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Ao mesmo tempo herdeiro e contestador de Pierre Bourdieu, o sociólogo francês fala
de seu "A Cultura dos Indivíduos", um estudo inovador sobre as práticas culturais
A precária invenção da vida
Jean-Baptiste Marongiu
do "Libération"
Professor de sociologia na Escola Normal Superior de Lyon, Bernard Lahire (1963) acaba de lançar "La Culture des Individus" [A Cultura dos Indivíduos, ed. La Découverte, 780 págs., 29 euros].
Trata-se de uma obra de ciências sociais fora das normas, à medida que busca comprovar nos fatos o que
afirma sobre a prática cultural dos franceses.
Lahire parte da clássica definição dada por Bourdieu
há quase 25 anos entre práticas legitimas e ilegítimas
para ver de perto o que se lê hoje, quem lê -homem ou
mulher, operário ou intelectual, casado ou solteiro
etc.-, quem assiste à TV, vai aos cinemas, ao teatro ou
aos estádios. Na entrevista abaixo, ele explica seu livro e
destaca não só o que aproxima de Bourdieu, mas sobretudo o que o afasta.
A que corrente sociológica o sr. pertence?
Fui formado em uma tradição sociológica próxima da de Pierre Bourdieu
[1930-2002]. Não fui um de seus alunos, mas evoluí cientificamente naquele universo. As perguntas que
conduziram minhas pesquisas devem
muito a ele: como incorporamos o
mundo social? O que é um indivíduo
socializado? Como o mais íntimo em
cada um de nós ainda é uma construção social? Mas, ao buscar respostas
por meio de entrevistas, comecei a tomar algumas liberdades em relação à sociologia de Bourdieu. Sou
uma espécie de heterodoxo dessa tradição, mas não
um adversário.
Qual seria, para o sr., a distância mais significativa?
Eu me afasto da teoria do "habitus", para a qual os
indivíduos têm comportamentos coerentes, seja
qual for o contexto em que inscrevam sua ação. Ela
postula a transferibilidade sistemática das disposições constitutivas do "habitus" de um domínio da
prática a outro. Ora, em minhas pesquisas, e notadamente neste trabalho sobre as práticas culturais, fiz
surgir variações significativas nos mesmos indivíduos, devidas principalmente a patrimônios individuais de disposições menos homogêneos do que
pensávamos. Por exemplo, eles vão ler a "grande literatura", mas terão comportamentos dissonantes
em relação a essa legitimidade no cinema ou, pior
ainda, diante da televisão, quando estão em situação
privada e de gratuidade.
O que o sr. diria se aplicasse a si mesmo sua grade de interpretação?
Eu venho de um meio popular. Passei toda a minha
adolescência em Vénissieux, na periferia de Lyon,
com minha mãe, que era operária. Meus pais eram
divorciados. Minha mãe tinha o certificado de estudos e meu pai um diploma do ensino técnico. Professor de sociologia, sou um caso de trânsfuga de
classe, à maneira de Bourdieu. Como ele -mas de
uma geração posterior, que teve notadamente a experiência da televisão desde a infância- eu "saí do
meu meio" pela via escolar. E tudo isso se vê em minhas práticas culturais. Eu me identifico perfeitamente em certos retratos de pesquisados que tiveram uma trajetória ascendente graças à escola.
Não recebi educação artística em meu meio familiar, o que explica minha relação com os museus, o
teatro e a ópera. Mas posso viver uma certa esquizofrenia, no sentido de que posso ser muito exigente
nos campos cultos e literários e muito mais descontraído em outros. Não sem um sentimento de culpa.
Qual é sua teoria?
