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Identidades vazias
Eleger a internet como exemplo democrático é esconder diferenças sociais, institucionais e psicológicas entre as vidas "real" e "virtual"
Reprodução
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Personagens do game on-line "Second Life" passeiam por uma rua |
SLAVOJ ZIZEK
COLUNISTA DA FOLHA
Na edição de 25 de
dezembro da revista "Time", o
prêmio tradicional
de "Pessoa do
Ano" não foi concedido a Mahmoud Ahmadinejad [presidente do Irã], Kim Jong-Il [ditador
norte-coreano], Hugo Chávez
[presidente venezuelano] ou
qualquer outro membro da
gangue dos usuais suspeitos,
mas a "você": a todos e a cada
um de nós... usuários e criadores de conteúdo na web.
A capa mostra um teclado
branco com um espelho para
uma tela de computador onde
cada um de nós, leitores, pode
ver seu reflexo. Para justificar a
escolha, os editores mencionaram a transição das instituições para os indivíduos, que estão ressurgindo como cidadãos
da nova democracia digital.
Há coisas que os olhos não
conseguem ver, nessa escolha,
e em um sentido mais amplo
do que o comum nessa expressão. Se algum dia já houve uma
escolha ideológica, esse é um
caso que merece perfeitamente
a classificação: a mensagem
-uma nova democracia cibernética na qual milhões podem
se comunicar e organizar diretamente, contornando o controle estatal centralizado- encobre uma série de brechas e
tensões perturbadoras.
A primeira e mais evidente
das ironias é que cada pessoa
que olhe a capa da "Time" não
verá as demais pessoas com
quem supostamente se relaciona diretamente, e sim um reflexo de sua própria imagem. Não
admira que Leibniz [1646-1716] seja uma das referências
filosóficas preferenciais dos
teóricos do ciberespaço: afinal,
a imersão das pessoas no ciberespaço não se enquadra perfeitamente à nossa redução a
uma mônada leibniziana que,
embora "sem janelas" capazes
de se abrir diretamente para as
realidades externas, espelha
em si mesma todo o universo?
Será que o típico internauta
atual, sentado sozinho diante
da tela de seu computador, não
representa mais e mais uma
mônada sem janelas diretas para a realidade, envolvido apenas com simulacros virtuais, e
no entanto mais e mais imerso
na rede mundial, e se comunicando de maneira sincrônica
com todo o planeta?
Uma das mais recentes modas entre os radicais do sexo
são as maratonas de masturbação, eventos coletivos nos
quais centenas de homens e
mulheres se autopropiciam satisfação sexual para fins de caridade. A masturbação cria
uma coletividade a partir de indivíduos dispostos a compartilhar uns com os outros... o quê?
O solipsismo de uma diversão
estúpida. Seria possível propor
que as maratonas de masturbação são a forma de sexualidade
que se enquadra de maneira
mais perfeita às coordenadas
do ciberespaço.
Mas isso é apenas uma parte
da história. O que se torna preciso acrescentar é que o "você"
que se reconhece enquanto
imagem em uma tela padece de
uma profunda divisão: eu jamais me limito a ser a persona
que assumo na máquina. Primeiro, existe o (bastante evidente) excesso do eu como pessoa corpórea "real" além da
persona virtual.
Ética virtual
Os marxistas e outros pensadores de inclinações críticas
gostam de apontar para o fato
de que a igualdade do ciberespaço é enganosa -ela ignora
todas as complexas disposições
materiais (meu patrimônio,
minha posição social, meu poder ou falta dele etc.). A inércia
da vida real desaparece magicamente na navegação pelo ciberespaço, desprovida de fricção.
No mercado atual, encontramos toda uma série de produtos privados de suas propriedades malignas: café sem cafeína,
creme sem gordura, cerveja
sem álcool... ciberespaço. A realidade virtual simplesmente
generaliza esse procedimento:
cria uma realidade privada de
substância. Da mesma maneira
que o café descafeinado tem
cheiro e gosto semelhantes aos
do café sem ser café, minha
persona na rede, o "você" que
vejo lá, é sempre um "eu" descafeinado.
Por outro lado, existe também o excesso oposto, e muito
mais perturbador: o excedente
de minha persona virtual com
relação ao meu "eu" real. Nossa
identidade social, a pessoa que
presumimos ser em nosso intercurso social, já é uma máscara, já envolve a repressão de
nossos impulsos inadmissíveis,
e é precisamente nessas condições de "só uma brincadeira",
quando as regras que regulam
os intercâmbios de nossas vidas reais estão temporariamente suspensas, que podemos
nos permitir a exibição dessas
atitudes reprimidas.
