São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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O crítico italiano Alfonso Berardinelli, que dará três conferências em SP, explica os best-sellers e diz que o cidadão não tem força na sociedade

A multidão solitária

Joerg Sarbach 18.out.2005/Associated Press
Mulher arruma estante na Feira de Livros de Frankfurt, na Alemanha


LUCIA WATAGHIN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um dos mais polêmicos críticos italianos hoje, Alfonso Berardinelli, 62, está em São Paulo a convite da USP para ministrar, a partir desta semana, um curso intensivo de pós-graduação e três conferências sobre o best-seller.
Fundador e colaborador de importantes periódicos culturais e políticos de seu país, autor de livros fundamentais como "La Poesia verso la Prosa" (Da Poesia à Prosa, que sairá no Brasil no ano que vem, pela Cosacnaify) e "La Forma del Saggio" (A Forma do Ensaio), Berardinelli também ficou famoso por seu rigor e anticonformismo, de que dá mostras na entrevista abaixo, concedida à Folha.
Em 1995, sua decisão de deixar a Universidade de Veneza -na qual lecionava literatura italiana contemporânea havia muitos anos- provocou debates acirrados sobre a função do intelectual e a sua relação com as instituições que o acolhem. Sua independência radical das instituições lhe favoreceu a verve satírica e o humorismo irresistível, instrumentos dos seus ataques a autores consagrados da literatura italiana e internacional.
As conferências de Beradinelli serão abertas ao público. Mais informações podem ser obtidas pelo tel. 0/xx/11/3091-4645.
 

Folha - O sr. ministrará três conferências sobre o best-seller (de Lampedusa a Kerouac, García Márquez, Umberto Eco, Stephen King). Pode adiantar algo das suas teses a respeito?
Alfonso Berardinelli -
Sobre o best-seller tenho duas idéias principais. A primeira é: ele não amplia os horizontes do leitor, é um livro mata-livros, cria o deserto em torno de si, porque o leitor de best-seller não procura outros autores, não é curioso, espera a saída do próximo best-seller, porque quer o livro-síntese, que lhe permita não ler mais nada e lhe dê a ilusão de ter lido o essencial.
A segunda idéia é a de que, antes, o best-seller era freqüentemente casual, ao passo que agora se trata de livros programados; há uma indústria do best-seller. Cria-se um certo produto literário de acordo com uma fórmula considerada magnética, que tende a se repetir, já que o leitor de best-seller ama a repetição, quer trilhar caminhos seguros.

Folha - O que é que lhe permite ser tão sincero (ou temerário) em suas "visões" críticas, como nos divertidos ataques a Umberto Eco, Cioran, Robert Calasso, Gianni Vattimo?
Berardinelli -
Trata-se de sátiras culturais, um gênero não muito praticado. E a sátira naturalmente pode ser ou parecer um pouco feroz. Mas deve também provocar o riso e transmitir a evidência ou a certeza de que aquilo que poderia parecer deformação ou exagero na verdade são evidências inegáveis, que talvez até agora não tenham sido observadas, salientadas...


A participação política, mesmo nos países mais democráticos, é uma ilusão, um embuste

Nos casos indicados por você, trata-se justamente de sátiras. Escrevo sátiras e faço isso muito naturalmente (sem querer nem perceber a agressividade desse gênero literário como uma responsabilidade minha). Faço isso quando me parece que o próprio autor de quem falo, de quem faço o retrato, se transformou por si mesmo numa espécie de "caricatura". Não sou eu quem força os traços, é o próprio escritor que alcançou, por sua iniciativa, aquela "perfeição deformada" que o torna ao mesmo tempo carismático e ridículo, respeitável e estilizado como uma carta de tarô.

Folha - Seu ensaio "O Herói Que Pensa - Hamlet, Alceste, Andrej" (1987) é um elogio da misantropia. Esses três personagens lhe parecem heróis ou vítimas de uma utopia moral "intratável", que impede a ação e as relações sociais, mas permite ver "mais coisas de quantas nós poderíamos ver por meio da filosofia e da política". O sr. pensa que o exercício da verdade leva necessariamente à solidão?
Berardinelli -
Construí aquele ensaio como um espelho autobiográfico, tomei emprestadas vozes de grandes personagens da literatura européia para iluminar com uma luz diferente o tipo do intelectual moderno. Foi como estabelecer uma tradição, não somente pessoal, naturalmente. "O Herói Que Pensa" é uma maneira diferente, mais distanciada, de nomear o personagem-intelectual: ou seja, aquele que tende a agir para entender, mais que entender para agir, em vista da ação eficaz.
Num especificamente sobre a Itália mas também sobre a política, para o qual escolhi um título extraído de "Pinóquio" que alude ao carisma demagógico do premiê Silvio Berlusconi -"No País dos Brinquedos"-, acrescentei um subtítulo que prezo muito: "A Política Vista por Quem Não A Faz". É uma alusão ao fato de que a chamada "participação política", mesmo nos países mais democráticos, é uma ilusão, uma espécie de embuste.
Muitos jornais engajados, como, na Itália, o "La Repubblica", difundem a idéia de que nós, cidadãos, estamos muito próximos do poder e podemos mudar muitas coisas com a nossa "participação". Mas participar é difícil, os filtros são muitos, nunca se chega às decisões verdadeiras, que ficam nas mãos dos partidos, de seus grupos dirigentes, enfim, dos políticos que realmente "fazem" política por profissão. Todos os outros são espectadores, comentadores daquilo que não fazem... Exatamente como os intelectuais.