Meu programa científico pode ser enunciado muito
simplesmente: como raciocinar sociologicamente
sobre singularidades individuais sem regredir cientificamente para uma psicologização
das relações sociais? É necessário um
grande trabalho para fundamentar
empiricamente a teoria que eu elaboro. Continuo pensando que somos
multideterminados por todas as nossas experiências sociais e que o sociólogo deve criar um modelo teórico capaz de levar em conta essa complexidade do indivíduo e tudo o que a determina. Tomemos o caso de crianças
de meios populares que freqüentam a escola maternal a partir de 2 anos e vivem situações contraditórias na escola e em suas famílias: não se fala da mesma maneira, não se exerce o mesmo tipo de autoridade, não se praticam as mesmas atividades etc. Isso
teria forçosamente uma influência sobre suas disposições mentais e comportamentais. O que me interessa é relatar sociologicamente -e até estatisticamente- essas complexidades individuais.
De Bourdieu ao sr. só haveria uma mudança de escala?
Ele mostrou que há diferenças muito grandes na relação que os grupos sociais têm com a cultura legítima. Ele respondeu dessa maneira às perguntas de
seu tempo. Eu chego depois, com minhas próprias
perguntas e as de meu tempo. E descubro certas coisas que Bourdieu não viu, porque não as procurou.
Foi a mudança de escala de observação que me permitiu revelá-las. Quando releio os dados de "A Distinção", referentes aos anos 60, vejo duas coisas. Primeiro, o fato de que já naquela época teria sido possível evidenciar certas dissonâncias culturais, e não
se fez porque essas perguntas não eram da atualidade nem no plano social e político nem no plano científico. Depois, vemos que houve uma série de transformações culturais que levaram um sociólogo como eu a mudar de ponto de vista para fazer surgir as
dissonâncias, as misturas de gêneros nas práticas
culturais individuais.
O sr. dá o devido lugar ao indivíduo, mas, contra a tendência atual, nada cede quanto aos determinismos sociais que condicionam sua existência.
Certos adversários um pouco apressados procuram
em mim teses individualistas. Não é absolutamente
meu caso. Eu viso uma teoria sociológica dos comportamentos individuais. Como sociólogos, podemos falar de indivíduos enquanto a disciplina, desde
Durkheim, fez de tudo para excluí-los de nosso campo de estudo? Ensaístas e sociólogos não muito afeitos à verificação empírica e muitas vezes portadores
de uma visão irenista do social, afirmam que os indivíduos são muito mais livres em relação às restrições
sociais que antes, que hoje eles "inventam sua vida".
Não é absolutamente o que constato. Uma coisa é
certa: é muito mais complicado raciocinar sobre
comportamentos singulares do que sobre as grandes
tendências associadas a grupos.
Daí uma certa dificuldade de representação coletiva...
Com efeito, é cada vez mais difícil fazer as pessoas escutarem que, além de suas diferenças reais, elas têm
propriedades sociais comuns e interesses em comum, que compartilham muitas vezes os mesmos
problemas. No plano social, político, simbólico, há
muito a fazer para dar aos atores sociais a impressão
de que eles não são atomizados, que não são indivíduos singulares entre outros indivíduos singulares.
É um desafio político enorme para todos os que consideram que descartamos um pouco rapidamente
demais as representações da sociedade diferenciada
conforme as condições materiais e culturais de existência de seus membros.
O sociólogo deve, portanto, engajar-se politicamente?
Em sua atuação, o sociólogo deve permanecer o
maior tempo possível não-normativo. Há evidentemente suas convicções, sua moral, suas idéias políticas, que ele tem o direito de exprimir, mas deve fazer
seu trabalho descrevendo o melhor possível o mundo como ele é, e não como imagina que seja ou desejaria que fosse. Jamais faltarão pessoas para emitir
julgamentos normativos sobre o mundo. Se elas o fizessem a partir da leitura de obras sociológicas, já me
pareceria melhor. O sociólogo deve dar a imagem
menos deformada possível da realidade por meio de
suas pesquisas, seus dados estatísticos, suas observações diretas. Se não o fizer, quem poderá fazê-lo? O
olhar sociológico, quando é fundamentado empiricamente, é precioso, porque no espaço social são cada vez mais raros os que falam podendo dizer: "Eu
pesquisei". É por isso que amo minha profissão.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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