São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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+ sociedade

O ocultismo econômico se tornou um senso comum globalizado que impregna noticiários de TV e jornal, diagnósticos políticos e o pensamento universitário

Técnica, magia e mercado

Renato Ortiz
especial para a Folha

O que é um mito? Num velho livro, publicado ainda na década de 50 do século passado -e, lembro ao leitor, assim começam as lendas, remetendo-nos a um tempo intangível-, um antigo escritor dizia: trata-se de uma palavra despolitizada. O mito congela a história dando-nos a impressão da eternidade do presente. Ele embaralha a visão das coisas e, ao apresentá-las como um dado da natureza, imutável, impede a compreensão do mundo como um processo, um devir. Com a globalização surgem novos mitos, outras crenças, agora mundializadas, seu alcance é mais abrangente, não mais se confinando a seus lugares de origem, a nação ou a Província. A época em que vivemos está marcada por um senso comum planetário, generalizado, ar rarefeito da atmosfera que respiramos; ele se manifesta nos jornais, nos noticiários televisivos, nos diagnósticos políticos, no pensamento universitário. Sua verdade e seu poder de convencimento já não decorrem apenas de seu conteúdo, de sua ideologia, mas de sua extensão, como se a expansão das barreiras, sua forma tecnicamente administrada, fossem a prova de sua veracidade. Dos mitos atuais, perenes, inquestionáveis, cotidianamente celebrados em escala global, um deles se denomina o mercado. A ele nos referimos como uma entidade real, com vida própria, capaz inclusive de reações semi-humanas. Diz-se dele que tem "humores", "reage" com otimismo ou pessimismo a determinadas medidas, tem "percepção" do que acontece no reino da política e da vida social. É descrito como uma entidade "sensível", "irascível", oscilando ao sabor dos eventos, rumores e notícias. A profusão de frases a seu respeito são eloquentes: "O mercado está inquieto", "ele se recuperou dos efeitos negativos", "compreendeu as medidas deste ou daquele governo". Fala-se como se estivéssemos diante de um ser dotado de sensibilidade, inteligência e autopercepção, um organismo vivo, dinâmico e envolvente. O mercado possui também características divinas. Como os seres sagrados, sendo global, planetário, encontra-se em "todos os lugares"; da China comunista ou dos escritórios de Wall Street, esgueira-se ao Banco Central brasileiro, argentino, europeu, penetrando as organizações internacionais, ONGs, partidos, sindicatos, universidades, indústrias culturais. Ninguém escapa às suas malhas, ao seu olhar atento e controlador. Sua lógica utilitária subsume impiedosamente os indivíduos. Mesmo nos rincões mais pobres do planeta, como a África negra, sua presença, ou melhor, sua ausência, é ressentida e lamentada. Diz-se assim que ela foi "abandonada", como se os deuses, por uma omissão qualquer dos homens, talvez a falta de um sentido calvinista da vida, a tivessem condenado à privação, deixando-a à mercê de seus próprios pecados. Punição dura, mas que certamente, um dia, será redimida. O mercado é, pois, transcendente e onisciente. Cada transação, comercial, cultural ou científica, atesta sua existência, atualiza sua manifestação. E sem o constrangimento das velhas barreiras materiais, pois um aparato tecnológico sofisticado -computadores, satélites, fibras óticas, cartões de crédito- torna sua voracidade simultânea e extensiva à espacialidade da modernidade-mundo. Mas os mitos são misteriosos, contêm segredos insondáveis. Sua estrutura ardilosa, sua complexidade, não se revela facilmente aos olhos dos simples mortais. Eles devem ser interrogados, decifrados por alguns predestinados. Os economistas, sacerdotes-feiticeiros modernos, têm essa função. Eles, e apenas eles, conseguem sondar o oculto, interpretar seus desígnios. Como os quiromânticos, interpelam o presente e lêem o futuro (é comum vermos nos jornais as previsões desses sumos sacerdotes). A ciência econômica necessita de especialistas como as religiões, uma casta à parte traduz, assim, a vontade divina.

