São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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O cisma do Ocidente

ANTHONY GIDDENS REFUTA A TESE DO "CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES" DE SAMUEL HUNTINGTON E DEFENDE QUE O PRINCIPAL CONFLITO HOJE É ENTRE COSMOPOLITISMO E FUNDAMENTALISMO

Lionel Cironneau - 12.nov.1989/Associated Press
Berlinenses festejam sobre o Muro de Berlim, na Alemanha, após a abertura da fronteira em 1989


da Redação

"Não creio que o principal conflito da nossa era seja o embate entre civilizações (...), mas sim aquele que opõe o cosmopolitismo, de um lado, e o fundamentalismo, de outro."
Essa declaração de Anthony Giddens dá o tom do debate que opôs o professor da London School of Economics ao professor da Universidade Harvard Samuel Huntington em um encontro na Itália, em 2003.
Dois dos mais respeitados e influentes cientistas políticos da atualidade, eles também divergem sobre o aprofundamento do cisma religioso entre Europa e EUA.

Samuel Huntington - Muitas pessoas têm atentado para a divisão central do Ocidente: a diferença de poder entre os EUA e a Europa. É natural que essa divisão suscite antagonismos e, por vezes, conflitos, e é também inevitável que acabe por gerar diferenças de perspectiva e interesse.
No entanto esse tipo de relacionamento não é limitado aos EUA e à Europa. Em minha opinião, ele é basicamente um produto da estrutura global de poder. Durante a Guerra Fria havia duas superpotências, que tinham necessariamente de competir uma com a outra. Agora nos vemos diante de uma superpotência e de algumas grandes potências regionais, cujos interesses entram por vezes em conflito. Na condição de superpotência global, os EUA têm interesses em todos os lugares do mundo e tendem a promovê-los em toda parte.
Por outro lado, os países ou blocos de países aos quais chamo de "grandes potências regionais", como a União Européia, Rússia, China, Índia e Brasil, também têm interesses em suas respectivas regiões. E é bastante apropriado e compreensível que tais potências pensem que devam moldar o rumo dos acontecimentos em sua seara. Em muitos casos é inevitável que as diferenças de perspectiva e interesse daí advindas dêem margem a conflitos.
No interior de cada região há também países que não se caracterizam como grandes potências regionais e que, em geral, não desejam ser dominados por seu vizinho mais poderoso. Como temos podido observar, esses países se voltam ora para os EUA, ora para potências regionais secundárias. Na última década assistimos a um movimento de forte aproximação entre os EUA e muitas dessas potências secundárias - fenômeno que ficou patente entre o final de 2002 e o início de 2003, quando elas se alinharam com os americanos no Conselho de Segurança da ONU.

Anthony Giddens - Para reforçar seu argumento, eu diria que a questão das divisões transatlânticas não está associada, em sua origem, às divergências em relação ao Iraque. Ao contrário, essas divergências -responsáveis por tão formidável fissura- foram causadas, em primeiro lugar, por problemas não solucionados que carecem de uma reflexão mais aprofundada e que são, em essência, rescaldos do período da Guerra Fria. Eu os chamaria de problemas residuais de 1989. Em minha opinião, só aos poucos começamos a nos dar conta de quão profundamente nossas instituições foram definidas pela Guerra Fria. Desses problemas residuais, três me parecem fundamentais: primeiro, o significado do Ocidente; segundo, a identidade da Europa (uma vez que, em algumas áreas, a Europa emergiu essencialmente como uma formação da Guerra Fria e agora tem de se haver com o vasto processo de globalização); terceiro, o poderio militar americano em relação ao europeu.
Em meu modo de ver é preciso distinguir dois sentidos do Ocidente. Denomino-os Primeiro Ocidente e Segundo Ocidente. Em seu primeiro sentido, o Ocidente refere-se a um sistema jurídico e constitucional, a um conjunto de direitos individuais, ao regime da lei impessoal, às liberdades civis e assim por diante. Acredito firmemente que, nesse sentido, o Ocidente ainda é o Ocidente. Também creio que os princípios que emergiram nos sistemas democráticos ocidentais são generalizáveis para o resto do mundo e penso ser possível demonstrar que esses princípios podem ser difundidos para a maioria das sociedades existentes no mundo.
É em torno do Segundo Ocidente, porém, que se concentra a maior parte das discussões sobre as divisões transatlânticas. O Segundo Ocidente é uma formação geopolítica, e aqui nos deparamos com problemas bastante sérios. Ainda acho que se trata aqui sobretudo de questões derivadas da Guerra Fria, mais do que de dificuldades associadas à recente reviravolta nos acontecimentos. Todavia, por menos estruturais que sejam, essas dificuldades têm de ser enfrentadas -a começar pelo fato de que os europeus precisam reconhecer a natureza das novas ameaças, coisa que ainda não foi feita suficientemente.
Há uma diferença substancial entre os tipos de terrorismo com os quais estamos habituados na Europa (que são locais, razoavelmente limitados e têm por objetivo principal forjar identidades nacionais) e o novo terrorismo geopolítico. Esse novo tipo de terrorismo alavanca o poder da sociedade civil.

