São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ comportamento

Ao mesmo tempo herdeiro e contestador de Pierre Bourdieu, o sociólogo francês fala de seu "A Cultura dos Indivíduos", um estudo inovador sobre as práticas culturais

A precária invenção da vida

Jean-Baptiste Marongiu
do "Libération"

Professor de sociologia na Escola Normal Superior de Lyon, Bernard Lahire (1963) acaba de lançar "La Culture des Individus" [A Cultura dos Indivíduos, ed. La Découverte, 780 págs., 29 euros]. Trata-se de uma obra de ciências sociais fora das normas, à medida que busca comprovar nos fatos o que afirma sobre a prática cultural dos franceses.
Lahire parte da clássica definição dada por Bourdieu há quase 25 anos entre práticas legitimas e ilegítimas para ver de perto o que se lê hoje, quem lê -homem ou mulher, operário ou intelectual, casado ou solteiro etc.-, quem assiste à TV, vai aos cinemas, ao teatro ou aos estádios. Na entrevista abaixo, ele explica seu livro e destaca não só o que aproxima de Bourdieu, mas sobretudo o que o afasta.

A que corrente sociológica o sr. pertence?
Fui formado em uma tradição sociológica próxima da de Pierre Bourdieu [1930-2002]. Não fui um de seus alunos, mas evoluí cientificamente naquele universo. As perguntas que conduziram minhas pesquisas devem muito a ele: como incorporamos o mundo social? O que é um indivíduo socializado? Como o mais íntimo em cada um de nós ainda é uma construção social? Mas, ao buscar respostas por meio de entrevistas, comecei a tomar algumas liberdades em relação à sociologia de Bourdieu. Sou uma espécie de heterodoxo dessa tradição, mas não um adversário.

Qual seria, para o sr., a distância mais significativa?
Eu me afasto da teoria do "habitus", para a qual os indivíduos têm comportamentos coerentes, seja qual for o contexto em que inscrevam sua ação. Ela postula a transferibilidade sistemática das disposições constitutivas do "habitus" de um domínio da prática a outro. Ora, em minhas pesquisas, e notadamente neste trabalho sobre as práticas culturais, fiz surgir variações significativas nos mesmos indivíduos, devidas principalmente a patrimônios individuais de disposições menos homogêneos do que pensávamos. Por exemplo, eles vão ler a "grande literatura", mas terão comportamentos dissonantes em relação a essa legitimidade no cinema ou, pior ainda, diante da televisão, quando estão em situação privada e de gratuidade.

O que o sr. diria se aplicasse a si mesmo sua grade de interpretação?
Eu venho de um meio popular. Passei toda a minha adolescência em Vénissieux, na periferia de Lyon, com minha mãe, que era operária. Meus pais eram divorciados. Minha mãe tinha o certificado de estudos e meu pai um diploma do ensino técnico. Professor de sociologia, sou um caso de trânsfuga de classe, à maneira de Bourdieu. Como ele -mas de uma geração posterior, que teve notadamente a experiência da televisão desde a infância- eu "saí do meu meio" pela via escolar. E tudo isso se vê em minhas práticas culturais. Eu me identifico perfeitamente em certos retratos de pesquisados que tiveram uma trajetória ascendente graças à escola.
Não recebi educação artística em meu meio familiar, o que explica minha relação com os museus, o teatro e a ópera. Mas posso viver uma certa esquizofrenia, no sentido de que posso ser muito exigente nos campos cultos e literários e muito mais descontraído em outros. Não sem um sentimento de culpa.