Basta lembrar do mitológico
sujeito tímido e impotente que,
participando de um jogo virtual
interativo, adota a identidade
de um assassino sádico e sedutor irresistível. Seria simples
demais afirmar que essa identidade é apenas um suplemento
imaginário, uma fuga temporária de sua impotência na vida
real. Na verdade, o que importa
é que, porque ele sabe que o jogo virtual é "apenas um jogo",
ele se sente capaz de exibir "seu
eu real", fazer coisas que nunca
fez em interações reais -sob a
capa de uma ficção, a verdade
sobre ele se articula.
O fato mesmo de que eu perceba minha auto-imagem virtual como simples brincadeira
me permite, assim, suspender
os obstáculos que usualmente
impedem que eu realize meu
"lado escuro" na vida real
-meu "id eletrônico" ganha
asas, dessa forma.
E o mesmo se aplica aos
meus parceiros na comunicação via ciberespaço. Não há como ter certeza de quem sejam,
de que sejam "realmente" como se descrevem, ou de saber
se existe uma pessoa "real" por
trás da persona on-line. A persona on-line é uma máscara para uma multiplicidade de pessoas? A pessoa "real" com
quem converso possui e manipula mais personas no computador, ou estou simplesmente
me relacionando com uma entidade digitalizada que não representa pessoa "real" alguma?
Existência sublimada
Para resumir, "interface"
quer dizer exatamente que minha relação com o outro nunca
acontece face a face, que sempre há a mediação de uma maquinaria digital interposta cuja
estrutura é labiríntica: eu "navego", eu me perco sem muito
rumo nesse espaço infinito onde mensagens circulam livremente sem destino fixo, enquanto seu Todo -esse imenso
circuito de murmúrios- continua para sempre além do escopo de minha compreensão. O
obverso da democracia direta
do ciberespaço é essa caótica e
impenetrável magnitude de
mensagens e seus circuitos, que
nem mesmo o maior esforço de
minha imaginação é capaz de
compreender -o filósofo Immanuel Kant [1724-1804] teria
classificado o ciberespaço como "sublime".
Pouco mais de uma década
atrás, havia um brilhante comercial inglês de cerveja. A primeira parte reproduzia a conhecida história de uma moça
que caminha ao longo de um
riacho, vê um sapo, o toma nas
mãos e beija, e o sapo miraculosamente se transforma em
príncipe. Mas a história não
acabava assim. O jovem olhava
a moça de um jeito cobiçoso, a
tomava nos braços, a beijava e
ela se transformava em uma
garrafa de cerveja, que ele exibia em um gesto triunfante.
Assombração na rede
A moça fantasiava sobre um
sapo que na verdade era príncipe, o rapaz sobre uma moça que
na verdade era uma garrafa de
cerveja: para a mulher, seu
amor e afeto (sinalizado pelo
beijo) poderiam fazer de um sapo um príncipe, enquanto para
o homem, tudo não passa de
um esforço para reduzir a mulher ao que os psicanalistas designam como "objeto parcial"
-aquilo que, em você, me faz
desejar você (é claro que um argumento feminista óbvio seria
que as mulheres, em sua experiência amorosa cotidiana, em
geral experimentam a passagem oposta: beijam um belo jovem e, quando o vêem de perto,
ou seja, tarde demais, descobrem que ele é um sapo...).
O casal real de homem e mulher, portanto, vive assombrado por essa bizarra figura de um
sapo abraçando uma garrafa de
cerveja. O que a arte moderna
propicia é exatamente esse espectro subjacente. É perfeitamente possível imaginar um
quadro do pintor surrealista
Magritte no qual um sapo abraça uma garrafa de cerveja, com
um título como "Homem e Mulher" ou "Casal Ideal" (a associação com a famosa cena surrealista do burro morto ao piano [do filme "O Cão Andaluz"]
fica completamente justificada,
nesse caso).
É essa a ameaça do ciberespaço e de seus jogos, no plano
mais elementar: quando um
homem e uma mulher interagem nele, podem se ver assombrados pelo espectro do sapo
que abraça a cerveja. Já que nenhum dos dois está consciente
disso, as discrepâncias entre o
que "você" realmente é e o que
"você" aparenta ser no espaço
digital podem resultar em violência homicida.
SLAVOJ ZIZEK é filósofo esloveno e autor de
"Um Mapa da Ideologia" (Contraponto). Ele escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Migliacci.
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