São Paulo, domingo, 06 de dezembro de 2009

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+(s)ociedade

A máquina de corrupção


Escândalo envolvendo o governador do DF mostra como as regras do jogo político no Brasil são precárias


MARCOS FERNANDES
GONÇALVES DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qual é a natureza da corrupção política no Brasil?
Parto do princípio de que a moralidade política é maquiavélica e hobbesiana. Para ilustrar o argumento, considero algumas das características de três escândalos recentes: o caso do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM), a fraude no concurso público do Instituto de Criminalística, em São Paulo, e a fraude corporativa de lavagem de dinheiro da Camargo Corrêa.
Esses três acontecimentos, distintos entre si, possuem algo em comum: o desprezo pela lei e o não respeito a valores morais que deveriam nortear o autointeresse e a busca de fins privados.
Nos dois primeiros casos, a moral pública é violada e, no terceiro, aquela moral que deveria conduzir, de boa forma, os negócios corporativos.

Estamento burocrático
Fraudes em concursos públicos no Brasil são exceções. Trata-se, em tal caso, de um exemplo de apropriação patrimonialista da coisa pública, revelador de algo perverso: o caráter não republicano "de facto" daquilo que Raymundo Faoro, em "Os Donos do Poder" [ed. Globo], definiu como estamento burocrático.
Estamento burocrático é uma definição que encerra em si mesma uma contradição: a ideia de burocracia moderna -de um corpo de gestores funcionais, eficazes, racionais, que separam coisa pública de coisa privada- e estamento -conceito relacionado a uma sociedade estamental, a um grupo de indivíduos, tal qual ocorria em sociedades pré-modernas, que desfrutam de um direito quase natural à apropriação do patrimônio público.
O estamento burocrático gere o Estado, mas o faz, em parte, em benefício próprio.
No Brasil, tanto no nível da baixa burocracia como na alta, envolvendo aí o patronado político brasileiro, não há esta distinção clara entre a gestão do Estado para a sociedade e sua gestão para algumas corporações de funcionários públicos, agregados e políticos.
A fraude da Camargo Corrêa é lesa-pátria, pois representa evasão de divisas. Esse é um mal, porém menor, se comparado às fraudes públicas citadas anteriormente.
Mas revela algo em comum com os casos de corrupção: a crença de que os sistemas de vigilância e punição são frágeis. O estamento burocrático revelou-se um instrumento de captura do Estado no escândalo do Distrito Federal, uma máquina política. O termo "máquina política" tem origem na literatura política norte-americana, na análise feita sobre corrupção municipal. Mas como funciona uma máquina política?
Imagine um governador que retribui seus correligionários com propinas ou com dinheiro retirado de empresários: os correligionários podem açambarcar deputados e o Judiciário local. Isso é uma máquina política, uma instituição, uma regra do jogo que faz com que, dados os incentivos, as motivações derivadas das propinas, os agentes (políticos, burocratas, jornalistas cooptados, desembargadores) atuem na forma de quadrilha.
Uma marca das máquinas políticas é que elas não existem em razão de uma ou outra eleição, isto é, elas se entranham dentro do Estado: são um esquema permanente de uso ilegal da coisa pública.

"Panelinhas"
No Brasil, tais máquinas poderiam ser caracterizadas como "panelinhas", em que as relações cooperativas de seus membros geram benefícios mútuos, inclusive de autoproteção (daí a importância de cooptar desembargadores e ameaçar traidores).
O esquema de corrupção no Distrito Federal é diferente de um simples caso de fraude num concurso público ou da evasão de divisas associada à má conduta corporativa.
Ele revela, a despeito de suas particularidades, uma característica intrínseca ao Estado brasileiro: os membros da clientela -do estamento burocrático e agregados- se atribuem um direito natural ao uso privado da coisa pública.
Na verdade, em geral, não há um problema nas pessoas, mas, sim, nas regras que as norteiam. A qualidade do jogo político depende da qualidade dos jogadores e da qualidade das regras do jogo, pois delas derivam incentivos que determinam as decisões dos agentes.

Incentivos tortos
No Brasil não há lei, e os incentivos, no jargão dos economistas, são "tortos": levam a uma má conduta.
O problema aqui não são os governos: a corrupção é relacionada com a estrutura do Estado -os governos são cooptados por máquinas políticas do próprio Estado.
O mundo da política manifesta o que há de mais vil em nossa natureza.
Na política devemos ser criaturas hobbesianas e maquiavélicas: desejamos a destruição do inimigo, o poder. Mas o poder corrompe, e nossas paixões devem ser controladas por nós mesmos, ou inibidas, "de facto", pela lei.
Falando sobre a qualidade dos jogadores na arena política: ela não tem relação com a capacidade deles; são muitos competentes e capazes. Mas há, no Brasil, regras do jogo que incentivam a ganância.


MARCOS FERNANDES GONÇALVES DA SILVA é economista e coordenador do Centro de Estudos dos Processos de Decisão da Fundação Getulio Vargas (SP). É autor de "Ética e Economia" (ed. Campus).


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