São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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TRECHO

da Redação

Leia a seguir um trecho de "Jogos para Atores e Não-Atores", de Augusto Boal, que está sendo relançado -em edição revista e aumentada pelo autor- pela Editora Civilização Brasileira.

AUGUSTO BOAL

Por mais que os atores devam procurar todas as vontades e contravontades nos seus personagens, deverão sempre sintetizá-las na vontade dominante, que é formada pelo conflito de todas essas vontades. Quando o ator desenvolve, em grau extremo, as vontades interiores e não as exterioriza objetivamente, corre o risco de subjetivar demasiado seu personagem, tornando-o irreal. Quando o ator se compraz em mostrar a vida interior de seu personagem, esquecendo-se da realidade objetiva, quando o conflito entre a vontade e a contravontade passa a ser para ele mais importante do que o conflito entre um personagem e outro (quer dizer, dominante de um versus dominante de outro), acaba por interpretar uma autópsia do personagem e não um personagem vivo, real, presente.
O que me parece realmente importante é que o ator tenha tempo para ensaiar cada uma das suas vontades e contravontades isoladamente, a fim de melhor compreendê-las e senti-las, como um pintor que primeiro escolhe as cores isoladas para depois misturá-las na tela. As vontades (e as idéias a que respondem, bem como as emoções que ocasionam) são as cores do ator; e ele deve poder conhecê-las, gozá-las para depois usá-las. Por isso fazíamos tantos exercícios de motivação isolada, contravontade, pausa artificial, pensamento contrário, circunstâncias opostas etc., e todos tendo por objetivo proceder a essa análise.
Mas devemos ter sempre presente que, em cada momento, há uma dominante que se impõe, mesmo que se trate de um personagem tchecoviano, impressionista, feito de mil pequenas vontades e contravontades. Sem se fortalecer a dominante, torna-se impossível estruturar o espetáculo. Por mais que se voltem para dentro, os personagens vivem para fora. Por isso, a inter-relação é fundamental.
A dominante de cada personagem, nas diferentes visões de uma mesma peça, nas diferentes concepções de diferentes diretores, dependerá naturalmente da idéia central que se estabelecer para cada versão dessa peça; mas todas as outras idéias possíveis poderão igualmente estar contidas, como vontades complementares dentro do personagem.
Um exemplo esclarecerá o assunto: de que trata a peça "Hamlet?" De um problema psicológico familiar ou de um golpe de Estado? Qual a idéia central? Ernest Jones escreveu um livro sobre "Hamlet" em que analisa a incapacidade deste para se decidir a matar o rei Cláudio. Segundo ele, há uma identidade entre Hamlet e Édipo. Hamlet, no seu subconsciente, queria matar o pai e casar com a mãe. Outro homem, no entanto, é quem realiza essas duas ações que ele queria realizar.
Hamlet identifica-se com esse homem, o rei Cláudio. Quando descobre que Cláudio é o assassino de seu pai, quer vingar-se, quer matá-lo. Mas como fazê-lo? Isso equivaleria a um suicídio. O dever filial de vingar a morte do pai luta contra o medo de matar um homem com quem se identificou subconscientemente. E Hamlet adia a execução todas as vezes que tem oportunidade de justiçá-lo. Já no final da tragédia, entretanto, quando descobre que a espada com que Laertes o feriu estava envenenada e que morrerá fatalmente, decide-se a matar Cláudio, e o faz sem qualquer hesitação, nesse mesmo instante, como se pensasse: "Já estou morto, de modo que vou me destruir completamente, neste homem, meu outro eu".
Mas Hamlet também pode ser analisado sob o ponto de vista do país e não da família, podendo-se escolher para idéia central o golpe de Estado planejado por Fortimbrás.
As duas idéias centrais (e há uma infinidade de outras possíveis) são completamente diferentes. A que for escolhida determinará as idéias centrais de cada personagem e também quais serão as dominantes, as vontades fazendo por sua vez com que todas as outras idéias e vontades possíveis apareçam como contravontades. O amor de Hamlet por sua mãe pode perfeitamente aparecer numa versão golpe de Estado da obra, assim como o ódio do povo a seus opressores (entre os quais Cláudio) pode aparecer numa versão psicanalítica. É importante determinar, a partir da idéia central escolhida, quais são as dominantes, relegando para segundo plano todas as outras possibilidades, e não fazer uma salada de idéias, vontades e emoções.



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