São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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+ literatura

ENSAÍSTA DISCUTE A RELAÇÃO DAS TRÊS "FIGURAS" ENVOLVIDAS NA CRIAÇÃO DO ROMANCE DE GRACILIANO RAMOS PUBLICADO EM 1936

Angústia e seus autores

Ivan Teixeira
especial para a Folha

Angústia" foi escrito entre 1933 [ ] e 1936, quando Graciliano Ramos era diretor de Instrução Pública em Maceió. Segundo consta de seu discurso biográfico, estabelecido pelo próprio autor, Graciliano Ramos teria sido preso no mesmo dia em que entregou os manuscritos à datilógrafa, em março de 1936. Sua prisão não se fundou em nenhuma razão específica, exceto no fato de o escritor ser avesso às direitas autoritárias, então em franca ascensão no Brasil e no mundo. "Angústia" saiu em agosto de 1936, quando o escritor estava na prisão, aos 44 anos. Mas esse não é o único autor de "Angústia". Há outros, instituídos pela própria condição do sistema ficcional da literatura, que pensa, imagina e cria independentemente da vontade ou da consciência do cidadão que produziu aquele artefato cultural.
Como se sabe, em um romance, a apresentação da história pode assumir inúmeras variações, de cujo conhecimento decorrerá a melhor ou a pior compreensão do significado artístico da narrativa. Algumas dessas variações podem ser apreendidas por meio do alcance das respostas que o leitor consegue dar a algumas questões de caráter teórico, que envolvem, entre inúmeras outras, a noção de autoria, de narrador, de enredo, de fábula, de foco narrativo e das diversas variantes e implicações que este pode assumir. Para discutir a hipótese do segundo autor de "Angústia", é preciso insistir, ainda, no abc da teoria do discurso ficcional em prosa, começando pelo início: o que é enredo? É o que acontece com as personagens de uma narrativa, apresentada por uma voz a que se dá o nome de narrador. Escritor é aquele que escreve; narrador é aquele que conta. O primeiro nem sempre é acessível ao leitor; o segundo estará sempre à sua disposição, desde que inicie a leitura de um livro.

Jogo de autores
Assim, pode-se admitir que o primeiro autor de "Angústia" é o mesmo homem que, em outro momento, foi prefeito de Palmeira dos Índios. Como ocorre com qualquer escritor bem definido, em vez de conceber diretamente um narrador para "Angústia", Graciliano Ramos inventou, antes, um escritor -o qual concebeu o narrador que apresenta a história contida no livro. Esse primeiro escritor imaginado seria o segundo autor do romance, que, teoricamente, possui precedência sobre o homem Graciliano Ramos. Conforme a mesma linha de raciocínio, o narrador de "Angústia", Luís da Silva, que afirma ter vivido a história contida no livro, é o terceiro autor apresentado pelo cenário ficcional do romance. Sendo escritor inventado por um autor virtual, seria ingênuo supor que Luís da Silva viveu de fato o que afirma ter vivido. Como narrador que recompõe a própria vida pela escrita, deve ser interpretado como personagem que produz uma pseudo-autobiografia, a qual, em última análise, decorre da invenção e da elocução do escritor hipotético de "Angústia", imaginado por Graciliano Ramos. Não obstante a lógica da ficção literária obriga a aceitar como verdadeira a história inventada por esse autor, que a concebe como relato existencial de Luís da Silva. A admitir esse jogo de afirmação e de negação previsto pela gramática da composição artística de qualquer narrativa, tem-se de buscar o perfil ontológico dos três autores envolvidos em "Angústia". Comece-se pelo escritor-narrador, que, funcionando como sujeito e objeto do cenário romanesco, possui uma espécie de anterioridade no processo imaginário de que emerge.

Diário íntimo
Núcleo desse xadrez de sombras e simulações, Luís da Silva é um intelectual solitário que, levado pelo desejo de escrever um livro, compõe uma trama em que figura como protagonista de uma história de amor que termina em homicídio. Tendo imaginado experiências extremas para sua personagem, o escritor figurado pelo romance inventa um narrador que não consegue se furtar ao impulso de escrever em primeira pessoa, como se compusesse um diário íntimo.


