São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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Tradução de "Odes e Epodos", do poeta latino Horácio, consegue fundir pensamento, forma verbal e ritmo

A unidade estética perfeita

Isaias Pessotti
especial para a Folha

Qualquer amante da cultura clássica ficará fascinado diante desta preciosidade que são "Odes e Epodos", de Horácio. Um texto primoroso, com apresentação e feitura gráfica refinadas. É a poesia do mais "helênico" dos poetas latinos, ao lado de uma tradução brilhante. Os méritos poéticos dela são devidamente reconhecidos no início do livro, no comentário competente de Antonio Medina Rodrigues, o que me deixa à vontade para apreciar o texto na minha condição de mero admirador de quem conhece os clássicos.
Mesmo com esse olhar de leigo, é fácil reconhecer ali uma tradução exemplar. Ela combina, com a naturalidade típica dos mestres dessa arte, as duas marcas da grande poesia clássica: o estro e o metro. Essa maestria rara, produto da profunda cultura humanística do tradutor, brota também de sua atração pela poesia de Horácio. Há em cada verso da tradução a busca da forma perfeita. Que harmoniza a força das imagens e o requinte métrico de Horácio com a forma poética igualmente intensa e rítmica no melhor idioma português. Obra de um poeta tradutor, tão tradutor quanto poeta. Que chega ao virtuosismo de enxertar "versos inteiros de Camões", quando a poesia o pede, a fim de preservar, na tradução, a métrica que o verso original sugere.
É o estro e o metro em síntese perfeita, "é o talento para adaptar os ritmos ao sentimento". O estro se revela, em cada verso, na perfeita unidade estética em que se fundem o pensamento, a forma verbal e o ritmo. Os versos fluem, naturais, espontâneos, brotados de uma "intuição tradutora" que concebe o sentido original em uma forma nova. Não como uma versão vernácula da forma latina.
Até as preferências literárias de Horácio em suas alegorias rebuscadas encontram nesta tradução a sua expressão fiel. E feliz, com brilho próprio. O culto da medida, por sua vez, é onipresente, seja na forma métrica da tradução, seja, até, no respeito às gradações de ênfase do pensamento original.


Aqui, ensinar latim é como cultivar a uva do vinho preferido


Tanta perfeição da forma final é produto de rara competência literária. Mas deriva também do fascínio pela cultura clássica mais requintada e pela beleza formal da linguagem. Como mostra, por exemplo, a construção, clássica, desse comentário sobre a métrica de Horácio: "Os metros líricos, tirou-os quase todos de Arquíloco, Safo e Alceu. Modificou, todavia, alguns deles e criou outros: obra de metade dos que empregou, pertence-lhe, de seu". É o prazer da forma, aquele "reservado aos que Apolo perfumou com um pouco de seu néctar".
Esse mesmo culto da forma transparece nas páginas do anexo que completa o volume. Ali, em lugar do tradutor inspirado, encontramos a figura ascética do professor, que aponta, em Horácio, a evolução de um "realismo grosseiro", companheiro de uma ética utilitária e epicurista, para um lirismo elevado, condizente com sua conversão à moral estóica, quando "a aspereza primitiva do seu estro, aquela sátira azeda, abrandou-se em ironia sutil", quando "já sob novas luzes filosóficas, cria, com as odes, a poesia lírica latina".
É um professor que, em "A Minha Aula de Latim", nos revela um precioso achado didático: o seu método de ensinar a ler os clássicos. Quem aprendeu latim saberá admirar os manuscritos, comoventes, que ilustram esse método e que Anna Lia de Almeida Prado, iluminadamente, incorporou ao livro.
Explico esse entusiasmo: segundo meus mestres de latim, a começar por frei Policarpo de Hamborn, traduzir Virgílio ou Catulo era tarefa para quem já dominasse a prosa de Cícero e Júlio César; e Horácio era o mais difícil dos poetas latinos. Com a ordem arrevesada dos termos, as expressões irônicas, nomes estrangeiros não declináveis, flexões desusadas, alusões mitológicas e vocabulário sofisticado, desencorajava qualquer tentativa de traduzi-lo.
Agora, "sero nimis", encontro nos diagramas manuscritos dessa bela "aula de latim" toda uma técnica de análise da arquitetura dos versos. Uma hermenêutica de Horácio (que teria facilitado muito a vida de frei Policarpo e a minha).
É um modo de disposição gráfica dos elementos do verso segundo uma hierarquia de suas possíveis funções sintáticas. De um tronco em que se sucedem sujeito, verbo e predicado (ou objetos, direto ou indireto), saem, em ramificações laterais, os atributos e complementos imediatos desses elementos-chave. Delas nascem ramos outros, mais distais, onde cabem os termos puramente complementares, circunstanciais.
Nessa disposição, o aparente emaranhado da forma original ganha uma linearidade sintática surpreendente. Via de regra, os ablativos (circunstanciais) ficam nos ramos mais distais, e, os acusativos, no tronco. Então, por exemplo, um ablativo no meio do verso levará o aprendiz a buscar o termo, mais central, que ele complementa. Assim, o aluno aprenderá a perceber os nexos sintáticos (principais ou acessórios) sem se desorientar pelas inversões e intercalações ditadas pela métrica ou pelo estilo.
Há muita virtude nessa dedicação de mestre. Não uma dedicação sofrida: apenas outro modo de fruição estética da cultura clássica. Aqui, ensinar latim é como cultivar a uva do vinho preferido. É plantar, enxertar, à espera do prazer da colheita. Igual ao do camponês, quase virgiliano, do segundo epodo: "Quando, carregado de frutos, surge o outono, como lhe apraz as pêras apanhar que ele próprio enxertou, e aquelas uvas, que, pela cor, à púrpura se igualam...".
Este livro é, presumo, um início de colheita. Tomara que Anna Lia de Almeida Prado a enriqueça.

Isaias Pessotti é escritor e ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto (SP). É autor de "Os Nomes da Loucura" e "O Século dos Manicômios" (ed. 34).

Odes e Epodos
308 págs., R$ 40,50 de Horácio. Trad. de Bento Prado de Almeida Ferraz. Org. de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330/ 340, CEP 01325-000, SP, tel. 0/xx/11/3241-3677).


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