São Paulo, domingo, 07 de janeiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A genialidade de Mozart

Em palestra proferida em dezembro no Salão Nobre da Sala São Paulo, o economista e professor do Ibmec Eduardo Giannetti estabelece relações entre o compositor e o "século das luzes"

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Suspeito de que alguns de vocês possam estar se perguntando: "Como esse economista veio parar aqui?" A pergunta procede. Confesso que, quando recebi o convite da Casa do Saber para falar no "Uma Hora Antes..." [palestras que antecipam as apresentações da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo] do programa Mozart da Osesp, hesitei bastante antes de decidir. Não tenho formação em música -sequer leio uma partitura.
Um mínimo de prudência recomendaria evitar o desafio.
Por outro lado, a fisgada da tentação era forte. Há mais de 20 anos tenho feito da audição quase diária de Mozart um pequeno ritual doméstico -uma espécie de "prece matinal cotidiana". Ali estava uma oportunidade de compartilhar, e quem sabe elucidar para mim mesmo, a enorme atração que sua música desperta.
Mas o ponto decisivo não foi esse. Acontece que o tema proposto -"o gênio de Mozart e as condições de sua criação"- me permitiu vislumbrar a possibilidade de juntar a paixão amadora que alimento por sua música a minha área profissional de pesquisa. Como estudioso de história das idéias, tenho especial interesse pelo iluminismo europeu do século 18. Por que não usar essa bagagem na tentativa de identificar relações relevantes entre Mozart e o "século das luzes"? E assim a tentação venceu a prudência. Resolvi correr o risco.

Encanto perene
As perguntas que pretendo abordar são basicamente três. Primeira: no que consiste a genialidade do músico austríaco? Segunda: qual a gênese do gênio de Mozart? E, por fim, o que sua música tem a nos dizer no século 21? Qual o mistério do seu perene poder de encanto?
Começo pela natureza do gênio de Mozart. A trilha do argumento é do geral para o particular. O que define a genialidade em arte? Uma primeira aproximação é a permanência no tempo. A obra de arte genial encerra o dom da perpétua revivescência -ela dribla de algum modo o efeito debilitador da passagem do tempo e adquire o poder de dizer coisas novas e reveladoras a sucessivas gerações de apreciadores.
Essa propriedade, vale dizer, define um sentido claro em que a produção artística se distingue da produção científica, por mais genial que esta seja. As grandes obras da ciência, como os tratados hipocráticos, os "Principia" de Newton [1643-1727] ou a "Botanica" de Lineu [1707-78], foram criações que marcaram época, mas que a passagem do tempo reduziu à condição de peças de antiquário. Se chegamos a nos debruçar sobre elas -o que poucos fazem- é com o espírito de alguém que visita um museu de arqueologia, exuma cadáveres ou decifra documentos antigos.
Com a arte é diferente. O melhor da produção artística de uma época, como o drama grego, a pintura renascentista, Shakespeare ou Aleijadinho, são obras que parecem dotadas do dom da eterna juventude. Embora também se prestem à lupa antiquária do historiador cultural, elas conseguem neutralizar a natural senescência a que estão sujeitos os produtos da mente: falam diretamente aos espíritos vivos das novas gerações. A grande arte, ao contrário da ciência, não enterra o seu passado.
O processo seletivo, no entanto, é brutal. Muitos são chamados, mas poucos, os escolhidos. No caso da música culta ou erudita, por exemplo, um levantamento sistemático feito há alguns anos revela que, embora tenham existido milhares de compositores nos últimos quatro séculos, as obras que são ainda regularmente executadas no mundo foram compostas por não mais que cerca de 250 autores. E mais: 36 desses compositores respondem por 75% das obras executadas, sendo que apenas três deles -Bach, Mozart e Beethoven- perfazem 20% do total.
Se existe algum gênio da música que por qualquer motivo se perdeu no caminho e acabou soterrado por esse processo brutalmente seletivo é difícil saber. Uma coisa, no entanto, é certa. Seria absurdo negar o predicado de genialidade ao seletíssimo grupo dos que sobreviveram e triunfaram sobre as garras do tempo.