O escritor Graciliano Ramos, que difere integralmente do homem, deve ser concebido como efeito de sua ficção


Sendo personagem-narrador, Luís da Silva projeta toda sua singularidade no texto, atribuindo-lhe a condição de reflexo de uma ficção. Logo, o texto tanto pode ser pensado como imagem virtual de uma psicologia imaginária quanto como configuração real de palavras de onde emerge o desenho verossímil da mente que a teria gerado. Visto que o narrador do romance se deixa interpretar como um escritor fictício cuja narrativa simula a vida de quem a escreve, a obra encarna o próprio conceito de arte, que prescinde de matriz realista imediata, imitando antes modelos, estruturas ou discursos da tradição do que propriamente situações empiricamente demonstráveis. Ao justificar a presença de uma faixa de tinta verde no rosto de uma de suas figuras femininas, Henri Matisse afirmou que desejava compor um quadro, e não criar uma mulher. Logo, o que realmente interessa no romance são os limites do próprio livro, que se alargam infinitamente à medida que envolvem a maturação de um problema pessoal, entendido como referente do fingimento artístico posto em cena pelo sujeito da narrativa.
Conforme esse argumento, Luís da Silva se confunde com o próprio efeito de angústia programado pelo romance. Tudo depende de sua voz criadora, porque ele é narrador dominado pelo propósito de construir um texto à imagem e semelhança dos fantasmas de seu mundo subterrâneo. Luís da Silva transforma-se numa espécie de homem-arte: matou para produzir literatura; inventou um amor para motivar o crime; depois, justificou o crime para fundar uma ética. De fato, o relato de Luís da Silva emaranha-se visceralmente com sua vida: as propriedades de seu caráter determinam a ação do livro, assim como os acidentes da enunciação acabam por alterar as disposições de seu caráter.
Se a posição de Luís da Silva se define, ainda que de forma singular, como personagem-narrador, cuja ação se condensa na composição de sua autobiografia, qual seria a relação entre Graciliano Ramos e o escritor que ele concebeu como inventor de Luís da Silva? Evidentemente, a relação é de semelhança, pois, assim como Graciliano inventou o autor de "Angústia", este inventou o agente e o criador de sua história, cujo núcleo é a redação do próprio livro. Todavia o livro imaginado pelo autor hipotético e escrito por Luís da Silva aparece, nas livrarias, assinado por Graciliano Ramos. Desenvolvendo premissas de seu livro "A Formação do Nome" (ed. da Unicamp) -finalmente algo de novo e teoricamente sustentável sobre Machado de Assis!-, o ensaísta português Abel Barros Baptista abordou essa questão em instigante artigo sobre "São Bernardo" (Lisboa, "Colóquio/Letras", nš 129/130). Assim, segundo a lógica artística, que atribui precedência aos componentes ficcionais do discurso literário, o homem que redigiu "Angústia" pode e, em certo sentido, deve ser concebido como criação de suas páginas. Pois, para se tornar artista, o homem Graciliano Ramos teve, primeiro, de conceber suas criaturas ficcionais, que o instituem como inventor de histórias. Caso não as escrevesse, o diretor de Instrução Pública de Maceió não se agregaria ao mundo da ficção brasileira. Logo, sua condição de escritor é inventada pelos livros que escreveu.
Assim, o escritor Graciliano Ramos, que difere integralmente do homem, deve ser concebido como efeito de sua ficção, isto é, como resultado dos componentes da poética cultural segundo a qual construiu o discurso que propicia e condiciona sua existência como artista. Essa hipótese não o afasta da história nem das contingências sociais. Ao contrário, aproxima-o ainda mais da realidade de seu tempo. Visto dessa maneira, o artista converte-se em encarnação viva do discurso cultural de uma época, que envolve tanto noções de ética e de ideologia especificamente consideradas quanto concepções de arte e princípios de técnica construtiva. De onde se extraem as características do perfil estilístico, temático ou ideológico de um artista senão da observação de sua obra?
Se isso vale para a descrição tradicional dos artistas (um construto cultural como tantos outros), por que não admitir que Graciliano Ramos é invenção de suas próprias obras? Segundo esse raciocínio, o primeiro autor hipotético de "Angústia" não só imaginou o escritor-narrador Luís da Silva, como também inventou o autor cujo nome aparece nos livros que servem de suporte material para a ficção de seu romance. Assim, o primeiro escritor hipotético, aquele que cria a personagem Luís da Silva, se identifica com o artista Graciliano Ramos, que não se confunde, digamos, com o pai de Ricardo Ramos. Trata-se, antes, de uma entidade cultural, estilizada pelo hábito de escrever e resultante de seu repertório ético, estético, técnico, ideológico, político e sociocultural.

Ivan Teixeira é professor no departamento de jornalismo e editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP. É autor, entre outros, de "O Cuspe da Aranha - Literatura e Poética Cultural" (a sair pela Ateliê Editorial).


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