Huntington - Isso ilustra de modo muito apropriado o meu próximo ponto: a segunda divisão significativa no Ocidente é de natureza cultural. É claro que a Europa e os EUA têm muito em comum, mas há uma diferença que é de fato significativa: os EUA são um país profundamente religioso, ao passo que, na Europa, predomina o secularismo. As colônias que se instalaram em solo americano nos séculos 17 e 18 foram criadas, em grande medida, por razões religiosas. Desde Tocqueville, quase todos os europeus que visitam os EUA ficam impressionados com a religiosidade dos americanos. Ainda somos um dos povos mais religiosos do mundo, o que nos coloca numa condição bastante singular entre as sociedades industrializadas. E, em termos globais, religião e nacionalismo tendem a caminhar de mãos dadas: os povos mais religiosos tendem a ser também os mais nacionalistas. De modo geral, os americanos ostentam um profundo compromisso com Deus e com seu país -entidades que não costumam suscitar grande dose de entusiasmo nos europeus.
Além disso, o protestantismo não-conformista foi a religião fundadora nos EUA, o que introduziu um traço fortemente moralista na cultura americana. Somos mais inclinados que os europeus a definir as coisas em termos de bem e mal -tendência que se acentuou como nunca no governo atual. E isso é algo que contribui claramente para fomentar diferenças entre americanos e europeus.

Giddens - A questão da religiosidade é muito interessante, mas não estou convencido de que exista uma diferença brutal entre americanos e europeus. Nos EUA nota-se um alto grau de secularização intra-igreja: sempre houve diferenças entre a experiência européia e a americana no tocante à função que a igreja desempenha na sociedade. Todavia a distinção entre essas experiências não é de natureza estritamente religiosa, mas sim de politização, em particular no que diz respeito à politização da direita religiosa.

Huntington - Os resultados de uma série de pesquisas de opinião pública sobre a extensão das crenças religiosas em 17 países permitiram classificá-los de acordo com seu grau de religiosidade. Os EUA ficaram disparados em primeiro lugar, com um índice de 1,7. Entre os países europeus, a Irlanda aparece em primeiro, com 4,1, seguida de Polônia, com 5,2, Itália, com 5,9, Reino Unido, com 11,6, e Alemanha, que, para efeitos de análise, foi dividida em Alemanha Ocidental e Oriental, a primeira com um índice de 12,1 e a segunda com 16,3.
É importante notar que está em curso um ressurgimento global da religiosidade. Trata-se de um processo que tem se disseminado praticamente pelo mundo inteiro, com exceção, talvez, da Europa Ocidental. A religião exerce um papel cada vez mais importante na maneira como os países definem suas identidades nacionais -no modo como os governos tentam estabelecer sua legitimidade- e também vem se tornando um fator considerável em conflitos sociais. No que concerne aos EUA, há evidências abundantes de que os americanos são mais religiosos hoje do que o eram 20 ou 30 anos atrás. Tradicionalmente, os EUA têm servido de palco a fenômenos que chamo de "grande despertar", principiando pelo primeiro "grande despertar" das décadas de 1730 e 1740 -que abriu caminho para a Revolução americana- e chegando ao que creio ser o "grande despertar" dos dias de hoje. A religião está sendo politizada nos EUA? Sim. Ela vem ganhando uma conotação extremamente política. Em 2000, todos os candidatos a presidente e vice-presidente -com exceção de Joe Lieberman- se viram obrigados a proclamar sua fé em Jesus Cristo. Isso nunca havia acontecido antes na política americana.

