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A genialidade de Mozart
Em palestra proferida em dezembro no Salão Nobre da Sala São Paulo, o economista e professor do Ibmec Eduardo Giannetti estabelece relações entre o compositor e o "século das luzes"
EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Suspeito de que alguns
de vocês possam estar
se perguntando: "Como esse economista
veio parar aqui?" A
pergunta procede. Confesso
que, quando recebi o convite da
Casa do Saber para falar no
"Uma Hora Antes..." [palestras
que antecipam as apresentações da Orquestra Sinfônica do
Estado de São Paulo] do programa Mozart da Osesp, hesitei
bastante antes de decidir. Não
tenho formação em música
-sequer leio uma partitura.
Um mínimo de prudência recomendaria evitar o desafio.
Por outro lado, a fisgada da
tentação era forte. Há mais de
20 anos tenho feito da audição
quase diária de Mozart um pequeno ritual doméstico -uma
espécie de "prece matinal cotidiana". Ali estava uma oportunidade de compartilhar, e
quem sabe elucidar para mim
mesmo, a enorme atração que
sua música desperta.
Mas o ponto decisivo não foi
esse. Acontece que o tema proposto -"o gênio de Mozart e as
condições de sua criação"- me
permitiu vislumbrar a possibilidade de juntar a paixão amadora que alimento por sua música a minha área profissional
de pesquisa. Como estudioso
de história das idéias, tenho especial interesse pelo iluminismo europeu do século 18. Por
que não usar essa bagagem na
tentativa de identificar relações relevantes entre Mozart e
o "século das luzes"? E assim a
tentação venceu a prudência.
Resolvi correr o risco.
Encanto perene
As perguntas que pretendo
abordar são basicamente três.
Primeira: no que consiste a genialidade do músico austríaco?
Segunda: qual a gênese do gênio de Mozart? E, por fim, o que
sua música tem a nos dizer no
século 21? Qual o mistério do
seu perene poder de encanto?
Começo pela natureza do gênio de Mozart. A trilha do argumento é do geral para o particular. O que define a genialidade em arte? Uma primeira
aproximação é a permanência
no tempo. A obra de arte genial
encerra o dom da perpétua revivescência -ela dribla de algum modo o efeito debilitador
da passagem do tempo e adquire o poder de dizer coisas novas
e reveladoras a sucessivas gerações de apreciadores.
Essa propriedade, vale dizer,
define um sentido claro em que
a produção artística se distingue da produção científica, por
mais genial que esta seja. As
grandes obras da ciência, como
os tratados hipocráticos, os
"Principia" de Newton [1643-1727] ou a "Botanica" de Lineu
[1707-78], foram criações que
marcaram época, mas que a
passagem do tempo reduziu à
condição de peças de antiquário. Se chegamos a nos debruçar sobre elas -o que poucos
fazem- é com o espírito de alguém que visita um museu de
arqueologia, exuma cadáveres
ou decifra documentos antigos.
Com a arte é diferente. O melhor da produção artística de
uma época, como o drama grego, a pintura renascentista,
Shakespeare ou Aleijadinho,
são obras que parecem dotadas
do dom da eterna juventude.
Embora também se prestem à
lupa antiquária do historiador
cultural, elas conseguem neutralizar a natural senescência a
que estão sujeitos os produtos
da mente: falam diretamente
aos espíritos vivos das novas
gerações. A grande arte, ao contrário da ciência, não enterra o
seu passado.
O processo seletivo, no entanto, é brutal. Muitos são chamados, mas poucos, os escolhidos. No caso da música culta ou
erudita, por exemplo, um levantamento sistemático feito
há alguns anos revela que, embora tenham existido milhares
de compositores nos últimos
quatro séculos, as obras que são
ainda regularmente executadas no mundo foram compostas por não mais que cerca de
250 autores. E mais: 36 desses
compositores respondem por
75% das obras executadas, sendo que apenas três deles
-Bach, Mozart e Beethoven-
perfazem 20% do total.
Se existe algum gênio da música que por qualquer motivo se
perdeu no caminho e acabou
soterrado por esse processo
brutalmente seletivo é difícil
saber. Uma coisa, no entanto, é
certa. Seria absurdo negar o
predicado de genialidade ao seletíssimo grupo dos que sobreviveram e triunfaram sobre as
garras do tempo.
