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O crítico italiano Alfonso Berardinelli, que dará três conferências em SP,
explica os best-sellers e diz que o cidadão não tem força na sociedade
A multidão solitária
Joerg Sarbach 18.out.2005/Associated Press
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Mulher arruma estante na Feira de Livros de Frankfurt, na Alemanha |
LUCIA WATAGHIN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Um dos mais polêmicos críticos italianos hoje, Alfonso Berardinelli, 62, está em
São Paulo a convite da USP
para ministrar, a partir desta semana, um curso intensivo de pós-graduação e três conferências sobre o
best-seller.
Fundador e colaborador de importantes periódicos culturais e políticos de seu país, autor de livros
fundamentais como "La Poesia verso la Prosa" (Da Poesia à Prosa, que
sairá no Brasil no ano que vem, pela
Cosacnaify) e "La Forma del Saggio"
(A Forma do Ensaio), Berardinelli
também ficou famoso por seu rigor
e anticonformismo, de que dá mostras na entrevista abaixo, concedida
à Folha.
Em 1995, sua decisão de deixar a
Universidade de Veneza -na qual
lecionava literatura italiana contemporânea havia muitos anos- provocou debates acirrados sobre a função do intelectual e a sua relação
com as instituições que o acolhem.
Sua independência radical das instituições lhe favoreceu a verve satírica
e o humorismo irresistível, instrumentos dos seus ataques a autores
consagrados da literatura italiana e
internacional.
As conferências de Beradinelli serão abertas ao público. Mais informações podem ser obtidas pelo tel.
0/xx/11/3091-4645.
Folha - O sr. ministrará três conferências sobre o best-seller (de Lampedusa a Kerouac, García Márquez, Umberto Eco, Stephen King). Pode adiantar algo das suas teses a respeito?
Alfonso Berardinelli - Sobre o best-seller tenho duas idéias principais. A
primeira é: ele não amplia os horizontes do leitor, é um livro mata-livros, cria o deserto em torno de si,
porque o leitor de best-seller não
procura outros autores, não é curioso, espera a saída do próximo best-seller, porque quer o livro-síntese,
que lhe permita não ler mais nada e
lhe dê a ilusão de ter lido o essencial.
A segunda idéia é a de que, antes, o
best-seller era freqüentemente casual, ao passo que agora se trata de
livros programados; há uma indústria do best-seller. Cria-se um certo
produto literário de acordo com
uma fórmula considerada magnética, que tende a se repetir, já que o leitor de best-seller ama a repetição,
quer trilhar caminhos seguros.
Folha - O que é que lhe permite ser
tão sincero (ou temerário) em suas
"visões" críticas, como nos divertidos
ataques a Umberto Eco, Cioran, Robert Calasso, Gianni Vattimo?
Berardinelli - Trata-se de sátiras
culturais, um gênero não muito praticado. E a sátira naturalmente pode
ser ou parecer um pouco feroz. Mas
deve também provocar o riso e
transmitir a evidência ou a certeza
de que aquilo que poderia parecer
deformação ou exagero na verdade
são evidências inegáveis, que talvez
até agora não tenham sido observadas, salientadas...
A participação política, mesmo nos países mais democráticos, é
uma ilusão, um embuste
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Nos casos indicados por você, trata-se justamente de sátiras. Escrevo
sátiras e faço isso muito naturalmente (sem querer nem perceber a
agressividade desse gênero literário
como uma responsabilidade minha). Faço isso quando me parece
que o próprio autor de quem falo, de
quem faço o retrato, se transformou
por si mesmo numa espécie de "caricatura". Não sou eu quem força os
traços, é o próprio escritor que alcançou, por sua iniciativa, aquela
"perfeição deformada" que o torna
ao mesmo tempo carismático e ridículo, respeitável e estilizado como
uma carta de tarô.
Folha - Seu ensaio "O Herói Que Pensa - Hamlet, Alceste, Andrej" (1987) é
um elogio da misantropia. Esses três
personagens lhe parecem heróis ou
vítimas de uma utopia moral "intratável", que impede a ação e as relações
sociais, mas permite ver "mais coisas
de quantas nós poderíamos ver por
meio da filosofia e da política". O sr.
pensa que o exercício da verdade leva
necessariamente à solidão?
Berardinelli - Construí aquele ensaio como um espelho autobiográfico, tomei emprestadas vozes de
grandes personagens da literatura
européia para iluminar com uma luz
diferente o tipo do intelectual moderno. Foi como estabelecer uma
tradição, não somente pessoal, naturalmente. "O Herói Que Pensa" é
uma maneira diferente, mais distanciada, de nomear o personagem-intelectual: ou seja, aquele que tende a
agir para entender, mais que entender para agir, em vista da ação eficaz.
