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LIVROS
A consciência da realidade
Em "Temporada de Caça" Russel Banks busca "centro moral" da sociedade dos EUA
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Excluídos os escritores de best
sellers, Russell Banks, 58, é provavelmente o autor americano que
manteve laços mais profícuos com
o cinema nos últimos anos.
Seu romance "O Doce Amanhã" ("The Sweet Hereafter",
1991) foi transformado num celebrado filme pelo armênio-canadense Atom Egoyan. "Temporada de Caça" ("Affliction", 1989)
passou à tela pelas mãos de Paul
Schrader, com Nick Nolte, Sissy
Spacek e Willem Dafoe. E "Rules
of the Bones" está sendo produzido pelo diretor Carl Franklyn com
roteiro do próprio autor, que também participa da produção de
"The Book of Jamaica", a ser dirigido por Bruno Barreto.
Fazendo questão de passar a
imagem de "escritor sério" em
oposição aos autores de best sellers, Banks é antes de mais nada
um "moralista" (embora recuse
o rótulo), no sentido de que seus
livros parecem preocupados sobretudo com o "estado das coisas" da sociedade americana.
Seu último romance, "Cloudsplitter" (o nome da montanha
mais alta do Estado de Nova York,
mas também uma metáfora para
aquele que dissipa as nuvens), publicado este ano, tenta lidar, segundo o autor, "de uma forma renovada e vigorosa com as nuvens
que encobrem a questão racial hoje nos Estados Unidos".
Banks está se preparando para
começar um novo romance. Acaba de escrever um libreto de ópera
para o compositor Robert Carl:
"Como a maioria dos enredos de
ópera, ele é ridículo. Tem a ver
com Mark Twain e o compositor
americano Charles Ives e tem algo
a ver com Mark Twain entrevistando Charles Ives", diz.
Folha - Você já disse que o "centro moral" do romance é o único
elemento verdadeiro e essencial
para o romancista sério. O que você entende por "centro moral"?
Russell Banks - É o que normalmente pensamos ser a visão do artista, seus valores, dizer que uma
coisa é mais importante que outra,
e isso dá forma às suas escolhas, a
como você organiza a trama e ao
sentido da história. É uma perspectiva moral que todo artista tem,
para o bem ou para o mal. Não é
nunca óbvia, nunca a mesma.
Folha - Mas você distingue de um
lado os best sellers e de outro o
que chama de romancista sério. A
impressão que dá é de que existem romances sem "centro moral".
Banks - Quando falo de romances sérios, estou me referindo aos
que não compartilham da perspectiva moral convencional da sociedade. Com muita frequência,
são antagônicos em relação a essa
perspectiva. Os best sellers tendem
a confirmar essas convenções. Daí
ser tão fácil traduzi-los e adaptá-los para o cinema.
Folha - Você se considera um escritor moralista?
Banks - Não. Isso me soa como
se eu fosse didático. Não é assim
que eu vejo as coisas. Mas tenho a
noção do que é certo e do que é
errado, de quem sofre e quem não
sofre, e por que razão. Acho que a
maioria dos escritores sérios tem
essa noção. O mundo reflete isso
inevitavelmente. O romance sério
não é apenas uma fantasia, como
grande parte da ficção popular.
Folha - Em "O Doce Amanhã",
tem-se a impressão de que sua
maior obsessão é com a corrupção
de um núcleo familiar original e
também dos lugares, como uma
pequena cidade sendo destruída
pelos atos dos homens. Você diria
que o seu ponto de vista é conservador, no sentido de almejar manter as coisas do jeito que são, ou
foram, numa origem idealizada?
Banks - Não acho que eu seja
nostálgico nesse sentido. Mas
acredito que o que destrói as cidades tanto em "O Doce Amanhã"
como em "Temporada de Caça"
são valores materiais, que envolvem cobiça e o desejo pelo controle dos outros. Os valores espirituais ou a antiga necessidade de
proteger os outros que são mais
fracos do que nós ficam de lado
nas duas histórias.
Folha - O que impressiona um
leitor estrangeiro é como grande
parte da literatura americana
atual parece só conseguir falar da
família, muito mais do que as literaturas de outros países.
Banks - Pelo que conheço,
comparada à literatura francesa ou
inglesa, é isso mesmo o que ocorre. A sociedade e a literatura costumam ficar obcecadas pelo que parece perdido, ou ao menos misterioso e problemático. Num país recém-criado, a literatura normalmente fica obcecada pela identidade nacional. Os Estados Unidos do
final do século 20 estão profundamente conscientes da perda da família, mas não sabem ainda como
medir essa perda ou mesmo avaliar se ela é real e definitiva. Escrevemos sobre o que é problemático.
Você não escreve sobre o que já lhe
é seguro ou conhecido.
Folha - Em "O Doce Amanhã" há
um caso de incesto, de um pai molestando a filha. É algo que se tornou uma obsessão recente no imaginário americano. Como você explica esse interesse súbito da sociedade americana?