Contexto da obra
A obra de arte genial transcende à sua época. Mas ela é fruto de uma época -de um tempo e um lugar determinados. Toda produção artística tem uma história e guarda uma relação profunda, de afirmação ou negação, com o contexto artístico e intelectual em que foi concebida. A formação do artista se dá nos marcos de uma tradição estética e cultural mais ou menos definida e o produto do seu trabalho inevitavelmente reflete, de forma mais ou menos consciente, os valores de uma época -o "clima de opinião" ou aquilo que os alemães denominam "zeitgeist", ou seja, o espírito ou ânimo definidor de um período histórico particular.
Duzentos e cinqüenta anos nos separam do nascimento de Mozart. Os seus 36 anos de intensa e quase vertiginosa atividade musical transcorreram inteiramente dentro do século 18. Sua morte, em 1791, praticamente coincide com o fim do "ancien régime" e o desfecho dramático do século das luzes que foi a Revolução Francesa.
O legado mozartiano é fruto desse período definidor da modernidade. Ele é herdeiro de uma rica tradição na história da música -a escola clássica austríaca- e ele reflete princípios, crenças e valores emblemáticos do iluminismo. A genialidade de Mozart, desejo mostrar, resulta de um duplo movimento: do modo particular como incorporou a tradição musical a que pertence e da maneira como conseguiu dar expressão universal a um ponto vital do "zeitgeist" iluminista.
Uma tradição estética, qualquer que seja, estabelece as regras e restrições que devem ser obedecidas no trabalho de criação. O artista internaliza essas regras e restrições formais e exerce sua criatividade fazendo escolhas dentro dos limites que elas definem.
De tempos em tempos, é claro, surgem aqueles que se propõem a subverter as regras e restrições operantes, ou seja, artistas que não se contentam em fazer escolhas dentro dos marcos definidos e aceitos pelos adeptos de uma tradição estética -colegas, críticos e o público-, mas almejam ir além e escolher por si mesmos as regras do fazer criativo. A geração de valor na arte pode resultar tanto de escolhas feitas no interior de uma tradição -criações do lado de cá da fronteira-, como de escolhas que subvertem ou suspendem regras e convenções vigentes -transgressões da fronteira.
Em sua formação musical Mozart assimilou desde muito cedo, sob a rigorosa tutela do pai, Leopold, a tradição clássica austríaca que tinha em Joseph Haydn [1732-1809] a sua mais consumada expressão. Na juventude, Mozart se empenhou com extraordinário afinco ao desafio de dominar essa tradição. Evidências disso são, por exemplo, as anotações minuciosas que fez sobre partituras das fugas de Bach (buscando aprimorar a técnica do contraponto) e dos quartetos opus 17 de Haydn. O maestro Kucharz, que regeu a estréia de "Don Giovanni" em Praga, em 1787, registra ter ouvido de Mozart, durante os ensaios, um verdadeiro desabafo a esse respeito: "Eu não poupei nem cuidados nem trabalho a fim de produzir algo excelente para Praga. Além disso, é um erro pensar que a prática da minha arte se tornou fácil para mim. Eu lhe asseguro, caro amigo, ninguém mais dedicou tanto empenho ao estudo de composição quanto eu. Não existe talvez um único mestre da música cuja obra eu não tenha freqüente e diligentemente estudado".
Mas o reconhecimento definitivo da maestria conquistada por Mozart no âmbito da escola austríaca veio de ninguém menos que o próprio Haydn. Em comentário feito ao pai de Mozart, logo após uma audição privada, em 1785, de seis quartetos recém-compostos, Haydn afirmou: "Perante Deus e como um homem honesto, quero dizer-lhe que seu filho é o maior compositor de que tenho conhecimento, seja em pessoa ou pelo nome. Ele tem bom gosto e, mais que isso, possui o mais profundo conhecimento de composição".
Seria difícil pedir mais. Haydn, é bom lembrar, não era dado a hipérboles. Ao publicar os quartetos, meses depois, Mozart dedicou-os ao mestre.
