também nos campos da filosofia e da economia (foi professor universitário nessa área); fez literatura de ficção, sendo considerado um dos pioneiros na ficção científica.
Logo depois da revolução de 1917, fundou, junto com outros intelectuais, o Proletkult, movimento de cultura obreira, que, de início, recebeu o apoio do governo comunista, e depois foi denunciado como "burguês". Mais uma vez, Bogdanov foi preso, acusado de conspiração. Liberado, passou a dedicar-se, em 1924, a experimentos médicos que tinham como objetivo conseguir, por meio de transfusões de sangue, o rejuvenescimento do organismo. Muita gente se interessou pelo procedimento, incluindo a irmã de Lênin, Maria Ulianova, que se ofereceu como voluntária para os experimentos. Bogdanov criou um instituto de hematologia e de transfusões. Quando Lênin morreu [em 1924], ele foi chamado para, diz-se, tentar a ressuscitação.
Morreu ao receber uma transfusão; o sangue ou estava contaminado (teria sido de um jovem com malária) ou era incompatível com o seu tipo sanguíneo, coisa que à época não era bem entendida.
Bogdanov mencionara o uso da transfusão sanguínea na sua futurista novela "Estrela Vermelha" (1908), que tem Marte como cenário e na qual defende a emancipação feminina e o controle da sociedade pelos trabalhadores.

Vida longa
Numa linha diferente trabalhou o contemporâneo de Bogdanov Oleksandr Oleksandrovich (ou Alexander Alexandrovitch) Bogomolets (1881-1946), fisiologista ucraniano. Formado em medicina, Bogomolets fez carreira universitária nas áreas de fisiologia e patologia. Em Kiev, fundou o Instituto de Biologia Experimental e Patologia e o Instituto de Fisiologia Clínica Experimental; foi membro da Academia Ucraniana de Ciências. Começou então a estudar a questão da longevidade, fazendo pesquisas na Abkházia e na Geórgia [então membros da União Soviética], regiões famosas pela elevada expectativa de vida.
Seu trabalho (descrito no livro "O Prolongamento da Vida") era apoiado pelo próprio Josef Stálin, então dirigente da União Soviética, que providenciou o financiamento necessário. Bogomolets injetava em cavalos uma mistura de células do baço e de medula óssea extraídas de pessoas jovens e sadias falecidas acidentalmente, visando à formação de anticorpos -era o soro antirreticular citotóxico, que supostamente reforçaria as defesas imunológicas do organismo, evitando doenças e o envelhecimento. O que, diga-se de passagem, nunca foi comprovado. Mais recentemente, a tradição do rejuvenescimento e do combate ao envelhecimento teve continuidade com a médica romena Ana Aslan (1897-1988). Formada em medicina, tornou-se docente na Universidade de Tamisoara [na Romênia]. No final da década de 1940, começou a estudar os efeitos da procaína, um anestésico usado tradicionalmente pelos dentistas.
Surgiu daí um medicamento conhecido como Gerovital H3, usado por, entre outros, Marilyn Monroe, Marlene Dietrich, Claudia Cardinale, Kirk Douglas, Salvador Dalí, Pablo Picasso, Pablo Neruda, John Kennedy, Suharto e Mao Tse-tung. Nos anos 1960, o então ditador da Romênia comunista, Nicolae Ceaucescu, divulgou ativamente no exterior esse tratamento. O tratamento de Aslan tornou-se um produto de exportação, mas não teve o endosso da ciência médica. Trabalhos dos anos 1970 sugeriam que o Gerovital H3 poderia ter um leve efeito antidepressivo, mas que não agia contra doenças da velhice, segundo a conclusão de um artigo publicado em 1977 na revista da Sociedade Americana de Geriatria, que analisou dados referentes a mais de 100 mil pacientes ao longo de 25 anos. Em 1994, a FDA considerou o remédio "droga não aprovada".
O apelo do rejuvenescimento era algo muito forte. Em um regime autoritário como era o stalinismo, tinha outras finalidades. Primeiro, mostrar o poder da ciência, inclusive sobre a religião: a vida eterna tornava-se dispensável. Segundo, e mais importante, dava uma nova base ao projeto de criação de um novo homem. O apelo dessa proposta à imaginação de líderes e de pesquisadores revelou-se irresistível. Só que, lá pelas tantas, a imaginação tomou conta do projeto. Até envelhecer e morrer.


MOACYR SCLIAR é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.


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