Círculo fechado
Porém, como nos ensinam os antropólogos, para que tal entendimento seja crível, isto é, aceito socialmente, é necessário que ele se expresse esotericamente, seja incompreensível aos leigos. Daí a proliferação das fórmulas mágicas entoadas cotidianamente: C-Bond, risco-país, flutuação financeira, planos, metas. Cada um desses termos encobre um buraco negro, uma mensagem criptográfica. Seu entendimento é restrito a um círculo fechado, mas para a maioria das pessoas isso é o que menos importa; pelo contrário, quanto mais inacessível, maior o fascínio. A celebração é mais importante do que o conteúdo.


A celebração é mais importante do que o conteúdo; daí esses comentaristas econômicos, espécie de feiticeiros populares, que rezam a ode mercantilista


Daí a existência desses comentaristas econômicos, espécie de feiticeiros populares, que, sem um aprendizado maior (são apenas leitores da "Economist" ou da "Harvard Business Review"), rezam na imprensa e na televisão a ode mercantilista. Eles não sabem bem o que estão dizendo, simplesmente transmitem pedaços de uma cultura letrada que lhes é alheia, muito menos o público, leitor ou telespectador, para quem tudo isso é indecifrável, mas é a repetição, o cantochão mágico que conta, imergindo-nos numa mesma totalidade, num mesmo universo de crenças.
No entanto os feiticeiros se equivocam, cometem erros; por que então acreditar em seus prognósticos? Retomo de Marcel Mauss [sociólogo e antropólogo francês (1872-1950)" uma idéia que ele desenvolveu, ao trabalhar com as sociedades antigas, tribais, que é esclarecedora. A magia é antes de mais nada um ato técnico, digo isso num sentido preciso: trata-se de interpretar o mundo dos espíritos visando a obtenção de um resultado.
Ela é portanto utilitária, o que fez com que muitos a vissem como precursora do raciocínio científico. Por exemplo, a morte de meu vizinho ou a realização de uma demanda qualquer (a mulher do próximo ou a cura de uma doença). O feiticeiro, ao ser consultado, atende o pedido de um cliente e, com base no saber tradicional, formula as prescrições a serem seguidas.
Cada ato mágico é singular, único, devendo ser meticulosamente encenado: utilização de determinadas ervas, sacrifício de animais, jejum, às vezes castigos corporais, respeito às fases da lua etc. Seu êxito depende dessas minúcias. Para que as coisas dêem certo, é necessário realizá-lo da maneira mais adequada possível. Entretanto, caso nada resulte de concreto, o que ocorre com frequência, tanto o feiticeiro quanto o cliente não desistem, eles atribuem a falha não ao sistema de crenças, mas a algum problema ocorrido na sua efetivação -as ervas empregadas estavam estragadas, o horário escolhido não foi condizente com as fases da Lua, o sacrifício foi mal feito etc. O objetivo não alcançado requer, portanto, uma nova investida, uma outra metodologia, claro, agora envolvida por maiores cuidados. O fracasso reforça a credibilidade da crença mágica, pois o erro é visto como uma performance incompleta do que nunca deveria ter acontecido.
O ocultismo econômico funciona de maneira análoga. Os economistas propõem aos governos, partidos e Estados os mais diversos planos de ação. Excepcionalmente eles se realizam por inteiro, no mais das vezes malogram, tendo consequências desastrosas, desemprego, inflação, desvalorização da moeda etc.
Porém, para cada idéia equivocadamente implementada, surgem outras novas, afiançadas por especialistas concorrentes entre si. O mesmo feiticeiro, apesar das derrotas passadas, pode inclusive voltar à carga, ele precisa simplesmente apresentar outras prescrições que corrijam os desmandos anteriores. Quanto mais os planos sucumbem, mais acreditamos no seu encantamento. Uma lógica infalível, tautológica, reforçando a crendice planetarizada e alimentando a mitologia de um imaginário internacional-popular.

Renato Ortiz é professor titular do departamento de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), autor de "Cultura e Modernidade" (ed. Brasiliense).


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