São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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LIVROS

A consciência da realidade

Em "Temporada de Caça" Russel Banks busca "centro moral" da sociedade dos EUA
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Excluídos os escritores de best sellers, Russell Banks, 58, é provavelmente o autor americano que manteve laços mais profícuos com o cinema nos últimos anos.
Seu romance "O Doce Amanhã" ("The Sweet Hereafter", 1991) foi transformado num celebrado filme pelo armênio-canadense Atom Egoyan. "Temporada de Caça" ("Affliction", 1989) passou à tela pelas mãos de Paul Schrader, com Nick Nolte, Sissy Spacek e Willem Dafoe. E "Rules of the Bones" está sendo produzido pelo diretor Carl Franklyn com roteiro do próprio autor, que também participa da produção de "The Book of Jamaica", a ser dirigido por Bruno Barreto.
Fazendo questão de passar a imagem de "escritor sério" em oposição aos autores de best sellers, Banks é antes de mais nada um "moralista" (embora recuse o rótulo), no sentido de que seus livros parecem preocupados sobretudo com o "estado das coisas" da sociedade americana.
Seu último romance, "Cloudsplitter" (o nome da montanha mais alta do Estado de Nova York, mas também uma metáfora para aquele que dissipa as nuvens), publicado este ano, tenta lidar, segundo o autor, "de uma forma renovada e vigorosa com as nuvens que encobrem a questão racial hoje nos Estados Unidos".
Banks está se preparando para começar um novo romance. Acaba de escrever um libreto de ópera para o compositor Robert Carl: "Como a maioria dos enredos de ópera, ele é ridículo. Tem a ver com Mark Twain e o compositor americano Charles Ives e tem algo a ver com Mark Twain entrevistando Charles Ives", diz.