Contexto da obra
A obra de arte genial transcende à sua época. Mas ela é
fruto de uma época -de um
tempo e um lugar determinados. Toda produção artística
tem uma história e guarda uma
relação profunda, de afirmação
ou negação, com o contexto artístico e intelectual em que foi
concebida. A formação do artista se dá nos marcos de uma tradição estética e cultural mais
ou menos definida e o produto
do seu trabalho inevitavelmente reflete, de forma mais ou menos consciente, os valores de
uma época -o "clima de opinião" ou aquilo que os alemães
denominam "zeitgeist", ou seja, o espírito ou ânimo definidor de um período histórico
particular.
Duzentos e cinqüenta anos
nos separam do nascimento de
Mozart. Os seus 36 anos de intensa e quase vertiginosa atividade musical transcorreram
inteiramente dentro do século
18. Sua morte, em 1791, praticamente coincide com o fim do
"ancien régime" e o desfecho
dramático do século das luzes
que foi a Revolução Francesa.
O legado mozartiano é fruto
desse período definidor da modernidade. Ele é herdeiro de
uma rica tradição na história da
música -a escola clássica austríaca- e ele reflete princípios,
crenças e valores emblemáticos do iluminismo. A genialidade de Mozart, desejo mostrar,
resulta de um duplo movimento: do modo particular como
incorporou a tradição musical a
que pertence e da maneira como conseguiu dar expressão
universal a um ponto vital do
"zeitgeist" iluminista.
Uma tradição estética, qualquer que seja, estabelece as regras e restrições que devem ser
obedecidas no trabalho de criação. O artista internaliza essas
regras e restrições formais e
exerce sua criatividade fazendo
escolhas dentro dos limites que
elas definem.
De tempos em tempos, é claro, surgem aqueles que se propõem a subverter as regras e
restrições operantes, ou seja,
artistas que não se contentam
em fazer escolhas dentro dos
marcos definidos e aceitos pelos adeptos de uma tradição estética -colegas, críticos e o público-, mas almejam ir além e
escolher por si mesmos as regras do fazer criativo. A geração
de valor na arte pode resultar
tanto de escolhas feitas no interior de uma tradição -criações
do lado de cá da fronteira-, como de escolhas que subvertem
ou suspendem regras e convenções vigentes -transgressões
da fronteira.
Em sua formação musical
Mozart assimilou desde muito
cedo, sob a rigorosa tutela do
pai, Leopold, a tradição clássica
austríaca que tinha em Joseph
Haydn [1732-1809] a sua mais
consumada expressão. Na juventude, Mozart se empenhou
com extraordinário afinco ao
desafio de dominar essa tradição. Evidências disso são, por
exemplo, as anotações minuciosas que fez sobre partituras
das fugas de Bach (buscando
aprimorar a técnica do contraponto) e dos quartetos opus 17
de Haydn. O maestro Kucharz,
que regeu a estréia de "Don
Giovanni" em Praga, em 1787,
registra ter ouvido de Mozart,
durante os ensaios, um verdadeiro desabafo a esse respeito:
"Eu não poupei nem cuidados
nem trabalho a fim de produzir
algo excelente para Praga.
Além disso, é um erro pensar
que a prática da minha arte se
tornou fácil para mim. Eu lhe
asseguro, caro amigo, ninguém
mais dedicou tanto empenho
ao estudo de composição quanto eu. Não existe talvez um único mestre da música cuja obra
eu não tenha freqüente e diligentemente estudado".
Mas o reconhecimento definitivo da maestria conquistada
por Mozart no âmbito da escola
austríaca veio de ninguém menos que o próprio Haydn. Em
comentário feito ao pai de Mozart, logo após uma audição
privada, em 1785, de seis quartetos recém-compostos, Haydn
afirmou: "Perante Deus e como
um homem honesto, quero dizer-lhe que seu filho é o maior
compositor de que tenho conhecimento, seja em pessoa ou
pelo nome. Ele tem bom gosto
e, mais que isso, possui o mais
profundo conhecimento de
composição".
Seria difícil pedir mais.
Haydn, é bom lembrar, não era
dado a hipérboles. Ao publicar
os quartetos, meses depois,
Mozart dedicou-os ao mestre.