A linha evolutiva que vai de Haydn a Mozart é cristalina. De fato, creio que o melhor antídoto contra a idéia equivocada do gênio de Mozart como um raio em céu azul -como algo milagroso e inexplicável- é simplesmente uma boa audição das maiores realizações de Haydn, como as "Sinfonias de Paris" ou o esplêndido oratório "A Criação". A compreensão da condição de possibilidade de um Mozart -e da natureza peculiar do seu gênio- só tem a ganhar com o reconhecimento da profunda continuidade e perfeita afinidade estética entre sua obra e a do mestre do classicismo austríaco.
No que consiste a genialidade de Mozart? Perícia técnica e apuro formal fazem parte da resposta, mas estão longe de esgotá-la. O legado mozartiano não é uniforme. Ele descreve uma curva ascendente, com um claro ponto de inflexão rumo à eternidade nos "anos de ouro" da última década -o período que se abre com a mudança do músico de Salzburgo para Viena em 1781.
Mozart não foi um revolucionário, como Beethoven e Schoenberg. Ele jamais se propôs a subverter ou transgredir os marcos da tradição na qual se fez músico. A sua genialidade resulta de um tipo particular de tensionamento -uma tensão construída passo a passo ao longo da curva ascendente do seu percurso e que atinge o seu ápice na fase vienense.
O que é assombroso constatar é como a expansão do potencial criativo de Mozart foi conquistada do lado de cá da fronteira, sem que jamais precisasse afrouxar o arco teso de uma estrita adesão aos rigores formais do código clássico. Sua inigualável inventividade é pautada por uma não menos impressionante contenção estética e pela impecável aderência às regras e restrições da escola austríaca. Mozart desloca a fronteira sem transgredi-la. Ele explora no limite da máxima tensão o conflito entre o ímpeto desbravador do seu espírito, de um lado, e os limites definidos pelo contrato estético do classicismo, de outro.
O efeito eletrizante dessa tensão, fruto de um verdadeiro furor criativo submetido a uma não menos exigente disciplina formal, projeta a obra de Mozart a um dos pontos mais destacados e sublimes da música universal. O lapso ocasional de um otimismo fácil ou maneirismo frívolo apenas ressalta e torna ainda mais saliente a excepcional integridade de sua produção.
Mozart arrancou palmo a palmo o direito de expandir o território de sua liberdade expressiva. É difícil imaginar que o grau de tensão entre respeito à tradição e ímpeto desbravador jamais tenha sido levado a um ponto tão extremo na história da música. Fogo esculpido, relâmpago lapidado: paixão medida.

Divisor de águas
Em Mozart ouvimos o "grand finale" de um capítulo da história da música. Depois dele, dirão alguns, o dilúvio. Seria exagero supor que ele tenha esgotado o universo das possibilidades de invenção nos marcos do classicismo. Mas não seria descabido especular que o peso esmagador do seu gênio tenha contribuído para impelir a geração de Beethoven a explorar o lado de lá da fronteira -a zarpar em busca de novas paragens e embarcar na aventura radical da ruptura romântica. Pois se é verdade, como dizia Marx, que "a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos", o que dizer de uma tradição na qual desponta e floresce um Mozart?
O ponto que desejo destacar, contudo, é que a esse movimento interno na história da música no final do século 18 corresponde um movimento mais amplo, no contexto intelectual do período, caracterizado grosso modo pelo apogeu e declínio do iluminismo europeu. O legado de Mozart, ouso crer, é não só o coroamento de um percurso estético, mas a expressão musical mais viva e contundente das crenças, valores e sonhos de um tempo que "ousou saber" -de um projeto transformador que fez da luz da razão sua principal arma de luta e da emancipação intelectual e moral dos indivíduos sua grande bandeira. "Aquele que tem ciência e arte", refletiu Goethe, "tem também religião; quem não tem nenhuma delas, que tenha religião!" Há muito de arte na ciência, assim com há muito de ciência na arte. As maiores realizações do espírito humano são totalidades complexas que não respeitam as convenções da linguagem e demarcações burocráticas do saber. O valor de uma criação artística, em qualquer gênero, combina elementos sensíveis, emocionais e cognitivos. O prazer e encanto dos sentidos é apenas a porta de acesso para uma experiência de fruição que mobiliza um amplo espectro de faculdades da mente -sensibilidade e razão, intelecto e emoção.