Folha - Em 1995, o sr. tomou a decisão surpreendente de abandonar a universidade, mesmo não sendo rico. Pode avaliar agora, dez anos depois, os frutos da sua escolha?
Berardinelli -
Agi por natural egoísmo, para me sentir novamente livre, para mudar de vida, para proteger uma certa independência e solidão da qual evidentemente sentia a necessidade... Por outro lado, nunca me senti um professor universitário, apesar de ter lecionado por 20 anos.
O fato é que ler ou estudar em lugares e instituições nas quais todo mundo o faz e deve fazê-lo é uma coisa que me deixa pouco à vontade.
Há também o fato de que ocupar-se de obras literárias para ensiná-las nos priva da relação pessoal com a leitura, daquele benefício da incerteza, de não saber o que pensar de um texto, que é a parte melhor da leitura, se a leitura deve continuar sendo uma experiência aberta.

Folha - O sr. já esteve várias vezes na América Latina, a convite de universidades, instituições culturais etc. Há algo que o atrai no especial modo de viver em cada um desses países que visitou? E algo de que desgosta?
Berardinelli -
A América Latina oferece aos italianos, aos espanhóis e franceses, latinos da Europa, coisas que na Europa não se encontram. Antes de tudo, o espaço, o imenso espaço americano, a natureza dominadora, o sentido do presente e do futuro, que na Europa quase desapareceram sob o peso do passado.
Pessoalmente, no México, na Argentina, no Brasil, no Peru, senti-me mais útil. Saindo do asfixiante contexto europeu, deve-se inventar uma nova síntese da cultura européia diante de um público mais jovem, diante de problemas diferentes, mais verdadeiros. No plano comunicativo, a América Latina nos parece um paraíso. A desconfiança, o formalismo, a avareza -inclusive moral- europeus estão quase ausentes aqui.
E nós, europeus, temos a obsessão da perfeição formal. Sentimos o confim, a linha de separação, o limite. Somos aterrorizados pelo caos vital, o ilimitado, a selva, a pampa, as cidades enormes e sem forma... Assombram-me escritores como Whitman, Neruda e também Borges, uma espécie de europeu hiperurânico, ao quadrado, ao cubo... Adoro certos poetas brasileiros, como Drummond e Murilo Mendes, a sua medida...

Folha - Poderia falar um pouco do seu livro "Da Poesia à Prosa", que será publicado em breve no Brasil?
Berardinelli -
Neste livro falei da relação, da osmose poesia-prosa, porque a teoria literária, particularmente a "função poética" definida por Jakobson, retomando muitas poéticas modernas, tendia a separar nitidamente língua de uso e língua comum, de um lado, e linguagem poética, de outro.
Na verdade, muitos clássicos da modernidade -Leopardi, Baudelaire, Eliot etc.- muitas vezes misturaram condensação lírica e discursividade. É impossível pensar uma linguagem poética que evite ou exclua por princípio a comunicação.
A modernidade não nasce toda de Mallarmé e não conclui com Valéry, os surrealistas, Pound ou Celan. A obscuridade é somente uma das zonas extremas e não pode ser prescrita como uma norma.
Tanto é que as neovanguardas pós-modernas transformaram, nos anos 50, o esvaziamento dos significados numa espécie de jargão impenetrável, ilegível e, obviamente, tedioso. Essa poesia de jargão obscuro era ótima não para ser lida, mas apenas para ser dissecada em laboratórios e seminários acadêmicos.
A pós-modernidade levou à retomada de modelos poéticos pré-modernos, reencontrando um modo de fazer poesia em que se fala de algo, em versos verdadeiros, que soam como versos. Voltou-se até mesmo ao poema épico, como fizeram Enzensberger, com "O Naufrágio do Titanic", ou Derek Walcott, com "Omeros" (ambos pela Cia. das Letras). Hoje a poesia está muito mais próxima da prosa.


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