São Paulo, domingo, 06 de dezembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Carnaval japonês

Mutante e transnacional, festa tem dificuldade em afirmar-se como patrimônio imaterial do Brasil

MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meu livro "Ecos da Folia" [Cia. das Letras, 432 págs.] acabara de ser entregue à editora. Era aniversário de 500 anos do feito de "seu" Cabral, o que aguçava a curiosidade quanto à resposta dos carnavalescos à velha pergunta de Lamartine Babo [compositor, 1904-63].
Havia ainda o belo samba da Mangueira -pela qual, devo confessar, meu coração faz "chica chica boom".
Imprensada pelo perfil cívico do ano, a escola de samba tentava escapar por meio de um enredo fascinante para estudiosos do período: "D. Obá 2º°-Rei dos Esfarrapados, Príncipe do Povo".
Assim, lá estava eu outra vez naquele estranho lugar chamado sambódromo. Dada a condição física e econômica, não eram viáveis as arquibancadas nem acessíveis os confortáveis camarotes. Escolhemos as cadeiras de pista, para sentir mais de perto o poder dos tambores. Cética sobre a crença fundamentalista na "cultura brasileira" e seu "patrimônio imaterial", posição que me rendeu algumas críticas naquele ano [2000], é preliminar reconhecer o seu efeito devastador sobre as emoções envolvidas nessa ideia.
Por trás, alguém bateu de leve no meu ombro. Um sorridente e ansioso oriental fulminou no turinglês destas ocasiões: "Mânguera next?".
Penachos verdes e rosa nas cabeças do grupo que o seguia me ajudaram a entender a pergunta: comprados pacotes que incluíam sair na Mangueira, instruídos para comparecer à concentração, não conseguiam entender a coisa muito bem.

Celebridades e clichês
Acalmei o turista, prometendo avisá-lo quando fosse ocasião, mas, a cada escola que entrava, ele renovava a pergunta.
Até que, aliviado, me ouviu responder em sua própria língua -"go, mânguera next"- e desapareceu na multidão.
Missão cumprida, tratei de me concentrar no espetáculo da pista e no dos camarotes onde celebridades e autoridades apareciam para acenar, como Obá na sacada do paço.
Na pista iluminada, velhos clichês se sucediam. E tome Vargas (que, se não inventou o Brasil, moldou esse Carnaval), lusas caravelas, verde-amarelos em profusão, inevitáveis índios ou as três raças mestiçadas no rebolado.
Não vi passar a "comunitas" nem o etos nacional: teriam sido rebaixados para o segundo grupo? Tentando driblar a mesmice, a velha Mânguera misturava de novo axé, mãe África com a pátria mãe gentil a quem Obá servira nos campos paraguaios.
Tomava-o como um símbolo que permitia, afinal, cobrar a conta do presente: após 500 anos, a raça negra não conhecia o clarão da igualdade.
Algumas alas, as mais entusiasmadas, enfatizavam a diferença além da cor com uma gestualidade que acompanhava o refrão: no Rio de cá (e todos batiam forte no próprio peito), lixo e pobreza, no Rio de lá (e todos apontavam os camarotes iluminados), luxo e riqueza.
Parecia uma releitura sugestiva, mas parte do movimento negro implicou com um verso final que rimava uma "dádiva do céu" com o sonho de ver a princesa Isabel de porta-bandeira. Em todo caso, duvido que Obá se fizesse de rogado para ser o mestre-sala da ocasião.
Quando tudo parecia caminhar bem, o desastre. Um carro reproduzindo o Palácio de Cristal de Petrópolis, símbolo da corte imperial, surgiu irremediavelmente isolado. Muitos metros atrás -na hora, pareciam quilômetros-, sob um mar de penachos, montes de turistas empolgados dançavam e acenavam candidamente para a plateia.

Perplexidade
O japonês estava lá, tirando fotos da arquibancada perplexa. Como autênticos mediadores culturais, diretores de harmonia distribuíam empurrões e cascudos, na vã tentativa de apressar os alegres foliões que não entendiam que seus chapéus deviam parecer suave relva verde e rosa em torno do palácio. Teria ficado lindo.
Sem eles, abriu-se um fatal buraco na apresentação, que inviabilizou o sonhado campeonato. A primeira reação foi culpar o japonês, que atravessou o samba por falta da malemolência local.
Mas que nada: ao som dos tambores da Mânguera, todos experimentávamos ali o melhor do Carnaval, cuja graça é ter sido sempre polissêmico e polifônico, mutante, transnacional e surpreendente.


MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA é professora no departamento de história da Universidade Estadual de Campinas (SP) e autora de "Ecos da Folia - Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e 1920" (Cia. das Letras).


Texto Anterior: Feijoada modernista
Próximo Texto: +(L)ivros: Equação verde
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.