São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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"Teatro de Arena", de Izaías Almada, e "Hipocritando", de Gianni Ratto, recuperam em forma de depoimentos a dramaturgia moderna no Brasil

A história oral dos palcos

Sílvia Fernandes
especial para a Folha

Vistos sob certo ângulo, "Hipocritando", de Gianni Ratto, e "Teatro de Arena", de Izaías Almada, são depoimentos sobre o teatro moderno. No caso de Almada, o testemunho de época é literal, pois o ator recorre à narrativa e à memória de alguns parceiros do Arena para recuperar, via história oral, o cotidiano da companhia que revolucionou o teatro paulista em 1958, com "Eles Não Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri. A estréia marca o período de inflexão rumo ao nacionalismo e o impulso para o drama urbano e proletário do Seminário de Dramaturgia, que o autor do livro não acompanha de perto. É convidado para uma substituição em "Arena Conta Zumbi", de Boal e Guarnieri, em 1965, e permanece no grupo até 1969, a tempo de participar da montagem de "O Inspetor Geral", de Gogól, em 1966, e reorganizar, pouco antes da prisão política, as experiências do Núcleo 2. A natureza combativa de sua atuação é suficiente para justificar a retomada de um tema tratado por historiadores como Sábato Magaldi e Maria Thereza Vargas, participantes do seminário, que Almada não inclui entre os entrevistados. Para a seleção dos depoimentos, recorre à periodização proposta por Boal. Destaca representantes das diversas etapas do Arena, da "fotografia" aos musicais, e orienta os testemunhos para o resgate de uma espécie de história da vida privada, feita de recordações de quem conviveu no dia-a-dia da [rua] Teodoro Baima [em São Paulo]. Talvez a proposta do autor seja ambiciosa para uma amostragem restrita, que não contempla depoimentos imprescindíveis, como o de Myriam Muniz, e registra apenas um relato breve de Boal, além de transcrever uma entrevista de Guarnieri datada de 1968. Com um conhecimento abrangente da trajetória do grupo, esses artistas teriam condições de contribuir para uma rede de memórias que ampliasse a história cotidiana do teatro. Por outro lado, algumas participações são modelares, como a de Chico de Assis, que alia fatos episódicos à reflexão crítica ao retomar, por exemplo, uma apresentação de "Eles Não Usam Black-Tie" no sindicato de metalúrgicos, sublinhando a discordância dos operários com as posições do grupo. O mesmo vale para os depoimentos de Vera Gertel, David José e a primorosa intervenção de Décio de Almeida Prado, a quem o autor solicita um panorama cultural da fase anterior ao Arena, o que acaba inviabilizando um enfoque específico da companhia. Também o livro de Gianni Ratto -"Hipocritando"- se assemelha a um registro de oralidade, como se um professor não convencional se dirigisse a atores em formação para falar um pouco sobre a arte de interpretar e muito sobre a "mentira da criatividade", usando como fio condutor do argumento o "hypocrités", não apenas o ator/fingidor grego, mas todo aquele para quem a metamorfose é ofício.

Maiêutica
O impulso metafórico que norteia as reflexões desse homem de teatro total, admirador de Gordon Craig, parceiro de Giorgio Strehler no Piccolo Teatro, de Milão, diretor e cenógrafo de criações memoráveis como "O Mambembe", de Arthur Azevedo, e "Gota d'Água", de Chico Buarque e Paulo Pontes, resulta numa maiêutica tencionada por suas qualidades maiores.
A erudição, o agudo senso intuitivo e a exímia leitura da imagem permitem-lhe contrapor idéias a uma iconografia que envolve o ator numa teia de manifestações artísticas e naturais, criando vínculos insuspeitos. Ao unir o auto-retrato de Van Gogh a uma estatueta do 3º milênio a.C, na sugestão do diálogo secreto do artista com as coisas, ou relacionar a criação do ator à devoração dos filhos de Saturno, Gianni Ratto esboça uma cenografia de idéias, em que a figura expõe o tema e o ator é apenas um "leitmotiv" de sensibilização humana.
É interessante constatar como esse viés humanista, ao tangenciar a teoria da cultura, aproxima certas passagens do livro de alguns tratados de antropologia teatral, tanto pelo olhar etnológico sobre o ator quanto pelo esforço de reconciliar o sensível e o inteligível, colocando o símbolo acima do conceito e escapando, assim, às categorias tradicionais de análise da interpretação.
Se alguns operadores ainda persistem, como a equivalência, a antítese, a tensão, a máscara, a gestualidade, a memória, a mimese, o jogo e até mesmo a situação dramática, é apenas como parte de um substrato comum que o autor reconhece nas formas de expressão humanas e associa a elementos socioculturais e até mesmo naturais, esfumando a oposição entre natureza e cultura, que a antropologia teatral se esforça tanto por refutar.
Por outro lado, o cultivo da técnica corporal, tão comum nos treinamentos de Eugênio Barba, por exemplo, não encontra a menor ressonância no livro de Ratto, para quem ela traz prejuízo à criatividade. Outras palavras-chave do teatro contemporâneo também são alvo de crítica, a começar pelo dramaturgismo, "uma adaptação que não aceita suas limitações", ou a escritura do espetáculo, um conceito com "cheiro de elitismo".
De qualquer forma, o que prevalece na cartografia de "Hipocritando" não é a polêmica, mas a afinidade entre o artista plástico e o ator, pois "ambos conduzem ao espetáculo, ao quadro e à escultura". Usando o mote como tema e método, Gianni Ratto se aproxima dos autores de incunábulos que tanto admira, revelando-se, como eles, um mestre em aliar idéias e formas. Também neste caso a resultante é uma pequena obra de arte.


Sílvia Fernandes é professora de história do teatro na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "Memória e Invenção" (Perspectiva).

Teatro de Arena
160 págs., R$ 29,00 de Izaías Almada. Ed. Boitempo (r. Euclides de Andrade, 27, CEP 05030-030, São Paulo, SP, tel. 0/ xx/11/ 3872-6869).

Hipocritando
144 págs., R$ 80,00 de Gianni Ratto. Ed. Bem-Te-Vi (av. Presidente Wilson, 231, 10º andar, CEP 20030-021, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/3804-8678).


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