A linha evolutiva que vai de
Haydn a Mozart é cristalina. De
fato, creio que o melhor antídoto contra a idéia equivocada do
gênio de Mozart como um raio
em céu azul -como algo milagroso e inexplicável- é simplesmente uma boa audição
das maiores realizações de
Haydn, como as "Sinfonias de
Paris" ou o esplêndido oratório
"A Criação". A compreensão da
condição de possibilidade de
um Mozart -e da natureza peculiar do seu gênio- só tem a
ganhar com o reconhecimento
da profunda continuidade e
perfeita afinidade estética entre sua obra e a do mestre do
classicismo austríaco.
No que consiste a genialidade de Mozart? Perícia técnica e
apuro formal fazem parte da
resposta, mas estão longe de esgotá-la. O legado mozartiano
não é uniforme. Ele descreve
uma curva ascendente, com um
claro ponto de inflexão rumo à
eternidade nos "anos de ouro"
da última década -o período
que se abre com a mudança do
músico de Salzburgo para Viena em 1781.
Mozart não foi um revolucionário, como Beethoven e
Schoenberg. Ele jamais se propôs a subverter ou transgredir
os marcos da tradição na qual
se fez músico. A sua genialidade
resulta de um tipo particular de
tensionamento -uma tensão
construída passo a passo ao
longo da curva ascendente do
seu percurso e que atinge o seu
ápice na fase vienense.
O que é assombroso constatar é como a expansão do potencial criativo de Mozart foi
conquistada do lado de cá da
fronteira, sem que jamais precisasse afrouxar o arco teso de
uma estrita adesão aos rigores
formais do código clássico. Sua
inigualável inventividade é
pautada por uma não menos
impressionante contenção estética e pela impecável aderência às regras e restrições da escola austríaca. Mozart desloca
a fronteira sem transgredi-la.
Ele explora no limite da máxima tensão o conflito entre o
ímpeto desbravador do seu espírito, de um lado, e os limites
definidos pelo contrato estético do classicismo, de outro.
O efeito eletrizante dessa
tensão, fruto de um verdadeiro
furor criativo submetido a uma
não menos exigente disciplina
formal, projeta a obra de Mozart a um dos pontos mais destacados e sublimes da música
universal. O lapso ocasional de
um otimismo fácil ou maneirismo frívolo apenas ressalta e
torna ainda mais saliente a excepcional integridade de sua
produção.
Mozart arrancou palmo a
palmo o direito de expandir o
território de sua liberdade expressiva. É difícil imaginar que
o grau de tensão entre respeito
à tradição e ímpeto desbravador jamais tenha sido levado a
um ponto tão extremo na história da música. Fogo esculpido, relâmpago lapidado: paixão
medida.
Divisor de águas
Em Mozart ouvimos o
"grand finale" de um capítulo
da história da música. Depois
dele, dirão alguns, o dilúvio. Seria exagero supor que ele tenha
esgotado o universo das possibilidades de invenção nos marcos do classicismo. Mas não seria descabido especular que o
peso esmagador do seu gênio
tenha contribuído para impelir
a geração de Beethoven a explorar o lado de lá da fronteira
-a zarpar em busca de novas
paragens e embarcar na aventura radical da ruptura romântica. Pois se é verdade, como dizia Marx, que "a tradição de todas as gerações mortas oprime
como um pesadelo o cérebro
dos vivos", o que dizer de uma
tradição na qual desponta e floresce um Mozart?
O ponto que desejo destacar,
contudo, é que a esse movimento interno na história da
música no final do século 18
corresponde um movimento
mais amplo, no contexto intelectual do período, caracterizado grosso modo pelo apogeu e
declínio do iluminismo europeu. O legado de Mozart, ouso crer, é não só o coroamento de
um percurso estético, mas a expressão musical mais viva e
contundente das crenças, valores e sonhos de um tempo que
"ousou saber" -de um projeto
transformador que fez da luz da
razão sua principal arma de luta e da emancipação intelectual
e moral dos indivíduos sua
grande bandeira.
"Aquele que tem ciência e arte", refletiu Goethe, "tem também religião; quem não tem nenhuma delas, que tenha religião!" Há muito de arte na ciência, assim com há muito de
ciência na arte. As maiores realizações do espírito humano
são totalidades complexas que
não respeitam as convenções
da linguagem e demarcações
burocráticas do saber. O valor
de uma criação artística, em
qualquer gênero, combina elementos sensíveis, emocionais e
cognitivos. O prazer e encanto
dos sentidos é apenas a porta
de acesso para uma experiência
de fruição que mobiliza um amplo espectro de faculdades da
mente -sensibilidade e razão,
intelecto e emoção.
