São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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LIVROSPRIMEIRA LEITURA

Tu e eu (e todos)afrancesados

Leia trecho do livro "Prosa e Circunstância", em que Enrique Lynch defende a ironia como antídoto ao esvaziamento da crítica

O que se chama hoje "crítica" é só um estilo, o modelo do ensaísmo francês, validado pelos americanos e alemães e copiado com melhoras pelos italianos


da Redação

Leia a seguir trecho do livro "Prosa e Circunstância" (Ed. Campus, tradução de Márcia Paredes, 168 págs., R$ 33,00), do filósofo argentino Enrique Lynch, que também é professor de estética da Universidade de Barcelona (Espanha).

ENRIQUE LYNCH


Às vezes, nos assalta a peregrina idéia de que o pensamento crítico acabou. Out. Fini. Kaput.
Examinas os livros que se lêem ou a lista dos que se vendem (vamos supor que seja o mesmo) e ficas com o coração na mão: a alternativa se coloca entre um discurso edificante, estranha hibridação do tradicional engenho hispânico e Dale Carnegie; e outro discurso, não menos edificante que o anterior, que se satisfaz em divulgar o já divulgado pela "Ilustração" e que, para teu assombro, faz um sucesso descomunal.
Como é óbvio, não se trata disso, senão de algo que seja mais beligerante. Procuras, então, no meio do rigorismo casposo da filosofia acadêmica em suas diferentes versões -analítica, neokantiana, filológica ou agora também deleuzobataillofoucaultiana (meu Deus, que salada indigesta!)- e de imediato não te convencem. Há algo no modo de vida dessas idéias burocratizadas que as torna ilegítimas na hora de aspirar à condição de pensamento crítico. Não vês compatível a crítica com o contracheque, discriminado em salário e benefícios, e com obrigações administrativas tais como as bancas, os exames e as qualificações. Se, por outro lado, te voltas para alguma das muitas variantes da filosofia para, extra ou subacadêmica, digamos, a de jornal ou de simpósio internacional ou de mesa-redonda, algumas mais honestas ou autênticas que outras, tudo te soa demasiado público e festivo para ser admitido como discurso crítico.
No contexto de uma cultura corporativista, a distinção entre uma filosofia de universidade e outra feita fora da universidade é bastante filistéia. Lembremos que nossa sociedade chegou à condição que os frankfurtianos denominavam "mundo administrado", na qual é impossível escapar a uma lista: todo mundo, sem exceção, tem ou deseja ou figura em uma lista. Quem goza hoje da independência espiritual de um capitalista como Schopenhauer ou de um paranóico como Nietzsche? Quem pode sequer acercar-se de sua potência crítica?
O que se chama "crítica" entre nós é somente um estilo, e do estilo, o modelo do ensaísmo francês, convalidado pelos norte-americanos e pelos alemães e copiado com as consabidas melhoras pelos astutos italianos, que tudo copiam e reproduzem melhor ainda que o original. Somente os ingleses resistem -veja-se o grande escândalo provocado pelo "honoris causa" de Cambridge a Derrida-, mas não sabemos se o fazem por pura teimosia, assim como insistem em circular pela mão contrária, ou por inadequações profundas e irremediáveis de suas estruturas sintáticas.
O que tem de peculiar esse estilo afrancesado? Antes de mais nada, seu aparente senso comum: esgotada toda possibilidade de explicação, já que faz mais de cem anos que tudo parece ter sido explicado, que sentido há em propor a crítica de algo ou em sequer suscita um questionamento que não seja, no fundo, retórico? Trata-se, pois, de produzir teoria ou autoconsciência estilística, soltar muitas palavras, deixar que se disseminem sem nenhum parâmetro e sem estratégia, colaborando na consolidação de uma razão contemporânea que no final se torna eminentemente cínica; e de não se preocupar com isso; no final, a crítica da razão cínica estará a cargo de algum francês (Glucksmann) ou então de algum afrancesado (Sloterdijk).
O estilo do "pensamento crítico" afrancesado é algumas vezes elevado e severo, como quando se torna hermenêutico e se ocupa de questões transcendentes e/ou nobres, como "a sobrevivência do mito" ou "a cultura da palavra", "o tempo da memória" ou "a memória do tempo", e, outras vezes, quando aparece mais pícaro e estimulante, se expressa como semiologia pura e simples, o discurso que simula explicar algo quando, na realidade, assim como fazem a publicidade ou os livros de semiótica de Umberto Eco, limita-se a rotular com grande exibição técnica e eloquência persuasiva o que todos nós fazemos de modo mais ou menos espontâneo, felizmente inconscientes, ou, quando muito, a reformular o que já estava classificado por Aristóteles (a última "trouvaille" de Eco foi proclamar que o século 21 verá uma Europa inevitavelmente mestiça; mas, por acaso, já não o éramos e não o fomos sempre?).
