São Paulo, domingo, 06 de dezembro de 2009

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+(c)ultura

Teclas literárias


Um dos grandes nomes da ficção dos EUA, Cormac McCarthy leiloa a Olivetti que o acompanha há quase 50 anos


PATRICIA COHEN Cormac McCarthy já escreveu mais de uma dúzia de romances, vários roteiros, duas peças de teatro, dois contos, incontáveis esboços, cartas e mais -e quase todos eles foram datilografados numa máquina de escrever portátil manual Olivetti, que comprou numa loja de penhores de Knoxville, Tennessee, por US$ 50, em 1963.
McCarthy diz que percebe que tanto seu método quanto suas ferramentas de trabalho causam perplexidade a uma geração mais jovem.
Ultimamente, sua máquina tão confiável vem manifestando sinais inequívocos da idade.
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Troca por uma nova
Então, depois de seu amigo e colega John Miller ter lhe oferecido comprar outra, McCarthy concordou em leiloar sua Olivetti Lettera 32 e doar a renda resultante ao Instituto Santa Fe, organização sem fins lucrativos de pesquisas científicas à qual ele e Miller são filiados. "Ele encontrou outra máquina igual a esta", uma Olivetti portátil que aparenta estar praticamente nova, disse McCarthy de sua casa no Novo México. "Acho que pagou US$ 11 [cerca de R$ 19], e o frete custou mais ou menos US$ 19,95."
McCarthy, 76, já possui uma carroça repleta de títulos e homenagens, incluindo um Prêmio Pulitzer e um National Book Award. Livros como "Meridiano de Sangue" [Alfaguara], "Todos os Belos Cavalos" e "A Travessia" [ambos pela Cia. das Letras] o levaram às primeiras fileiras no ranking dos escritores de ficção americanos.
Mesmo os que não leem seus livros conhecem suas narrativas, já que seus dois romances publicados mais recentemente, "Onde os Velhos Não Têm Vez" e "A Estrada" [ambos pela Alfaguara], este vencedor do Pulitzer em 2007, foram transpostos para o cinema ("Onde os Fracos Não Têm Vez" ganhou o Oscar de melhor filme).
A Christie's estima que a máquina será arrematada por entre US$ 15 mil e US$ 20 mil.
McCarthy escreveu uma carta de autenticação -obviamente datilografada na própria Olivetti- em que afirma: "Ela nunca passou por manutenção nem limpeza, exceto quando a poeira foi assoprada com uma mangueira de posto de combustível... Datilografei nesta máquina de escrever todos os livros que já escrevi, incluindo três ainda não publicados. Incluindo todos os rascunhos e as correspondências, estimo que tenham sido cerca de 5 milhões de palavras ao longo de 50 anos".
McCarthy disse que pensara, erradamente, que a máquina tivesse sido comprada em 1958; na realidade, o foi alguns anos mais tarde.
Antes disso, teve uma Royal, mas, quando partiu para a Europa no início dos anos 1960, explicou, "tentei encontrar a máquina de escrever menor e mais leve possível".

Homem taciturno
Ele é conhecido por ser taciturno, especialmente com relação a seus escritos. Acabou por entender que não apenas seu método de trabalho, mas até mesmo suas ferramentas suscitam perplexidade em uma geração mais jovem. Ele se recorda de certo verão em que alguns estudantes de pós-graduação estavam visitando o Instituto Santa Fe.
"Eu estava na minha sala, datilografando", disse ele. "Um estudante pôs a cabeça na porta e disse: "Com licença. O que é isso?". Não tenho um método de trabalho", disse, acrescentando que frequentemente trabalha sobre diferentes projetos ao mesmo tempo.
Glenn Horowitz, comerciante de livros raros que está cuidando do leilão para McCarthy, afirmou: "Quando entendi que alguns dos textos de ficção mais complexos e incomuns da era do pós-guerra tinham sido compostos em uma máquina tão simples, funcional, de aparência frágil... Isso conferiu uma espécie de qualidade de talismã à máquina de escrever de McCarthy. Foi como se as esculturas do monte Rushmore [EUA] tivessem sido feitas com um canivete suíço."
O instituto fica numa casa grande erguida nos anos 1950 no alto de uma colina com vista para Santa Fe. "Ele vem sendo vítima de descaso não muito benigno", disse McCarthy.
Ele vem trabalhando para modernizar partes da casa, como a biblioteca. Ficamos sabendo que a arquitetura é um dos muitos trabalhos diversos que McCarthy disse já ter feito na vida.

Almoço e chá
"É simplesmente um lugar ótimo", disse McCarthy, cuja responsabilidade principal no instituto consiste em almoçar e tomar o chá da tarde ali.
Ele ainda tem uma casa no Texas. Se pudesse seguir sua preferência pessoal, viveria ali agora, "só que eles não querem mudar o instituto de lugar."


A íntegra deste texto saiu no "New York Times". Tradução de Clara Allain .

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