Na obra de Mozart, o espírito de uma época se fez sonoridade melódica e contagiante harmonia; nela encontramos a mais completa, eloqüente e inspirada manifestação da crença iluminista na ordem natural
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Uma das características salientes do iluminismo do século 18 é que nele arte e ciência,
embora diferenciadas em seu
modo de apreender o mundo,
eram partes de uma mesma
cultura e projeto. Ao contrário
do que viria a ocorrer mais tarde, quando o acirramento da cisão entre os adeptos da razão,
de um lado, e os adeptos da
emoção, de outro, provocaria
uma fragmentação da consciência européia, no século 18
prevalecia uma cultura bem integrada em que poetas enalteciam os feitos da ciência e os
pensadores celebravam as realizações da arte.
No pensamento iluminista,
arte e ciência não haviam se
tornado ainda, como ocorreria
de forma crescente a partir do
século 19, "duas culturas" separadas por um vasto abismo de
incompreensão e hostilidade
recíprocas. Eram duas forças
aliadas trabalhando, cada uma
a seu modo, em prol de uma visão compartilhada.
As evidências textuais dessa
unidade entre arte e ciência no
século das luzes dariam para
encher um tratado. Existe, contudo, uma passagem que ilustra
com especial clarividência esse
ponto e que nos remete diretamente ao cerne do vínculo entre a obra de Mozart e o "zeitgeist" iluminista. Trata-se de
uma observação feita pelo filósofo moral e expoente do iluminismo escocês, Adam Smith
[1723-90], num ensaio sobre
estética publicado (postumamente) em 1795. Nesse ensaio,
o pai da moderna teoria econômica traça um paralelo entre o
prazer da música, de um lado, e
aquele proporcionado pelo estudo de uma ciência teórica, de
outro: "Quando contemplamos
aquela imensa variedade de
sons agradáveis e melodiosos,
organizados e assimilados de
acordo com a sua harmonia e
sucessão, formando um sistema regular e completo, a mente
na realidade experimenta não
apenas um prazer sensível
muito grande, mas também um
prazer intelectual intenso, semelhante àquele que ela traz ao
contemplar um grande sistema
em qualquer ciência".
Uma das melhores definições sintéticas do iluminismo,
formulada por Alfred Whitehead [1861-1947, matemático
britânico], retrata-o como
"uma idade da razão baseada na
fé". Fé em quê? Fé no poder da
razão para transformar o mundo e fé na natureza como um
princípio racional e como expressão de uma inteligência
transcendente e benévola. Na
idéia de natureza do século 18,
o bem, o belo e o verdadeiro
-ética, estética e ciência- convergem harmoniosamente: "Os
axiomas da física traduzem as
leis da ética e todo processo natural é a versão de uma sentença moral; a lei moral aloja-se no
centro da natureza e irradia-se
pela circunferência" [do escritor norte-americano Ralph
Waldo Emerson, 1803-82].
Da física newtoniana à teoria
econômica, a ciência iluminista
procurou sistematicamente
desvendar a existência de ordenamentos complexos auto-regulados -a existência de ordem onde se esperaria encontrar o caos. Como ouvir as palavras de Adam Smith sobre a relação entre música e ciência
-sobre o prazer a um só tempo
sensível e intelectual que proporcionam- sem associá-las
imediatamente às majestosas
construções de Mozart no apogeu de sua glória? Sem nos lembrarmos desses ordenamentos
de suprema beleza e luminosa
complexidade que encontramos em sua obra?
Leibniz descreve a grande
música como "um exercício inconsciente de matemática no
qual a mente efetua cálculos
sem se dar conta do que está fazendo". Schopenhauer emenda
a observação e diz que "a música é um exercício inconsciente
de metafísica no qual a mente
não se dá conta de que está filosofando". No caso específico de
Mozart, creio, não precisamos
escolher entre uma ou outra
dessas duas proposições -ambas se prestam como uma luva
à apreciação e elucidação de
sua obra.