É muito difícil combater isso e, por conseguinte, é muito difícil pensar em um futuro para o pensamento crítico. A hermenêutica ou a semiologia à francesa não têm nada de nocivo "per se", podem inclusive ser brilhantes. Seu mal não é a eficácia com que esgrimem seus argumentos fúteis, seu blablablá que brilha entre as luzes de néon e os sons de alta fidelidade, senão o efeito que produzem seus semantemas. A satisfação racional que proporcionam costuma ser muito efêmera e, pelo resultado, lembra a recompensa que se obtém dos videogames (e admito que a esta observação cabe também a acusação de ser pouco crítica e inequivocamente semiológica).
De fato, as metas racionais que a teoria afrancesada costuma apresentar são sempre fugazes, tanto que não alcançá-las nunca é traumático para o leitor: se não entendes um discurso afrancesado, se não consegues admitir nenhuma de suas idéias, não importa, tornas a tentar até que consigas, ou inventas. Assim como numa partida de videogame, seus enunciados encerram ou sancionam um sentido puramente virtual que nunca se tornará efetivo e que por conseguinte não te compromete e tampouco compromete os que os escutam. É o típico discurso que te soa bem com determinados signos e igualmente bem com os mesmos signos, porém invertidos, e nem em um nem em outro caso te convence e, por outro lado, seduz e fascina o próximo, convidando-o a formar uma escola.
Há que resignar-se a que prolifere essa maneira de pensar, para a qual, no entanto, contribuímos com maior ou menor carga de culpa. Escrevi muitas páginas afrancesadas, traduzi, prefaciei, introduzi no mundo de fala hispânica e convidei para conferenciar muitos afrancesados.
Mas às vezes tem-se impulsos nostálgicos e pensa-se que poderia haver, ou que deveria haver, algum pensamento crítico; ou, se não, que alguém deveria tentar refundá-lo, que é preciso desmantelar o que a muitos -e com alguma razão- parece farsa. E pergunta-se: por que é tão difícil encontrar algo semelhante?
A resposta a essa pergunta é incerta. Talvez o problema esteja em que a crítica é incompatível com a índole de nossas sociedades abertas, que em seu narcisismo premiam, estimulam ou promovem a autoflagelação de nossas consciências, ao amparo de um modelo de tolerância da mídia que tudo autoriza. O que é a regra do "politically correct" (politicamente correto) senão a sanção de um estado de vigilância ou "police de moeurs" (policiamento dos costumes) e, em definitivo, de crítica constante, esgrimido como um princípio popperiano de falsidade que submete tudo, absolutamente tudo, e o tempo todo, à crítica e à revisão? Assim se explica que falar à maneira crítica, seja como for, seja onde for, já não produza nenhuma revolta e, ao contrário, se transforme em cantilena conhecida para alimentar a chamada "cultura do ressentimento".
Nem mesmo o discurso que anseia por recuperar os lemas revolucionários se salva da ditadura da tolerância da mídia: as bobagens que escreve o chamado subcomandante Marcos soam como preceitos incendiários porque nos chegam diretamente da umidade da selva e através de um gorro que só nos permite ver seus olhos e seu nariz, mas se os lês com cuidado, verás que transmitem a velha pedagogia da esquerda que remonta ao padre Mariana, e também eles, de tão rotineiros, sucumbem ao temido efeito de redundância e, em seguida, à Grande Confusão: tão "crítica" parece (ou se pretende) uma coluna de opinião de Eduardo Galeano, denunciando pela enésima vez o imperialismo norte-americano, quanto um epigrama do chamado subcomandante Marcos ou um painel publicitário da Benetton. E são inofensivas tanto uma quanto outra; todas elas banais, ao estilo do proselitismo direto e de golpe baixo que praticam, e todas dependentes da chamada imprensa livre, que lhes fornece o mesmo suporte intranscendente.
Infelizmente, subversivas de verdade -e portanto críticas- são apenas as ações terroristas e, ainda mais, se planejadas e executadas com crueldade. Mas, claro, não se trata disso; não, pelo amor de Deus.