Giddens - Deixe-me retornar por um momento à questão do Primeiro Ocidente. Temos hoje no mundo um número quatro vezes maior de sistemas democráticos do que há 25 anos -e isso mesmo levando em conta o aumento em termos absolutos no número de países. Penso que há uma razão estrutural para isso. Vivemos no que poderíamos chamar de sociedade global da informação: as pessoas deixaram de ser cidadãos passivos, desejam ter um papel muito mais ativo no tocante às decisões que afetam suas vidas. É por isso que, a meu ver, a discussão sobre a democratização no Iraque se diferencia das discussões travadas há não mais que dez ou 15 anos sobre a democratização em outros países. As comparações com a Alemanha e o Japão do pós-guerra tampouco me parecem muito adequadas. A discussão atual deve levar em conta a maior difusão dos sistemas democráticos, o que proporciona formas de alavancagem antes não existentes.


Há hoje no mundo um hiato entre poder e legitimidade; no momento os americanos dispõem de poder, mas, aos olhos da maior parte do mundo, falta-lhes legitimidade

Samuel Huntington



Huntington - Você acaba de destacar com muita propriedade o extraordinário processo de disseminação da democracia pelo mundo afora. Contudo a maior parte dos casos de democratização teve lugar em países que são culturalmente muito similares aos do Atlântico Norte -isto é, países latino-americanos e centro-europeus- ou em países que estiveram sujeitos a um longo período de influência americana -como a Coréia do Sul e Taiwan. Não estou dizendo que isso seja universal, mas, mesmo assim, o fator cultural parece ser importante. Como disse Joe LaPalombara [professor de ciência política na Universidade Yale], "democratizar significa ocidentalizar". Gostaria que isso não fosse verdade, mas o fato é que, no mundo muçulmano, onde quer que eleições sejam realizadas, são justamente os grupos fundamentalistas que costumam sair vitoriosos. Até na França, onde houve uma eleição para o Conselho Islâmico criado pelo governo, ou no Paquistão ou em outros países muçulmanos, os fundamentalistas tendem a ser a força eleitoralmente mais poderosa, pois representam parcelas majoritárias da opinião popular. Se dentro em breve forem realizadas eleições no Iraque, eu me inclinaria a apostar que os grupos vitoriosos serão justamente os fundamentalistas xiitas e sunitas mais radicais. Portanto, embora sejamos todos a favor da democracia, talvez devêssemos nos conter para não incentivar alguns países a tomar o rumo da democratização.


Como fazer para adquirir legitimidade no sistema internacional? Não vejo outra saída senão criando um arcabouço legal com normas impessoais que sejam respeitadas por todos; por isso a Organização Mundial do Comércio é tão relevante

Anthony Giddens



Giddens - No que diz respeito ao mundo muçulmano, há democracias emergentes em países como Malásia, Bangladesh, Turquia e Indonésia. Nada indica que o futuro dessas democracias seja necessariamente incompatível com o Ocidente. Há uma nítida diferença entre os problemas do mundo árabe e o amplo espectro de dificuldades que assola o "Oriente Médio ampliado". Não creio que o principal conflito da nossa era seja o embate entre civilizações -ainda que eu considere a sua tese sobre o "choque" uma das mais brilhantes formulações na história recente da ciência política-, mas sim aquele que opõe o cosmopolitismo, de um lado, e o fundamentalismo, de outro.
O cosmopolitismo está no cerne do Ocidente, no sentido do Primeiro Ocidente: princípios universais graças aos quais pessoas de diferentes culturas podem relacionar-se e viver umas ao lado das outras. Para mim o fundamentalismo inclui todos os tipos de fundamentalismo -não apenas o islâmico, não somente o religioso, mas também o de caráter étnico e nacionalista. A meu ver os fundamentalistas são sujeitos que afirmam só haver um modo de vida válido e que pensam que os demais têm de sair da frente. Nesse sentido, eu diria com muita firmeza -e até de forma apaixonada- que o Ocidente ainda é o Ocidente.

Huntington - É verdade, mas o Ocidente enfrenta um problema de legitimidade. Para ser mais exato: há hoje no mundo um hiato entre poder e legitimidade. Somente quando essas duas coisas vêm juntas é que pode haver um efetivo exercício da autoridade. No momento os americanos dispõem de poder, mas, aos olhos da maior parte do mundo, falta-lhes legitimidade.
A comunidade global defronta-se com a questão básica de como associar poder e legitimidade: a longo prazo, exercer o poder sem legitimidade tem conseqüências extremamente deletérias. Se eu fosse enviar um recado para o governo Bush, meu conselho seria aquele tão bem expresso por Rousseau, segundo o qual "o mais forte nunca é forte o bastante para ser sempre o senhor, a menos que transforme força em direito e obediência em dever".
Associar legitimidade e poder é uma questão crucial, seja para conferir maior legitimidade ao poder dos EUA, seja para dotar de mais poder a legitimidade da ONU. Ou a ONU é submetida a uma reformulação que lhe garanta mais poder ou os EUA devem tentar obter mais legitimidade, empenhando-se mais do que o têm feito recentemente para atuar de forma multilateral e por meio de organizações internacionais.