A estrutura matemática e o
apego à simetria formal das
composições transparece mesmo para aqueles que, como eu,
não possuem qualquer treino
em música. Quanto à metafísica, a mensagem é clara e fulminante como um jato de luz, em
especial no ápice criativo que
são as sinfonias da maturidade.
O que elas infundem na alma
receptiva é um estado de exaltação do ânimo -um sentimento de confiança cósmica-
que redime o universo e reafirma a existência por si mesma,
independente de qualquer razão ou juízo reflexivo.
Assim como existe um componente estético nas construções da ciência abstrata, existe
um elemento cognitivo na fruição do belo. A experiência estética ultrapassa a esfera do prazer sensível e do transporte
emotivo. Ela produz ressonâncias na corda metafísica.
Na obra de Mozart, o espírito
de uma época se fez sonoridade
melódica e contagiante harmonia. Nela encontramos a mais
completa, eloqüente e inspirada manifestação da crença iluminista na ordem natural -essa premissa oculta que, como
um raio ordenador, atravessa
quase tudo que de melhor o século das luzes nos foi capaz de
legar. Tônico metafísico, música das esferas. Ao som dessas
notas, o cosmos baila e o sentido irrompe do firmamento.
Gênese
Como entender a gênese de
um gênio da estatura de Mozart? A imagem da criança prodígio, que aos oito anos arrebatou com seu virtuosismo ao
piano as cortes de Londres e
Versailles, pode sugerir pistas
enganosas -a idéia de dons sobrenaturais ou talentos geneticamente determinados. Aos
olhos de Leopold, por exemplo,
seu caçula era "o milagre que
Deus havia permitido nascer
em Salzburgo". O assombro,
contudo, embora compreensível, não precisa enveredar para
o fatalismo.
Como pondera o biológo
americano Edward Wilson, ao
analisar a relação entre genes e
cultura: "Não existe um gene
para tocar bem piano, ou mesmo algum tipo de "gene Rubinstein" para tocá-lo extremamente bem. O que há, em vez disso,
é uma ampla conjunção de genes cujos efeitos favorecem
destreza manual, criatividade,
expressão emotiva, foco, espectro de atenção e controle de
tom, ritmo e timbre... Essa conjunção também torna a criança
bem-dotada propensa a tirar
proveito da oportunidade certa
na hora certa. Ela tenta um instrumento musical, provavelmente dado por seus pais musicalmente talentosos, recebe
deles o estímulo de um elogio
merecido, repete o feito, é outra vez estimulada e logo abraça
aquilo que se tornará a preocupação central de sua vida".
Nem todo prodígio é um gênio, assim como nem todo gênio é (ou foi) um prodígio. Mozart foi um prodígio que se fez
gênio. O seu caminho de criança prodígio a gênio maduro,
procurei mostrar, revela o acerto do verso de Hesíodo: "Ante
os portais da excelência, os altos deuses puseram o suor".
O surgimento de um Mozart,
em suma, pode ser entendido
como o efeito da convergência,
estatisticamente improvável,
de um grande número de circunstâncias felizes: excepcional dotação genética; a fortuna
de uma educação exigente numa esplêndida tradição musical; a convivência com modelos
inspiradores exemplares; um
clima cultural especialmente
propício e uma energia pessoal
vulcânica ligada a um não menos generoso impulso criador.
Acidentes felizes, é bom lembrar, acontecem.
A vida oprime, o som liberta.
Mozart, é verdade, não tem a
elevação espiritual de Bach ou a
profudenza emotiva de Beethoven. Nem por isso, contudo,
é menor que eles. Acima de tudo que conheço, reverencio ou
posso conceber, a vibração pulsante e a perfeição melódica
destes sons traduzem, aos
meus ouvidos, a idéia de um
universo bom. O que pode qualquer doutrina ou religião instituída, calcada no miasma do
verbo, diante da verdade infinita que emana de sua música?
Na obra de Mozart sentimos
pulsar a força da crença, senão
na existência, pelo menos na
possibilidade de existência de
uma ordem cósmica que nos
transcende. Alguma coisa muito além da nossa capacidade de
compreensão, mas que nos é facultado entrever ou intuir no
contato com o universo da música. Que a esperança viril e o
ânimo luminoso dessa arte estejam conosco na difícil jornada que o século 21 prenuncia.
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA é economista e professor do Ibmec-SP. É autor, entre
outros livros, de "Auto-Engano" (Companhia
das Letras).
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