Banks - Estamos diante de um
acontecimento cultural muito
profundo, quase num nível antropológico. Temos apenas uma ligeira consciência disso. Nos últimos
50 anos mais ou menos, a sociedade americana vem transformando
as crianças em consumidores. A
família americana não é forte o suficiente para proteger as crianças
disso. Nos últimos 20 anos, expandiu-se rapidamente uma terrível e
alienante linha divisória entre
crianças e adultos, quase como se
fossem duas espécies diferentes.
Isso provoca uma grande angústia e culpa e acaba tendo conotações sexuais também, porque uma
das formas de transformar as
crianças em consumidores é erotizando-as. Acredito que haja hoje,
na nossa sociedade, mais do que
nunca, muito mais incesto e abuso
sexual de crianças. Estamos falando de um fenômeno social real.
Não é fantasia. É um fato sociológico. É lógico que pode haver histerias e fantasias, mas isso não
quer dizer que a incidência não seja verdadeira.
Folha - Ao escrever, você leva em
conta as tendências que atormentam o imaginário americano?
Banks - Não. É provavelmente
inconsciente. Não acompanho essas tendências. Trabalho com o
meu próprio entendimento do
mundo que me cerca. Não tenho
nem mesmo consciência das tendências. Acabo de publicar um
longo romance histórico, que me
tomou anos de trabalho, e de repente vejo que um monte de outros romances históricos foi publicado recentemente. Conheço alguns desses autores e sei que trabalhamos de maneira totalmente
independente, sem que um soubesse o que o outro estava escrevendo. Não dá para pensar nisso.
Qualquer um que pensar nesse tipo de coisa estará cometendo um
grande erro como escritor.
Folha - Você escreveu num artigo
que "devemos amar a verdade" e
que "nós que detemos o poder devemos proteger os que não o têm".
Você realmente acredita que isso
seja possível?
Banks - Acredito. Mas tem de
começar no nível pessoal, no cotidiano. Essas duas declarações são
de fato o meu catecismo pessoal.
São de certa forma uma releitura
bíblica: "Ame Deus acima de tudo" e "não faça com os outros o
que não quer que façam com você". Se todo mundo conseguisse
fazer isso no seu cotidiano, a sociedade refletiria esses valores.
Folha - Você é cristão?
Banks - Não. Fui criado como
cristão, mas não sou cristão. Não
pratico nenhuma religião.
Folha - O que você pensa de uma
filósofo como Nietzsche, que reflete sobre essas mesmas questões,
mas de maneira bem diferente?
Banks - Nietzsche pode ser tão
facilmente usado para justificar
atos e atitudes que considero hediondos que, do meu ponto de vista, não é um grande salto de
Nietzsche para o fascismo. Nunca
me senti à vontade com suas divagações filosóficas.
Folha - Quem são os seus filósofos e escritores preferidos?
Banks - Quando era jovem, estudei muita filosofia, com a maior
curiosidade, e continuo lendo,
mas não como um crente ou um
seguidor. Tenho muito interesse
pela filosofia da linguagem, que
analisa as limitações e as possibilidades da linguagem. Gosto de Heidegger, por exemplo, ou Wittgenstein. Quando era jovem, fui
muito interessado pela fenomenologia. Mas, sempre que me interesso por um filósofo, leio tanto que o
trabalho dele acaba se tornando rígido e codificado, e eu acabo dando para trás. Admiro muito alguns
autores americanos contemporâneos, como Don DeLillo, Toni
Morrison e Robert Stone.
Folha - Você vê alguma semelhança entre o que faz e esses autores que citou?
Banks - Muitas. Somos todos
escritores que chegamos à maturidade nos anos 60 e a uma maturidade artística nos anos seguintes.
Temos uma perspectiva mais social, e politicamente ela é ao mesmo tempo mais acabada e vigorosa
do que a da geração anterior.
Folha - Você concordaria que o
seu "centro moral" é a culpa?
Banks - Não sei. A culpa para
mim não é realmente uma questão
moral, mas um aspecto psicológico dos personagens. É verdade que
a maioria dos meus personagens
sofre o ônus da culpa de um jeito
ou de outro. Mas eu diria que o tema moral que atravessa toda a minha obra é o da responsabilidade
sobre os próprios atos. A maior
parte dos meus personagens lida
com isso. A clareza, a inteligência e
a honestidade com que podem lidar com isso determinam em alto
grau o seu credo. Acho que esse é o
problema central da maior parte
do meu trabalho.
AS OBRAS
Temporada de Caça - Russell Banks. Tradução de Geni Hirata. Ed. Record (r. Argentina,
171, CEP 20921-380, RJ, tel.
021/585-2000). 432 págs. R$
28,00.
O Doce Amanhã - Russell
Banks. Tradução de Ricardo Silveira. Ed. Record. 240 págs. R$
19,00.
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