São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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Um dos principais especialistas em Antigüidade, Paul Veyne derruba mitos sobre Roma em novo estudo

Nova velha história

MAURICE SARTRE

Na historiografia da Antigüidade, Paul Veyne ocupa um lugar singular, e não se sabe se a descrição que lhe conviria melhor seria a de agitador ou de desmontador. A leitura de "L'Empire Gréco-Romain" [O Império Greco-Romano] -constituído de 12 estudos publicados anteriormente, mas em grande medida reformulados e ampliados, além de um estudo inédito- induz à opção pelo segundo termo.
Isso porque, com seu estilo inimitável que já conhecemos, feito de elegância refinada na escolha das palavras e de audácia nas imagens e comparações que traça, Veyne sacode as certezas, desmonta as idéias recebidas, põe as hierarquias de ponta-cabeça e perturba todas as referências de seu leitor, até conduzi-lo, por atalhos pelos quais ele nunca teve a ocasião de aventurar-se, até soluções novas, inesperadas, convincentes, brilhantes.
Veyne faz parte dessa rara categoria de sábios que recriam o mundo porque colocam a si mesmos perguntas fundamentais. Ele reformula as perguntas às quais acreditávamos haver respondido há muito tempo: o que é um imperador romano? Quais são as premissas de funcionamento da cidade grega? Houve uma classe média em Roma? Como os gregos conseguiram adaptar-se à hegemonia política de Roma? Como e por que desapareceram os combates de gladiadores, apesar de serem tão populares? Por que a arte greco-romana acabou?
Fino observador dos fatos e das conquistas da Antigüidade, Veyne se preocupa, em primeiro lugar, em jamais reduzir a complexidade das explicações, mesmo que sejam contraditórias. Assim, como Roma pôde manter por tanto tempo a ficção de um imperador igual a seus pares, os senadores, quando, na realidade, o imperador exercia poder absoluto?


Nada demonstra melhor essa unidade profunda do império greco-romano do que a cultura das elites

Esse "aventureiro que deu certo" conseguiu a proeza de dar ao povo a ilusão de soberania, fazendo com que legitimasse seus golpes de Estado e, ao Senado, a imagem do bom imperador, fazendo-o crer que era ele quem inspirava sua política. Isso nos vale as páginas inspiradoras sobre a natureza do culto imperial, "linguagem e ritual hiperbólicos", "criação de alta cultura", e não devoção popular espontânea.
Veyne mostra que a produção de imagens imperiais não tem relação nenhuma com a propaganda, mas está relacionada unicamente à afirmação do poder: "A propaganda, essa retórica, busca convencer do direito de comandar; já o fausto pressupõe que esse direito existe e que todo mundo está convencido dele".

Acidente fortuito
Um dos pontos fortes de Veyne é sem dúvida o domínio igual que ele tem das fontes latinas e das fontes gregas, além de sua preocupação constante em levar em conta a totalidade do império. Isso justifica o fato de ele chamá-lo de "Império Greco-Romano", tanto assim que a cultura latina, a partir do século 2º a.C., não foi mais do que a variante latina da "paidéia" (a educação) grega.
O que não impede a originalidade das produções das diferentes Províncias, na África e na Itália e também na Ásia Menor ou na Síria. Mas nada demonstra melhor essa unidade profunda do império do que a cultura das elites, que, apesar das diferenças de sensibilidade pessoal, compartilham as mesmas convicções e as mesmas aversões.
Outro ponto forte está na recusa das imagens prontas: não, a queda do Império Romano não representou a conclusão de um processo prolongado: foi um acidente fortuito, que poderia bem não ter acontecido, tão grande era o respeito manifestado a Roma e suas instituições pelos bárbaros que, a partir do século 4º, atiraram-se sobre o império.
Veyne também considera que o cristianismo não influiu em nada sobre o fim da arte da Antigüidade e refuta incansavelmente o método que consiste em fazer da arte o simples reflexo da sociedade e do poder.
Para ele, a arte greco-romana sofre uma mutação profunda a partir do século 3º e, em lugar de um desaparecimento brutal, passa por "suas diversas pequenas mortes" sem alarde, de modo imperceptível, até que a transformação de suas realizações nos conduz à compreensão retroativa de que já mudamos de época.
A arte romana morre, na realidade, quando deixa de ser "uma fácies indígena da arte helênica", marcada por uma representação ímpar por meio do mundo do corpo humano. Essa passagem de "uma arte da semelhança a uma arte do reconhecimento pela analogia" anuncia a chegada da Idade Média.
Não se esgota tão facilmente assim a riqueza de uma obra tão multiforme. É preciso lê-la por inteiro para descobrir, ao longo de suas páginas, os lampejos de inteligência, as aproximações inesperadas feitas entre a Antigüidade e nosso mundo -com relação à classe média, por exemplo-, essas fórmulas claras e diretas que nos conduzem repentinamente até a realidade. São características que constituem a marca singular de um dos mestres mais estimulantes de nosso tempo.

Maurice Sartre é professor de história antiga na Universidade de Tours (França).
Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.



L'Empire Gréco-Romain
864 págs., 25 (R$ 67)
de Paul Veyne. Seuil (França).

Onde encomendar Livros em francês podem ser encomendados na livraria Francesa (0/ xx/11/ 3231-4555) ou no site www.alapage.com


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