São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Ponto de Fuga

Espelhos que se refletem

Jorge Coli
especial para a Folha

Noutro dia Bernardo Carvalho, num artigo sobre as artes na China, publicado pela "Ilustrada", dizia assim: "Nacionalismo e internacionalização passaram a ser os dois lados de uma mesma moeda de troca no mercado internacional: é preciso imitar o modo ocidental para entrar e ser aceito, mas sem perder uma certa cor local para vender. Não seria descabido supor que um estrangeiro de passagem pelo Brasil pudesse sair daqui com uma impressão parecida". Isso é certo sobretudo para compreender o projeto moderno, no qual muitos artistas brasileiros investiram durante o século 20.
Nada impede que grandes e excelentes obras possam surgir de tal situação. Mas, como o elo entre local e universal, visto em termos de estratégia de penetração ou de mercado, é inconfessável porque vergonhoso, ele se disfarça num mito elevado e nobre: o espírito nacional de uma população irmanada pelo mesmo sentimento instintivo de afinidades culturais.
A partir desse mito, se constrói uma imagem de cultura brasileira com sinais reconhecíveis. Ela se impõe, aos brasileiros, como autêntica, e, aos estrangeiros, como exótica. O caso mais esplêndido nessa conjunção foi, sem dúvida, Villa-Lobos. Nos anos de 1920 ele descobre, em Paris, que certas concepções sonoras eram aceitas como "tropicais", facilitando-lhe lugar de destaque dentro da música internacional. No Brasil, elas encarnaram a ficção poderosa de uma "alma brasileira", densa de ares tão legítimos. Por sorte, havia o gênio musical de Villa-Lobos, cuja verdade está além desses espectros.

Samba - Marcas de nacional e de moderno na arte funcionam, certas vezes, para uso interno, dentro de uma cultura. Di Cavalcanti uniu as aparências de um estilo discretamente moderno ao tema erótico das mulatas, sentido como muito brasileiro. Foi um cruzamento que lhe garantiu o papel que ele teve dentro das artes no Brasil do século passado.

Sombrero - Nem o ambiente sepulcral da sala concebida por Niemeyer nem a iluminação deficiente da mostra conseguem diminuir a revelação vibrante dos óleos que Johann Moritz Rugendas pintou no México, ora expostos no Memorial da América Latina, em São Paulo.
É uma revelação de fato. De Rugendas, a cultura brasileira está familiarizada sobretudo com as ilustrações do "Voyage Pitoresque dans le Brésil". Elas derivam da primeira visita que o pintor fez a estas plagas. Desembarcou no Rio de Janeiro, em 1822, com 20 anos de idade e percorreu o país, colhendo imagens. Voltou à Europa em 1825. Ali, sua arte amadureceu. Viajou para a Itália: em Roma, onde havia uma então efervescente comunidade de artistas internacionais, Turner mostrava suas paisagens numa exposição que causou controvérsia.
Em Paris, Rugendas frequentou Delacroix e Bonington. De novo na América Latina, ao enfrentar os motivos mexicanos, igualou-se aos artistas mais altos. Sua pincelada enérgica faz passar uma vida cromática e luminosa às matérias, à atmosfera, que nenhuma reprodução chega a comunicar.
Muitas vezes, minúsculos personagens animam as cenas: mesmo os menores transmitem o seu "caráter" por uma inclinação ou uma torção, por um gesto, pelo peso que sugerem. São maravilhosos. Certos quadros possuem liberdade que os projeta no futuro; um deles deveria sugerir lavas explodindo de uma cratera e são, antes, manchas e respingos, esplêndidos vermelhos e amarelos sobre zonas escuras.

Variações - As obras mexicanas de Rugendas, que se encontram no Memorial da América Latina, formam um diário visual de viagem. Porém não oferecem a impressão de uma tarefa sistemática, o que as igualaria em modo repetitivo. Alguns noturnos são "góticos", fantasmagóricos. Num velório, abutres voam no recorte da janela; um assassino é levado pela polícia em rua cujo escuro é feito de tons esverdeados. As cenas luminosas de montanha surgem carregadas com o mais verdadeiro sentido do sublime romântico. A natureza, os edifícios, todos os seres adquirem força anímica, graças às pinceladas às vezes untuosas, às vezes aéreas.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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