Qual é sua teoria?
Meu programa científico pode ser enunciado muito simplesmente: como raciocinar sociologicamente sobre singularidades individuais sem regredir cientificamente para uma psicologização das relações sociais? É necessário um grande trabalho para fundamentar empiricamente a teoria que eu elaboro. Continuo pensando que somos multideterminados por todas as nossas experiências sociais e que o sociólogo deve criar um modelo teórico capaz de levar em conta essa complexidade do indivíduo e tudo o que a determina. Tomemos o caso de crianças de meios populares que freqüentam a escola maternal a partir de 2 anos e vivem situações contraditórias na escola e em suas famílias: não se fala da mesma maneira, não se exerce o mesmo tipo de autoridade, não se praticam as mesmas atividades etc. Isso teria forçosamente uma influência sobre suas disposições mentais e comportamentais. O que me interessa é relatar sociologicamente -e até estatisticamente- essas complexidades individuais.

De Bourdieu ao sr. só haveria uma mudança de escala?
Ele mostrou que há diferenças muito grandes na relação que os grupos sociais têm com a cultura legítima. Ele respondeu dessa maneira às perguntas de seu tempo. Eu chego depois, com minhas próprias perguntas e as de meu tempo. E descubro certas coisas que Bourdieu não viu, porque não as procurou. Foi a mudança de escala de observação que me permitiu revelá-las. Quando releio os dados de "A Distinção", referentes aos anos 60, vejo duas coisas. Primeiro, o fato de que já naquela época teria sido possível evidenciar certas dissonâncias culturais, e não se fez porque essas perguntas não eram da atualidade nem no plano social e político nem no plano científico. Depois, vemos que houve uma série de transformações culturais que levaram um sociólogo como eu a mudar de ponto de vista para fazer surgir as dissonâncias, as misturas de gêneros nas práticas culturais individuais.

O sr. dá o devido lugar ao indivíduo, mas, contra a tendência atual, nada cede quanto aos determinismos sociais que condicionam sua existência.
Certos adversários um pouco apressados procuram em mim teses individualistas. Não é absolutamente meu caso. Eu viso uma teoria sociológica dos comportamentos individuais. Como sociólogos, podemos falar de indivíduos enquanto a disciplina, desde Durkheim, fez de tudo para excluí-los de nosso campo de estudo? Ensaístas e sociólogos não muito afeitos à verificação empírica e muitas vezes portadores de uma visão irenista do social, afirmam que os indivíduos são muito mais livres em relação às restrições sociais que antes, que hoje eles "inventam sua vida". Não é absolutamente o que constato. Uma coisa é certa: é muito mais complicado raciocinar sobre comportamentos singulares do que sobre as grandes tendências associadas a grupos.

Daí uma certa dificuldade de representação coletiva...
Com efeito, é cada vez mais difícil fazer as pessoas escutarem que, além de suas diferenças reais, elas têm propriedades sociais comuns e interesses em comum, que compartilham muitas vezes os mesmos problemas. No plano social, político, simbólico, há muito a fazer para dar aos atores sociais a impressão de que eles não são atomizados, que não são indivíduos singulares entre outros indivíduos singulares. É um desafio político enorme para todos os que consideram que descartamos um pouco rapidamente demais as representações da sociedade diferenciada conforme as condições materiais e culturais de existência de seus membros.

O sociólogo deve, portanto, engajar-se politicamente?
Em sua atuação, o sociólogo deve permanecer o maior tempo possível não-normativo. Há evidentemente suas convicções, sua moral, suas idéias políticas, que ele tem o direito de exprimir, mas deve fazer seu trabalho descrevendo o melhor possível o mundo como ele é, e não como imagina que seja ou desejaria que fosse. Jamais faltarão pessoas para emitir julgamentos normativos sobre o mundo. Se elas o fizessem a partir da leitura de obras sociológicas, já me pareceria melhor. O sociólogo deve dar a imagem menos deformada possível da realidade por meio de suas pesquisas, seus dados estatísticos, suas observações diretas. Se não o fizer, quem poderá fazê-lo? O olhar sociológico, quando é fundamentado empiricamente, é precioso, porque no espaço social são cada vez mais raros os que falam podendo dizer: "Eu pesquisei". É por isso que amo minha profissão.


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: Et + cetera
Próximo Texto: O cisma do Ocidente
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.