São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desconstruindo o amanhã

Em "De Que Amanhã...", o filósofo Jacques Derrida e a psicanalista Elisabeth Roudinesco debatem a pena de morte e o anti-se mitismo

Sérgio Telles
especial para a Folha

Amigos de longa data, a psicanalista Elizabeth Roudinesco e o filósofo Jacques Derrida dialogam neste livro sobre a modernidade e refletem sobre o futuro, tendo como mote um verso de Victor Hugo: "De que amanhã se trata?". Pelo visto, um amanhã que já se desenha agora, no desdobramento das questões que Derrida e Roudinesco esmiúçam com grande acuidade, num esforço iluminista para afastar o obscurantismo e propagar o conhecimento. Um dos pontos de maior comunhão entre os dois autores é o apaixonado amor pela psicanálise, que os leva a preconizar a necessidade inadiável de que o saber psicanalítico, "sem álibi teológico ou metafísico", seja absorvido pelos discursos ético, jurídico e político. Ambos se preocupam com a natureza das instituições psicanalíticas, fato que os levou a criar, com René Major, o movimento dos Estados Gerais da Psicanálise. Como é sabido, o próprio procedimento de "desconstrução", pelo qual Derrida ficou famoso, se apóia fortemente nas descobertas freudianas. As desconstruções realizadas nesse diálogo remetem, de certa forma, ao clássico freudiano "O Mal-Estar na Cultura". A história da humanidade é uma tumultuada alternância entre civilização e barbárie, na qual tem sido necessário uma permanente vigilância para que a primeira não seja destruída pela segunda. Essa visão corrente necessita de correções, como mostrou Freud. A maior delas é reconhecer que a oposição civilização-barbárie não marca campos completamente heterogêneos, pois a barbárie está inserida no próprio cerne da civilização; estruturas simbólicas consideradas baluartes da civilização estão assentadas na mais pura barbárie. O conflito entre pulsão e repressão é constitutivo da civilização, e a força da pulsão de morte não deve ser jamais ignorada.

"Amai o próximo"
Isso fica claro na desconstrução que Derrida faz da pena de morte. Descobrimos com ele que a organização do Estado e o sistema jurídico -evidentes expressões de civilização- têm como pedra angular a pena de morte e que ela, por sua vez, se apóia em arcaicas e bárbaras idéias de sacrifício sangrento humano. O conceito de pena de morte está ligado à questão do poder de Estado, de sua soberania (o direito à exceção, direito de exercer a crueldade) e suas relações com a religião.
Ampliando a desconstrução, Derrida analisa a íntima relação existente entre a pena de morte e a Igreja Católica, que nunca se manifestou contra tal procedimento, fato curioso dado sua pregação centrada no perdão, no "amai o próximo como a ti mesmo".
Algo semelhante ocorre com a posição da filosofia, que -com raras exceções- silencia a respeito da pena capital. Aos muitos problemas filosóficos aí envolvidos (pena interna ou externa; autopunição e heteropunição; a interpretação kantiana da pena de talião; as questões da paz, da guerra e do perdão), Derrida acrescenta a descoberta psicanalítica de que o sentimento inconsciente de culpa precede o crime, o que coloca tudo isso sob nova perspectiva, possibilitando a idéia de que no futuro o mal seja considerado uma doença, como foi expresso por Reik e endossado pelo próprio Freud.
Citei com algum detalhe as considerações de Derrida e Roudinesco sobre a pena de morte, mas a mesma complexidade e beleza expositiva é encontrada nos demais temas abordados -a liberdade e a fundamental importância do encontro com o outro, as políticas das minorias, a violência contra os animais, o retorno do anti-semitismo e as mudanças na constituição da família possibilitadas pela tecnociência.
Por fim, Derrida propõe a necessidade de elaborar o luto pela revolução tal como a entendíamos, para que possamos resgatar seu espírito na construção de uma nova Internacional, na qual as noções de "programa" e "política", devidamente desconstruídas, possibilitariam a criação de direitos humanos além da "cidadania", por colocarem em jogo uma extraterritorialidade e um abandono do Estado como referência. Aí então seria possível um novo "amanhã".


Sérgio Telles é escritor e psicanalista, membro do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e autor de "Fragmentos Clínicos de Psicanálise" (Casa do Psicólogo/Edufscar).

De Que Amanhã...
240 págs., R$ 39,00 de Jacques Derrida e Elisabeth Roudinesco. Tradução de André Telles. Jorge Zahar Editor (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).


Texto Anterior: + livros: A história oral dos palcos
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.