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Feijoada modernista
Em "Macunaíma", Mário de Andrade pintou a iguaria como síntese das identidades nacionais
CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Feijoada acaba com a
gente. Por isso o dia é
sábado, quando se pode jiboiar. Mas, dizem,
foi inventada por escravos. O paradoxo: escravos
trabalhavam de sol a sol, como
criariam coisa indigesta por vontade própria?
Comiam mesmo o pão que o diabo amassou; não podiam
contribuir para a dieta nacional. "Contribuição" supõe liberdade; sem ela não há criação
literária ou culinária.
A feijoada deriva do "feijão gordo" enriquecido ao extremo, a ponto de se tornar prato
único. Ela só é compreendida dentro do seu ritual: feijão preto e pertences, a caipirinha de
cachaça (moeda líquida do tráfico negreiro) e a evocação histórica da nacionalidade.
A minifeijoada de boteco na quarta-feira retroage, volta a ser feijão gordo.
No final do século 18 carioca, a alimentação dos escravos estava lastreada em feijão preto,
farinha de mandioca, laranjas e
bananas; além das carnes secas ou toucinhos que os próprios negros podiam comprar com o
produto da venda das suas hortaliças. A origem deve ter sido essa.
Mas, um século depois, ela ainda não era um "prato completo", segundo o folclorista
Câmara Cascudo [1898-1986], que sugere que ela se difundiu como tal em hotéis e pensões.
Foram os modernistas que projetaram a feijoada como prato nacional. Eles tinham necessidade enorme de novos signos para a brasilidade.
A questão estética e política era "acharmos a nossa expressão" em vários planos, e nada
melhor do que o popular feijão, a evocação do cozido português, dos embutidos e pedaços
de porco, além da couve.
Mário de Andrade, em "Macunaíma" (1928), desenhou uma cena imorredoura: a feijoada na casa do fazendeiro
Venceslau Pietro Pietra. Uma alegoria da cozinha nacional e daqueles seres étnicos que o
Brasil colocou em contato.
O festim é presidido por Venceslau (peruano, italiano, Piaimã), um demônio devorador de gente ou "comedor de identidades", conforme interpreta a crítica literária.
O tema da antropofagia, da deglutição cultural, esteve presente em toda a produção modernista, e a feijoada é um caso particular seu.
Esse festim de "Macunaíma" foi magnificamente carnavalizado no filme homônimo
(1969), de Joaquim Pedro de Andrade.
E a graça da evocação continuou com Vinicius de Moraes
("Feijoada à Minha Moda"), que ensinou, em versos engordurados, como fazer uma feijoada sabática.
Ingredientes
O feijão é coisa quase universal. Mas, enquanto o preto e o
rajado "igualam" as classes sociais, o fradinho e o jalo diferenciam preferências de ricos e
pobres. Feijão preto é dominante somente no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.
O tempero relevante da feijoada é a propriedade metonímica de reter o passado de escravidão na cor do feijão, subvertendo o seu sentido.
Dentro e no entorno, a feijoada congraça índios, negros e
brancos, esquecendo que se comiam: uns foram dizimados,
outros feitos escravos; outros,
sempre colonizadores cruéis.
A feijoada, como alegoria, é o
substrato alimentar da irmandade mística dos contrários -a
nação mestiça-, desejada e vista como original do Brasil desde "Casa-Grande e Senzala"
(1933), de Gilberto Freyre.
Coisa de intelectuais, estamos entendidos.
E nada mais "cabeça" do que
a "Dialética da Feijoada"
(1986), de Renato Pompeu,
com o prato feito metáfora das
relações de classe e da dependência diante do imperialismo.
Como ele escreveu, "consagrada pela intelectualidade influenciada pela industrialização, [ela] tem de enfrentar outros pratos simbólicos, e a sua
afirmação como prato nacional-popular tem de ser considerada ainda um processo em
andamento".
Joãosinho Trinta, o carnavalesco, poderia reformular sua
frase célebre: "Quem gosta de
pobreza, e da riqueza da feijoada, é intelectual".
Porque pobre celebra mesmo
com churrasco de boi, a carne
dos ricos, e cerveja. Assim, as
classes sociais se devoram, de
modo cruzado, à mesa. Da deglutição restam, incólumes, só
os ossos do ofício e os do rabo
do porco.
CARLOS ALBERTO DÓRIA é sociólogo, autor de
"A Formação da Culinária Brasileira" (Publifolha), entre outros livros.
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