Na obra de Mozart, o espírito de uma época se fez sonoridade melódica e contagiante harmonia; nela encontramos a mais completa, eloqüente e inspirada manifestação da crença iluminista na ordem natural


Uma das características salientes do iluminismo do século 18 é que nele arte e ciência, embora diferenciadas em seu modo de apreender o mundo, eram partes de uma mesma cultura e projeto. Ao contrário do que viria a ocorrer mais tarde, quando o acirramento da cisão entre os adeptos da razão, de um lado, e os adeptos da emoção, de outro, provocaria uma fragmentação da consciência européia, no século 18 prevalecia uma cultura bem integrada em que poetas enalteciam os feitos da ciência e os pensadores celebravam as realizações da arte.
No pensamento iluminista, arte e ciência não haviam se tornado ainda, como ocorreria de forma crescente a partir do século 19, "duas culturas" separadas por um vasto abismo de incompreensão e hostilidade recíprocas. Eram duas forças aliadas trabalhando, cada uma a seu modo, em prol de uma visão compartilhada.
As evidências textuais dessa unidade entre arte e ciência no século das luzes dariam para encher um tratado. Existe, contudo, uma passagem que ilustra com especial clarividência esse ponto e que nos remete diretamente ao cerne do vínculo entre a obra de Mozart e o "zeitgeist" iluminista. Trata-se de uma observação feita pelo filósofo moral e expoente do iluminismo escocês, Adam Smith [1723-90], num ensaio sobre estética publicado (postumamente) em 1795. Nesse ensaio, o pai da moderna teoria econômica traça um paralelo entre o prazer da música, de um lado, e aquele proporcionado pelo estudo de uma ciência teórica, de outro: "Quando contemplamos aquela imensa variedade de sons agradáveis e melodiosos, organizados e assimilados de acordo com a sua harmonia e sucessão, formando um sistema regular e completo, a mente na realidade experimenta não apenas um prazer sensível muito grande, mas também um prazer intelectual intenso, semelhante àquele que ela traz ao contemplar um grande sistema em qualquer ciência".
Uma das melhores definições sintéticas do iluminismo, formulada por Alfred Whitehead [1861-1947, matemático britânico], retrata-o como "uma idade da razão baseada na fé". Fé em quê? Fé no poder da razão para transformar o mundo e fé na natureza como um princípio racional e como expressão de uma inteligência transcendente e benévola. Na idéia de natureza do século 18, o bem, o belo e o verdadeiro -ética, estética e ciência- convergem harmoniosamente: "Os axiomas da física traduzem as leis da ética e todo processo natural é a versão de uma sentença moral; a lei moral aloja-se no centro da natureza e irradia-se pela circunferência" [do escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson, 1803-82].
Da física newtoniana à teoria econômica, a ciência iluminista procurou sistematicamente desvendar a existência de ordenamentos complexos auto-regulados -a existência de ordem onde se esperaria encontrar o caos. Como ouvir as palavras de Adam Smith sobre a relação entre música e ciência -sobre o prazer a um só tempo sensível e intelectual que proporcionam- sem associá-las imediatamente às majestosas construções de Mozart no apogeu de sua glória? Sem nos lembrarmos desses ordenamentos de suprema beleza e luminosa complexidade que encontramos em sua obra?
Leibniz descreve a grande música como "um exercício inconsciente de matemática no qual a mente efetua cálculos sem se dar conta do que está fazendo". Schopenhauer emenda a observação e diz que "a música é um exercício inconsciente de metafísica no qual a mente não se dá conta de que está filosofando". No caso específico de Mozart, creio, não precisamos escolher entre uma ou outra dessas duas proposições -ambas se prestam como uma luva à apreciação e elucidação de sua obra. A estrutura matemática e o apego à simetria formal das composições transparece mesmo para aqueles que, como eu, não possuem qualquer treino em música. Quanto à metafísica, a mensagem é clara e fulminante como um jato de luz, em especial no ápice criativo que são as sinfonias da maturidade.