Num especificamente sobre a Itália mas também sobre a política, para o qual escolhi um título extraído
de "Pinóquio" que alude ao carisma
demagógico do premiê Silvio Berlusconi -"No País dos Brinquedos"-, acrescentei um subtítulo
que prezo muito: "A Política Vista
por Quem Não A Faz". É uma alusão
ao fato de que a chamada "participação política", mesmo nos países
mais democráticos, é uma ilusão,
uma espécie de embuste.
Muitos jornais engajados, como,
na Itália, o "La Repubblica", difundem a idéia de que nós, cidadãos, estamos muito próximos do poder e
podemos mudar muitas coisas com
a nossa "participação". Mas participar é difícil, os filtros são muitos,
nunca se chega às decisões verdadeiras, que ficam nas mãos dos partidos, de seus grupos dirigentes, enfim, dos políticos que realmente "fazem" política por profissão. Todos
os outros são espectadores, comentadores daquilo que não fazem...
Exatamente como os intelectuais.
Folha - Em 1995, o sr. tomou a decisão surpreendente de abandonar a
universidade, mesmo não sendo rico.
Pode avaliar agora, dez anos depois,
os frutos da sua escolha?
Berardinelli - Agi por natural egoísmo, para me sentir novamente livre,
para mudar de vida, para proteger
uma certa independência e solidão
da qual evidentemente sentia a necessidade... Por outro lado, nunca
me senti um professor universitário,
apesar de ter lecionado por 20 anos.
O fato é que ler ou estudar em lugares e instituições nas quais todo
mundo o faz e deve fazê-lo é uma
coisa que me deixa pouco à vontade.
Há também o fato de que ocupar-se de obras literárias para ensiná-las
nos priva da relação pessoal com a
leitura, daquele benefício da incerteza, de não saber o que pensar de um
texto, que é a parte melhor da leitura, se a leitura deve continuar sendo
uma experiência aberta.
Folha - O sr. já esteve várias vezes na
América Latina, a convite de universidades, instituições culturais etc. Há
algo que o atrai no especial modo de
viver em cada um desses países que
visitou? E algo de que desgosta?
Berardinelli - A América Latina
oferece aos italianos, aos espanhóis e
franceses, latinos da Europa, coisas
que na Europa não se encontram.
Antes de tudo, o espaço, o imenso
espaço americano, a natureza dominadora, o sentido do presente e do
futuro, que na Europa quase desapareceram sob o peso do passado.
Pessoalmente, no México, na Argentina, no Brasil, no Peru, senti-me
mais útil. Saindo do asfixiante contexto europeu, deve-se inventar uma
nova síntese da cultura européia
diante de um público mais jovem,
diante de problemas diferentes,
mais verdadeiros. No plano comunicativo, a América Latina nos parece um paraíso. A desconfiança, o
formalismo, a avareza -inclusive
moral- europeus estão quase ausentes aqui.
E nós, europeus, temos a obsessão
da perfeição formal. Sentimos o confim, a linha de separação, o limite.
Somos aterrorizados pelo caos vital,
o ilimitado, a selva, a pampa, as cidades enormes e sem forma... Assombram-me escritores como Whitman, Neruda e também Borges,
uma espécie de europeu hiperurânico, ao quadrado, ao cubo... Adoro
certos poetas brasileiros, como
Drummond e Murilo Mendes, a sua
medida...
Folha - Poderia falar um pouco do
seu livro "Da Poesia à Prosa", que será
publicado em breve no Brasil?
Berardinelli - Neste livro falei da relação, da osmose poesia-prosa, porque a teoria literária, particularmente a "função poética" definida por
Jakobson, retomando muitas poéticas modernas, tendia a separar nitidamente língua de uso e língua comum, de um lado, e linguagem poética, de outro.
Na verdade, muitos clássicos da
modernidade -Leopardi, Baudelaire, Eliot etc.- muitas vezes misturaram condensação lírica e discursividade. É impossível pensar uma
linguagem poética que evite ou exclua por princípio a comunicação.
A modernidade não nasce toda de
Mallarmé e não conclui com Valéry,
os surrealistas, Pound ou Celan. A
obscuridade é somente uma das zonas extremas e não pode ser prescrita como uma norma.
Tanto é que as neovanguardas
pós-modernas transformaram, nos
anos 50, o esvaziamento dos significados numa espécie de jargão impenetrável, ilegível e, obviamente, tedioso. Essa poesia de jargão obscuro
era ótima não para ser lida, mas apenas para ser dissecada em laboratórios e seminários acadêmicos.
A pós-modernidade levou à retomada de modelos poéticos pré-modernos, reencontrando um modo de
fazer poesia em que se fala de algo,
em versos verdadeiros, que soam
como versos. Voltou-se até mesmo
ao poema épico, como fizeram Enzensberger, com "O Naufrágio do
Titanic", ou Derek Walcott, com
"Omeros" (ambos pela Cia. das Letras). Hoje a poesia está muito mais
próxima da prosa.
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