o estigma do anacronismo
Talvez o problema esteja em que o discurso crítico não encontra uma via eficaz de expressão porque ocorre sempre muito ligado ao destino do objeto a que se dedica. Se admitirmos que a natureza permanece virtualmente inalterada e que somente a cultura está viva (Hegel), toda crítica ou filosofia da cultura traz consigo o estigma de sua necessária desatualização pelo simples motivo de que a cultura se modifica sem parar. Tomemos o caso do marxismo, que serviria de autêntico paradigma de uma "filosofia da cultura": eis aqui um pensamento crítico que envelheceu sem remédio. O modo como se tornou anacrônico não pode ser mais característico.
Tudo acontece como se a possibilidade de uma crítica da cultura estivesse condenada a transitar por um dos caminhos que foram igualmente fatias para o marxismo. Ou bem há de permanecer colada a um vocabulário e relacionada a uma circunstância presente determinada, o que forçosamente a faz perder suas referências históricas e a torna ininteligível para as gerações futuras; ou bem acompanha pontualmente a evolução de seu objeto e ao cabo de algum tempo se converte em ideologia dominante ou em simples expressão da má consciência pequeno-burguesa.
Neste processo, que foge ao seu controle, toda a força ou a contundência de sua capacidade crítica, seu componente de revolta, acaba sendo substituído ou imitado por modos às vezes bastante sofisticados de autocomplacência ou de cumplicidade com o ocorrido. Acredita estar confrontada com o real, e, entretanto, é sua maior aliada. Assim, o marxismo ou a chamada ideologia do movimento trabalhador se dissolveu na sociologia de Touraine ou no samaritanismo progressista das chamadas ONGs ou nessa espécie de apostolado do absoluto de base pseudocientífica que professam os ecologistas.
Variantes do que o Unabomber sagazmente identifica e denuncia como esquerdismo e que, em relação à sua essência crítica original, nada conservam de autêntico. Parecem-se tristemente a esses mitos e dramas nobres que, de tanto serem levados à cena nos teatros, acabam degenerando em mera ficção e, mais cedo ou mais tarde, aparecem como farsa em algum programa de fim de ano da Rádio e Televisão Espanhola.
Pode ser que para algum incauto, em algum lugar ou em alguma ocasião, esses vagos projetos redentoristas estejam legitimados, pode ser que seu tom apocalíptico ou ameaçador se identifique erroneamente com o discurso da crítica, mas, assim como os dirigentes sindicais da social-democracia, o certo é que já não assustam ninguém. O valor performático de suas palavras é nulo.
Nulo foi e é o poder crítico do discurso afrancesado, como já se deixava ver nos mentores espirituais de 68, responsáveis pelo maior marasmo de toda a história da cultura na França. O mesmo sucede a todos os seus representantes, de Barthes em diante. Deixam à mostra o arcabouço meramente argumentativo de seu pensamento, ao mesmo tempo em que presumem desarticular ou desvelar a estrutura retórica dos discursos que se propõem criticar. Como Foucault. Por isso, são tão fáceis de imitar ou de emular, por isso ganham tantos adeptos e fazem proliferar os estilos epigônicos e subsidiários. Não havia crítica na chamada revolta de Maio de 68: por isso é a única "revolução" em que não houve mortos. E havia algo na penúria de Debray em Camiri: o único guerrilheiro célebre na História Universal da Guerrilha que conseguiu ser libertado pela pressão e influência de seu meio familiar.
Fim, pois, da crítica; e razão para que não te ocorra nada que criticar. Isso sim, chegas a entender que o "desideratum" não passa por uma refundação do pensamento crítico, nem por nenhum retorno -nem a Bachofen, nem a Schelling, nem a Spengler, nem a Jung ou a Léon Bloy, nem sequer ao pensamento reacionário de mentes inquietantes como Joseph de Maistre, admirado pelo meu admirado Carl Schmitt e revisitado às vezes por Cioran-, senão precisamente por um giro estilístico. Só se combate um estilo eficazmente com um estilo melhor, ou mais eficiente ou mais brilhante, tal como propunha Nietzsche. Talvez necessitemos reivindicar o poder corrosivo da ironia, mesmo que seja somente literária.
Que seja, pois, contra a alternativa aniquiladora que nos obriga a optar entre o esquerdismo domesticado de Bataille ensinado na universidade e o panglossismo da mídia, promotor do "common sense": Longa vida à ironia! (dito com ironia, claro!).



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