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Carnaval japonês
Mutante e transnacional, festa tem dificuldade em afirmar-se como patrimônio imaterial do Brasil
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Meu livro "Ecos da Folia" [Cia. das Letras, 432 págs.] acabara
de ser entregue à editora. Era aniversário de 500 anos do feito de "seu" Cabral, o que aguçava a curiosidade quanto à resposta dos carnavalescos à velha pergunta de Lamartine Babo [compositor,
1904-63].
Havia ainda o belo samba da Mangueira -pela qual, devo confessar, meu coração faz
"chica chica boom".
Imprensada pelo perfil cívico do ano, a escola de samba tentava escapar por meio de um
enredo fascinante para estudiosos do período: "D. Obá 2º°-Rei dos Esfarrapados, Príncipe
do Povo".
Assim, lá estava eu outra vez naquele estranho lugar chamado sambódromo. Dada a condição física e econômica, não eram viáveis as arquibancadas nem acessíveis os confortáveis
camarotes. Escolhemos as cadeiras de pista, para sentir mais de perto o poder dos tambores.
Cética sobre a crença fundamentalista na "cultura brasileira" e seu "patrimônio imaterial", posição que me rendeu algumas críticas naquele ano [2000], é preliminar reconhecer o seu efeito devastador sobre as emoções envolvidas nessa ideia.
Por trás, alguém bateu de leve no meu ombro. Um sorridente e ansioso oriental fulminou no turinglês destas ocasiões: "Mânguera next?".
Penachos verdes e rosa nas cabeças do grupo que o seguia
me ajudaram a entender a pergunta: comprados pacotes que incluíam sair na Mangueira,
instruídos para comparecer à concentração, não conseguiam entender a coisa muito bem.
Celebridades e clichês
Acalmei o turista, prometendo avisá-lo quando fosse ocasião, mas, a cada escola que entrava, ele renovava a pergunta.
Até que, aliviado, me ouviu
responder em sua própria língua -"go, mânguera next"- e
desapareceu na multidão.
Missão cumprida, tratei de
me concentrar no espetáculo
da pista e no dos camarotes onde celebridades e autoridades
apareciam para acenar, como
Obá na sacada do paço.
Na pista iluminada, velhos
clichês se sucediam. E tome
Vargas (que, se não inventou o
Brasil, moldou esse Carnaval),
lusas caravelas, verde-amarelos em profusão, inevitáveis índios ou as três raças mestiçadas
no rebolado.
Não vi passar a "comunitas"
nem o etos nacional: teriam sido rebaixados para o segundo
grupo? Tentando driblar a
mesmice, a velha Mânguera
misturava de novo axé, mãe
África com a pátria mãe gentil a
quem Obá servira nos campos paraguaios.
Tomava-o como um símbolo
que permitia, afinal, cobrar a
conta do presente: após 500
anos, a raça negra não conhecia
o clarão da igualdade.
Algumas alas, as mais entusiasmadas, enfatizavam a diferença além da cor com uma
gestualidade que acompanhava
o refrão: no Rio de cá (e todos
batiam forte no próprio peito),
lixo e pobreza, no Rio de lá (e
todos apontavam os camarotes
iluminados), luxo e riqueza.
Parecia uma releitura sugestiva, mas parte do movimento
negro implicou com um verso
final que rimava uma "dádiva
do céu" com o sonho de ver a
princesa Isabel de porta-bandeira. Em todo caso, duvido que
Obá se fizesse de rogado para
ser o mestre-sala da ocasião.
Quando tudo parecia caminhar bem, o desastre. Um carro
reproduzindo o Palácio de Cristal de Petrópolis, símbolo da
corte imperial, surgiu irremediavelmente isolado.
Muitos metros atrás -na hora, pareciam quilômetros-,
sob um mar de penachos, montes de turistas empolgados dançavam e acenavam candidamente para a plateia.
Perplexidade
O japonês estava lá, tirando
fotos da arquibancada perplexa. Como autênticos mediadores culturais, diretores de harmonia distribuíam empurrões e cascudos, na vã tentativa de
apressar os alegres foliões que
não entendiam que seus chapéus deviam parecer suave relva verde e rosa em torno do palácio. Teria ficado lindo.
Sem eles, abriu-se um fatal
buraco na apresentação, que
inviabilizou o sonhado campeonato. A primeira reação foi
culpar o japonês, que atravessou o samba por falta da malemolência local.
Mas que nada: ao som dos
tambores da Mânguera, todos
experimentávamos ali o melhor do Carnaval, cuja graça é
ter sido sempre polissêmico e
polifônico, mutante, transnacional e surpreendente.
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA é professora no departamento de história da Universidade Estadual de Campinas (SP) e autora de "Ecos da Folia - Uma História Social do Carnaval
Carioca entre 1880 e 1920" (Cia. das Letras).
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