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+(s)ociedade
A máquina de corrupção
Escândalo envolvendo o governador do DF mostra como as regras do jogo político no Brasil são precárias
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MARCOS FERNANDES
GONÇALVES DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Qual é a natureza da
corrupção política
no Brasil?
Parto do princípio de que a moralidade política é maquiavélica e
hobbesiana.
Para ilustrar o argumento,
considero algumas das características de três escândalos recentes: o caso do governador
do Distrito Federal, José Roberto Arruda (DEM), a fraude
no concurso público do Instituto de Criminalística, em São
Paulo, e a fraude corporativa de
lavagem de dinheiro da Camargo Corrêa.
Esses três acontecimentos,
distintos entre si, possuem algo
em comum: o desprezo pela lei
e o não respeito a valores morais que deveriam nortear o autointeresse e a busca de fins
privados.
Nos dois primeiros casos, a
moral pública é violada e, no
terceiro, aquela moral que deveria conduzir, de boa forma,
os negócios corporativos.
Estamento burocrático
Fraudes em concursos públicos no Brasil são exceções.
Trata-se, em tal caso, de um
exemplo de apropriação patrimonialista da coisa pública, revelador de algo perverso: o caráter não republicano "de facto" daquilo que Raymundo
Faoro, em "Os Donos do Poder" [ed. Globo], definiu como
estamento burocrático.
Estamento burocrático é
uma definição que encerra em
si mesma uma contradição: a
ideia de burocracia moderna
-de um corpo de gestores funcionais, eficazes, racionais, que
separam coisa pública de coisa
privada- e estamento -conceito relacionado a uma sociedade estamental, a um grupo de
indivíduos, tal qual ocorria em
sociedades pré-modernas, que
desfrutam de um direito quase
natural à apropriação do patrimônio público.
O estamento burocrático gere o Estado, mas o faz, em parte,
em benefício próprio.
No Brasil, tanto no nível da
baixa burocracia como na alta,
envolvendo aí o patronado político brasileiro, não há esta distinção clara entre a gestão do
Estado para a sociedade e sua
gestão para algumas corporações de funcionários públicos,
agregados e políticos.
A fraude da Camargo Corrêa
é lesa-pátria, pois representa
evasão de divisas. Esse é um
mal, porém menor, se comparado às fraudes públicas citadas
anteriormente.
Mas revela algo em comum
com os casos de corrupção: a
crença de que os sistemas de vigilância e punição são frágeis.
O estamento burocrático revelou-se um instrumento de
captura do Estado no escândalo do Distrito Federal, uma máquina política. O termo "máquina política" tem origem na
literatura política norte-americana, na análise feita sobre corrupção municipal.
Mas como funciona uma máquina política?
Imagine um governador que
retribui seus correligionários
com propinas ou com dinheiro
retirado de empresários: os
correligionários podem açambarcar deputados e o Judiciário
local. Isso é uma máquina política, uma instituição, uma regra
do jogo que faz com que, dados
os incentivos, as motivações
derivadas das propinas, os
agentes (políticos, burocratas,
jornalistas cooptados, desembargadores) atuem na forma de quadrilha.
Uma marca das máquinas
políticas é que elas não existem
em razão de uma ou outra eleição, isto é, elas se entranham
dentro do Estado: são um esquema permanente de uso ilegal da coisa pública.
"Panelinhas"
No Brasil, tais máquinas poderiam ser caracterizadas como "panelinhas", em que as relações cooperativas de seus membros geram benefícios mútuos, inclusive de autoproteção (daí a importância de
cooptar desembargadores e ameaçar traidores).
O esquema de corrupção no
Distrito Federal é diferente de
um simples caso de fraude num
concurso público ou da evasão de divisas associada à má conduta corporativa.
Ele revela, a despeito de suas particularidades, uma característica intrínseca ao Estado
brasileiro: os membros da clientela -do estamento burocrático e agregados- se atribuem um direito natural ao uso privado da coisa pública.
Na verdade, em geral, não há um problema nas pessoas, mas, sim, nas regras que as norteiam. A qualidade do jogo político depende da qualidade dos jogadores e da qualidade das regras do jogo, pois delas derivam incentivos que determinam as decisões dos agentes.
Incentivos tortos
No Brasil não há lei, e os incentivos, no jargão dos economistas, são "tortos": levam a
uma má conduta.
O problema aqui não são os governos: a corrupção é relacionada com a estrutura do Estado -os governos são cooptados por máquinas políticas do próprio Estado.
O mundo da política manifesta o que há de mais vil em nossa natureza.
Na política devemos ser criaturas hobbesianas e maquiavélicas: desejamos a destruição do inimigo, o poder. Mas o poder corrompe, e nossas paixões devem ser controladas por nós mesmos, ou inibidas, "de facto", pela lei.
Falando sobre a qualidade dos jogadores na arena política: ela não tem relação com a capacidade deles; são muitos competentes e capazes. Mas há, no Brasil, regras do jogo que incentivam a ganância.
MARCOS FERNANDES GONÇALVES DA
SILVA é economista e coordenador do Centro de
Estudos dos Processos de Decisão da Fundação
Getulio Vargas (SP). É autor de "Ética e Economia" (ed. Campus).
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