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O narrador camaleão
Um insólito assalto a banco é o tema de "Dinheiro Queimado", novo romance de Ricado Piglia
CRISTOVÃO TEZZA
especial para a Folha
Em uma cena do clássico "O
Idiota" (1868), de Dostoiévski, a
imprevisível Nastassia Filipovna
joga ao fogo um pacote com 100
mil rublos para testar o pretendente Gânia -que não se humilha
a ponto de salvar o dinheiro, mas
desmaia. "Ele ainda tem mais
amor próprio que amor ao dinheiro", diz Nastassia. Este teste dramático é uma ilustração cristalina
da força do dinheiro como medida
de todas as coisas na nossa cultura
civilizada. Cem anos depois, a cena se repetirá de fato, com outros
atores e outros objetivos. Desta
vez será meio milhão de dólares,
que três bandidos encurralados
resolvem queimar, nota a nota,
antes da morte que se avizinha a
tiros, num pequeno apartamento
cercado por 300 policiais.
A partir deste fato real acontecido nos idos de 1965, o escritor argentino Ricardo Piglia escreveu o
romance "Dinheiro Queimado",
que a Companhia das Letras acaba
de lançar, narrando um assalto a
banco numa província de Buenos
Aires. O assalto dá certo, mas os
bandidos resolvem fugir sem repartir o dinheiro com os sócios.
Afinal, cerca de 40 dias depois, numa sucessão de acasos, sobrarão
apenas três deles, concentrados
em Montevidéu, no Uruguai numa absurda resistência. Se a história real já é por si insólita e atraente, a sua reconstrução literária resultou irresistível.
Como se trata de obra rigorosamente baseada em fatos reais, a
primeira referência que nos vem à
mente é o célebre romance do
americano Truman Capote, "A
Sangue Frio", de 1965, também
relato de um crime, que inaugurou o "documentário ficcional",
uma espécie de cruzamento da literatura com o jornalismo. Mas
enquanto Capote quer chegar à
utopia da "objetividade pura",
sob um narrador neutro e frio, Ricardo Piglia constrói uma narração complexa, que retrabalha os
dados concretos do episódio (pesquisados nas mais diversas fontes
da época), assimilando camaleonicamente os diferentes pontos de
vista, vozes sociais, intenções, sotaques e universos de referência,
que vão passando, sem cortes, de
um a outro. O narrador de Piglia
absorve como por osmose a linguagem daqueles que retrata.
Num momento, pensamos como os assaltantes: "Não há nada
pior do que a véspera (...), a pessoa
vira vidente, tem visões, qualquer
coisa parece um sinal de má sorte,
um alcaguete à cata de movimentações estranhas e que dá a dica
para a polícia e te arma uma cilada
ao chegar (...)"; noutro, somos a
imprensa: "As rajadas dos meliantes eram de tiro muito rápido,
razão pela qual o chefe de polícia
da Zona Norte da província de
Buenos Aires, delegado Silva, disse que reconhecia o uso de metralhadoras Halcón, que sem dúvida
foram roubadas do Exército argentino. Devemos lembrar-nos
que (...) um dos integrantes da
quadrilha foi suboficial do Exército, e assim torna-se explicável a resistência desses poderosos elementos, que mantiveram nossa
polícia à distância". Depois, a voz
do policial: "Estão delirando,
pensa Roque Pérez, bancam os
machões, porque estão pirados,
com uísque, com bolinha". E
também os instantes de dúvida
factual são ficcionalizados, de modo que toda afirmação se relativiza: "Blanquita Galeano, a concubina de Mereles, é (segundo os jornais) uma mocinha de classe média, criada num lar saudável e estimada pelos vizinhos de Caseros".
Nesse processo de descentralização narrativa, Piglia tira do leitor a
tranquila estabilidade de um único ponto de vista. E, ao nos colocar no centro do massacre -e
massacre nos dois sentidos, da polícia e do ladrão-, o texto cria
uma empatia complexa, polivalente, com os personagens em relação não só com a questão social
em sentido estrito, mas também
com os valores morais e éticos
subjacentes.
O resultado desse painel de vozes, à falta de uma referência
"normal" que nos dê algum sistema estável de valores (a voz da
imprensa, que poderia cumprir
esse papel, acaba por se resumir
no lugar mais comum, no chavão
mais gasto, na sintaxe mais repetida), é um mundo sombrio, lúgubre, irracional, em que existe apenas o crime, em todas as suas formas, do homicida psicótico ao tira
torturador, todos mais ou menos
funcionando na mesma lógica primeva; a luta entre polícia e bandido é uma pura relação de força física ou bélica, e não de distinção
social, moral ou ética, em nenhuma instância.
Assim, queimar o dinheiro que,
afinal, era o objeto da loucura,
passa a ser a consumação metafísica de uma liberdade impossível. E
explica o fato de que esse gesto
provoque nas pessoas uma reação
substancialmente mais violenta do
que as próprias mortes cometidas:
"Só loucos assassinos e animais
sem moral podem ser tão cínicos e
tão criminosos a ponto de queimar quinhentos mil dólares (...).
Indignados, os cidadãos que observavam a cena davam gritos de
horror e de ódio (...)". A partir
daí, os seres lúmpenes que assaltam se transformam em "niilistas".
Ricardo Piglia garante a estatura
literária do relato não só pela entrega da narração às linguagens
em jogo, no campo delas mesmas,
mas também por sustentar e resumir em torno de Dorda, o "Gaúcho Louro", uma figura patética
que cresce ao longo do livro a ponto de se tornar o seu eixo, todos os
paradoxos que a história levanta.
"Dinheiro Queimado" é um romance de primeira grandeza.
Cristovão Tezza é escritor, autor de "Breve Espaço entre Cor e Sombra", "Trapo" e
"Uma Noite em Curitiba" (Rocco), entre outros.
A OBRA
Dinheiro Queimado - Ricardo Piglia. Tradução de Rosa Freire D'Aguiar. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702,
conjunto 72, CEP 04532-002, SP,
tel. 011/866-0801). 184 págs.
R$ 21,00.
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