Folha - Você já disse que o "centro moral" do romance é o único elemento verdadeiro e essencial para o romancista sério. O que você entende por "centro moral"?
Russell Banks -
É o que normalmente pensamos ser a visão do artista, seus valores, dizer que uma coisa é mais importante que outra, e isso dá forma às suas escolhas, a como você organiza a trama e ao sentido da história. É uma perspectiva moral que todo artista tem, para o bem ou para o mal. Não é nunca óbvia, nunca a mesma.
Folha - Mas você distingue de um lado os best sellers e de outro o que chama de romancista sério. A impressão que dá é de que existem romances sem "centro moral".
Banks -
Quando falo de romances sérios, estou me referindo aos que não compartilham da perspectiva moral convencional da sociedade. Com muita frequência, são antagônicos em relação a essa perspectiva. Os best sellers tendem a confirmar essas convenções. Daí ser tão fácil traduzi-los e adaptá-los para o cinema.
Folha - Você se considera um escritor moralista?
Banks -
Não. Isso me soa como se eu fosse didático. Não é assim que eu vejo as coisas. Mas tenho a noção do que é certo e do que é errado, de quem sofre e quem não sofre, e por que razão. Acho que a maioria dos escritores sérios tem essa noção. O mundo reflete isso inevitavelmente. O romance sério não é apenas uma fantasia, como grande parte da ficção popular.
Folha - Em "O Doce Amanhã", tem-se a impressão de que sua maior obsessão é com a corrupção de um núcleo familiar original e também dos lugares, como uma pequena cidade sendo destruída pelos atos dos homens. Você diria que o seu ponto de vista é conservador, no sentido de almejar manter as coisas do jeito que são, ou foram, numa origem idealizada?
Banks -
Não acho que eu seja nostálgico nesse sentido. Mas acredito que o que destrói as cidades tanto em "O Doce Amanhã" como em "Temporada de Caça" são valores materiais, que envolvem cobiça e o desejo pelo controle dos outros. Os valores espirituais ou a antiga necessidade de proteger os outros que são mais fracos do que nós ficam de lado nas duas histórias.
Folha - O que impressiona um leitor estrangeiro é como grande parte da literatura americana atual parece só conseguir falar da família, muito mais do que as literaturas de outros países.
Banks -
Pelo que conheço, comparada à literatura francesa ou inglesa, é isso mesmo o que ocorre. A sociedade e a literatura costumam ficar obcecadas pelo que parece perdido, ou ao menos misterioso e problemático. Num país recém-criado, a literatura normalmente fica obcecada pela identidade nacional. Os Estados Unidos do final do século 20 estão profundamente conscientes da perda da família, mas não sabem ainda como medir essa perda ou mesmo avaliar se ela é real e definitiva. Escrevemos sobre o que é problemático. Você não escreve sobre o que já lhe é seguro ou conhecido.
Folha - Em "O Doce Amanhã" há um caso de incesto, de um pai molestando a filha. É algo que se tornou uma obsessão recente no imaginário americano. Como você explica esse interesse súbito da sociedade americana?
Banks -
Estamos diante de um acontecimento cultural muito profundo, quase num nível antropológico. Temos apenas uma ligeira consciência disso. Nos últimos 50 anos mais ou menos, a sociedade americana vem transformando as crianças em consumidores. A família americana não é forte o suficiente para proteger as crianças disso. Nos últimos 20 anos, expandiu-se rapidamente uma terrível e alienante linha divisória entre crianças e adultos, quase como se fossem duas espécies diferentes.
Isso provoca uma grande angústia e culpa e acaba tendo conotações sexuais também, porque uma das formas de transformar as crianças em consumidores é erotizando-as. Acredito que haja hoje, na nossa sociedade, mais do que nunca, muito mais incesto e abuso sexual de crianças. Estamos falando de um fenômeno social real. Não é fantasia. É um fato sociológico. É lógico que pode haver histerias e fantasias, mas isso não quer dizer que a incidência não seja verdadeira.
Folha - Ao escrever, você leva em conta as tendências que atormentam o imaginário americano?
Banks -
Não. É provavelmente inconsciente. Não acompanho essas tendências. Trabalho com o meu próprio entendimento do mundo que me cerca. Não tenho nem mesmo consciência das tendências. Acabo de publicar um longo romance histórico, que me tomou anos de trabalho, e de repente vejo que um monte de outros romances históricos foi publicado recentemente. Conheço alguns desses autores e sei que trabalhamos de maneira totalmente independente, sem que um soubesse o que o outro estava escrevendo. Não dá para pensar nisso. Qualquer um que pensar nesse tipo de coisa estará cometendo um grande erro como escritor.
Folha - Você escreveu num artigo que "devemos amar a verdade" e que "nós que detemos o poder devemos proteger os que não o têm". Você realmente acredita que isso seja possível?
Banks -
Acredito. Mas tem de começar no nível pessoal, no cotidiano. Essas duas declarações são de fato o meu catecismo pessoal. São de certa forma uma releitura bíblica: "Ame Deus acima de tudo" e "não faça com os outros o que não quer que façam com você". Se todo mundo conseguisse fazer isso no seu cotidiano, a sociedade refletiria esses valores.
Folha - Você é cristão?
Banks -
Não. Fui criado como cristão, mas não sou cristão. Não pratico nenhuma religião.
Folha - O que você pensa de uma filósofo como Nietzsche, que reflete sobre essas mesmas questões, mas de maneira bem diferente?
Banks -
Nietzsche pode ser tão facilmente usado para justificar atos e atitudes que considero hediondos que, do meu ponto de vista, não é um grande salto de Nietzsche para o fascismo. Nunca me senti à vontade com suas divagações filosóficas.
Folha - Quem são os seus filósofos e escritores preferidos?
Banks -
Quando era jovem, estudei muita filosofia, com a maior curiosidade, e continuo lendo, mas não como um crente ou um seguidor. Tenho muito interesse pela filosofia da linguagem, que analisa as limitações e as possibilidades da linguagem. Gosto de Heidegger, por exemplo, ou Wittgenstein. Quando era jovem, fui muito interessado pela fenomenologia. Mas, sempre que me interesso por um filósofo, leio tanto que o trabalho dele acaba se tornando rígido e codificado, e eu acabo dando para trás. Admiro muito alguns autores americanos contemporâneos, como Don DeLillo, Toni Morrison e Robert Stone.
Folha - Você vê alguma semelhança entre o que faz e esses autores que citou?
Banks -
Muitas. Somos todos escritores que chegamos à maturidade nos anos 60 e a uma maturidade artística nos anos seguintes. Temos uma perspectiva mais social, e politicamente ela é ao mesmo tempo mais acabada e vigorosa do que a da geração anterior.
Folha - Você concordaria que o seu "centro moral" é a culpa?
Banks -
Não sei. A culpa para mim não é realmente uma questão moral, mas um aspecto psicológico dos personagens. É verdade que a maioria dos meus personagens sofre o ônus da culpa de um jeito ou de outro. Mas eu diria que o tema moral que atravessa toda a minha obra é o da responsabilidade sobre os próprios atos. A maior parte dos meus personagens lida com isso. A clareza, a inteligência e a honestidade com que podem lidar com isso determinam em alto grau o seu credo. Acho que esse é o problema central da maior parte do meu trabalho.

AS OBRAS

Temporada de Caça - Russell Banks. Tradução de Geni Hirata. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 432 págs. R$ 28,00.

O Doce Amanhã - Russell Banks. Tradução de Ricardo Silveira. Ed. Record. 240 págs. R$ 19,00.



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