Giddens - Como fazer para adquirir legitimidade no sistema internacional? Ora, não vejo outra saída senão criando um arcabouço legal com normas impessoais que sejam respeitadas por todos. É por isso que a Organização Mundial do Comércio é tão relevante. Trata-se de uma organização que obriga seus membros a agir de acordo com um conjunto de normas, e é extremamente importante o fato de que a China e Taiwan tenham ingressado nela e que a Rússia sinalize seu desejo de seguir na mesma direção.

Huntington - Sim, mas há soluções institucionais? Sou até capaz de pensar em algumas, porém elas têm poucas chances de ser adotadas. Uma delas seria reestruturar o Conselho de Segurança da ONU, dando assento permanente a países como Índia, Japão e Brasil, e eliminando o poder de veto de todos os membros, exceto o dos EUA. A meu ver, dessa maneira teríamos um Conselho de Segurança que refletiria em termos mais aproximados a estrutura de poder no mundo atual.
Em todo caso, americanos e europeus já tiveram diferenças no passado, notadamente no século 19, e as divergências com que deparamos hoje não chegam a ser profundas. Penso ser importante enfatizar o legado histórico e cultural comum que une os EUA e a Europa desde a experiência da Reforma renascentista, do Iluminismo, do desenvolvimento do sistema westfaliano e dos Estados-nação e, ainda mais importante, desde a adoção da separação entre autoridade espiritual e temporal, do Estado de direito, do pluralismo social, do governo representativo, dos direitos individuais... São esses elementos que, a meu ver, constituem os traços essenciais da civilização ocidental, distinguindo europeus e americanos de sociedades e culturas como a chinesa, a japonesa, a indiana, a muçulmana, a árabe e outras.

Giddens - Acho que o célebre sociólogo e economista alemão Max Weber acertou em cheio quando disse que a origem do Ocidente está umbilicalmente ligada à criação do Estado de direito e, em especial, do regime da lei impessoal. Nenhuma outra cultura apresenta essa característica, e é daí que advém grande parte das liberdades civis.

Huntington - Hoje a diferença fundamental está obviamente associada ao choque dos países ocidentais com o islã, fenômeno que se manifesta em enorme variedade de linhas de frente. Na Europa, a imigração muçulmana coloca graves problemas de ordem social e cultural bem como questões de identidade nacional, os quais já se encontram na pauta do debate público. Também é bastante evidente que essa imigração implica problemas de segurança, já que muitos terroristas conseguiram se alojar em países da Europa Ocidental -a despeito do fato de serem apenas parte de uma manifestação mais abrangente e global do islamismo militante. Precisamos sem dúvida distinguir o islamismo militante do islamismo em geral, mas a questão é que o primeiro -tanto pelas ações de terroristas e "Estados delinqüentes" que tentam desenvolver armas nucleares como por uma infinitude de outros meios- representa uma clara ameaça ao Ocidente.
É assustador o grau de participação de muçulmanos em episódios de violência social no mundo atual: em 2000, a revista "The Economist" identificou 32 grandes conflitos em andamento no mundo, sendo que dois terços deles envolviam muçulmanos combatendo muçulmanos ou muçulmanos combatendo não-muçulmanos. Por essa razão, parece-me altamente prioritário que europeus e americanos reconheçam o que têm em comum e tentem elaborar uma estratégia para lidar de forma compartilhada com a ameaça que o islamismo militante representa para suas sociedades e para sua segurança.
Por fim, eu diria ainda que, para os EUA e outras potências ocidentais, é absolutamente essencial dispor de uma estratégia na qual esteja inscrita a possibilidade de promover guerras preventivas contra ameaças urgentes, imediatas e sérias. Contra nossos inimigos -basicamente o islamismo militante, mas também outros grupos- não há como adotar medidas de contenção; pelo menos isso já está claro. Portanto, é fundamental que -se eles estiverem preparando um ataque contra nós- possamos atacá-los primeiro.

Este debate foi publicado na "New Perspectives Quarterly".
Tradução de Alexandre Hubner.


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