O que elas infundem na alma receptiva é um estado de exaltação do ânimo -um sentimento de confiança cósmica- que redime o universo e reafirma a existência por si mesma, independente de qualquer razão ou juízo reflexivo. Assim como existe um componente estético nas construções da ciência abstrata, existe um elemento cognitivo na fruição do belo. A experiência estética ultrapassa a esfera do prazer sensível e do transporte emotivo. Ela produz ressonâncias na corda metafísica.
Na obra de Mozart, o espírito de uma época se fez sonoridade melódica e contagiante harmonia. Nela encontramos a mais completa, eloqüente e inspirada manifestação da crença iluminista na ordem natural -essa premissa oculta que, como um raio ordenador, atravessa quase tudo que de melhor o século das luzes nos foi capaz de legar. Tônico metafísico, música das esferas. Ao som dessas notas, o cosmos baila e o sentido irrompe do firmamento.

Gênese
Como entender a gênese de um gênio da estatura de Mozart? A imagem da criança prodígio, que aos oito anos arrebatou com seu virtuosismo ao piano as cortes de Londres e Versailles, pode sugerir pistas enganosas -a idéia de dons sobrenaturais ou talentos geneticamente determinados. Aos olhos de Leopold, por exemplo, seu caçula era "o milagre que Deus havia permitido nascer em Salzburgo". O assombro, contudo, embora compreensível, não precisa enveredar para o fatalismo.
Como pondera o biológo americano Edward Wilson, ao analisar a relação entre genes e cultura: "Não existe um gene para tocar bem piano, ou mesmo algum tipo de "gene Rubinstein" para tocá-lo extremamente bem. O que há, em vez disso, é uma ampla conjunção de genes cujos efeitos favorecem destreza manual, criatividade, expressão emotiva, foco, espectro de atenção e controle de tom, ritmo e timbre... Essa conjunção também torna a criança bem-dotada propensa a tirar proveito da oportunidade certa na hora certa. Ela tenta um instrumento musical, provavelmente dado por seus pais musicalmente talentosos, recebe deles o estímulo de um elogio merecido, repete o feito, é outra vez estimulada e logo abraça aquilo que se tornará a preocupação central de sua vida". Nem todo prodígio é um gênio, assim como nem todo gênio é (ou foi) um prodígio. Mozart foi um prodígio que se fez gênio. O seu caminho de criança prodígio a gênio maduro, procurei mostrar, revela o acerto do verso de Hesíodo: "Ante os portais da excelência, os altos deuses puseram o suor".
O surgimento de um Mozart, em suma, pode ser entendido como o efeito da convergência, estatisticamente improvável, de um grande número de circunstâncias felizes: excepcional dotação genética; a fortuna de uma educação exigente numa esplêndida tradição musical; a convivência com modelos inspiradores exemplares; um clima cultural especialmente propício e uma energia pessoal vulcânica ligada a um não menos generoso impulso criador. Acidentes felizes, é bom lembrar, acontecem. A vida oprime, o som liberta.
Mozart, é verdade, não tem a elevação espiritual de Bach ou a profudenza emotiva de Beethoven. Nem por isso, contudo, é menor que eles. Acima de tudo que conheço, reverencio ou posso conceber, a vibração pulsante e a perfeição melódica destes sons traduzem, aos meus ouvidos, a idéia de um universo bom. O que pode qualquer doutrina ou religião instituída, calcada no miasma do verbo, diante da verdade infinita que emana de sua música?
Na obra de Mozart sentimos pulsar a força da crença, senão na existência, pelo menos na possibilidade de existência de uma ordem cósmica que nos transcende. Alguma coisa muito além da nossa capacidade de compreensão, mas que nos é facultado entrever ou intuir no contato com o universo da música. Que a esperança viril e o ânimo luminoso dessa arte estejam conosco na difícil jornada que o século 21 prenuncia.
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA é economista e professor do Ibmec-SP. É autor, entre outros livros, de "Auto-Engano" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: Emily Dickinson cult e em nova versão
Próximo Texto: + Autores: Identidades vazias
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.