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+ cultura
Autor de "Matadouro 5", romance de 1969 que se tornou um libelo contra a
guerra, Kurt Vonnegut se diz "paralisado" e fala que a TV acabou com a literatura
"Todos éramos crianças"
Livia Manera
do "Corriere della Sera"
Há quase meio século Kurt Vonnegut conta o
mundo com o desencanto de "assim é a vida",
como repetia em seu romance "Matadouro
5". Meio século em que a crítica tentou encontrar um nome para a originalidade desse escritor com
pouco mais de 80 anos. Algumas vezes o chamaram de
visionário; outras, de amável Cassandra, autêntico desobediente e humanista. "É melhor dizer que sou um
socialista", ele disse durante a entrevista no escritório
de seu representante, em Nova York. "Descobri que um
humanista é uma pessoa que tem um grande interesse
pelos seres humanos. Meu cachorro é um humanista."
O que escreve hoje um dos maiores autores americanos,
que ligou seu nome aos protestos contra o Vietnã e à revolução cultural dos anos 60 e que sempre está perto do
coração dos jovens?
Nada. Estou literalmente paralisado pelo estado em
que se encontra meu país. É como viver sob um exército de ocupação que se apoderou dos meios de comunicação [ele atira sobre a mesa um fascículo de algumas páginas fotocopiadas]. Este é meu último livro. Tive de publicá-lo por conta própria.
De que trata?
É uma coletânea de comentários que escrevi para
um jornal de Chicago sobre o golpe de estado nas últimas eleições.
Fala sobre a vitória de Bush...
Falo sobre como o poder acabou nas mãos de gente
terrível, maléfica, ignorante e privada de consciência, que não tem nenhum respeito pelo sistema americano. Em outros tempos, sobre um argumento semelhante poderia ter escrito uma obra teatral que teria provocado uma reação. Mas não agora, que nosso governo moral está representado pela televisão.
Uma televisão que nos diz sempre e unicamente que
tudo vai bem.
E o sr. combateu na Segunda Guerra Mundial? O sr. matou alguém em alguma guerra?
Não, porque era um tipo particular de soldado, não
um covarde, mas um "scout" [batedor]. Nosso dever
era penetrar nas linhas inimigas sem sermos notados, descobrir o que havia atrás, voltar e contar para
a artilharia. Considero-me feliz por não ter matado
ninguém. Mas, se tivesse sido necessário, o teria feito. Fui um bom soldado.
Em "Matadouro 5" o senhor contou a loucura do bombardeio de Dresden: 135 mil mortos, o dobro das vítimas de
Hiroshima. O senhor esteve lá como prisioneiro de guerra. Como foi capturado?
Nosso batalhão foi atraído por uma divisão de alemães. Fizeram-nos abandonar nosso meio e entrar
diretamente num pesadelo. Não tínhamos a mais
pálida idéia do destino para o qual caminhávamos.
Haviam capturado nosso comandante e este tinha
dado ordem para nos rendermos. Uma ordem ilegal:
é como dizer a um soldado que se suicide.
De todo modo, o senhor levou 24 anos para elaborar essa
história em "Matadouro 5".
Mais do que elaborar, para escrever. Tinha uma família para sustentar [Vonnegut tem sete filhos, dos
quais três adotivos, de uma irmã que morreu]. Então
eu disse: "Tudo bem, nunca escrevi um romance de
guerra". Então fui me encontrar com o "scout" que
na época da guerra era meu companheiro -nesse
ínterim ele tinha se transformado em procurador-
e lhe disse: "Ajude-me a lembrar o que aconteceu naquela época". Então chegou sua mulher e disse:
"Mas eram duas crianças!". Essa foi a chave do livro.
Todos éramos crianças.
O senhor voltou a lê-lo?
Nunca. Nem mesmo consegui tocar nas provas.
Então gostaria de saber que depois de 34 anos ainda é
um dos romances mais fortes e mais originais da narrativa norte-americana -e não apenas dos romances sobre
a guerra. É um livro que não envelheceu.
O que você diz me dá muito prazer, é claro. É a nau
almiranta de minha pequena frota. Embora o livro
mais próximo de meu coração seja "The Cat's Craddle" [O Berço do Gato].
Por quê?
Não sei. Já se apaixonou alguma vez?
O sr. acredita que, se não tivesse combatido na Segunda
Guerra Mundial, teria se transformado
em escritor de qualquer maneira?
Meu amigo Joseph Heller (1923-1999), que escreveu "Ardil 22", dizia que, se não tivesse sido a Segunda Guerra, teria terminado numa tinturaria. Quanto a mim, não
sei. Certamente há outras coisas
que me fizeram escrever: as mudanças tecnológicas que destruíram tantas culturas, por exemplo.
Sou antropólogo por formação.
Um dos motivos pelos quais nós,
americanos, somos odiados é porque introduzimos em outros países novas tecnologias e planos econômicos que destruíram o respeito
próprio e a cultura de muita gente.
Em "O Berço do Gato", em 63, o sr. escreveu que "os norte-americanos não
conseguem imaginar o que significa
ser diferente deles e sentir orgulho
dessa circunstância". E que "a política
externa americana deveria aprender a
reconhecer o ódio, em vez de imaginar
o amor". O 11 de Setembro o surpreendeu?
Não. Surpreendeu-me mais que nada o ótimo trabalho que os terroristas fizeram. Estavam realmente
preparados! Naturalmente, são as mesmas pessoas
que inventaram os números, o zero e a álgebra, logo
isso não deveria assombrar tanto.
O sr. sempre disse que a literatura é por definição portadora de opiniões. Qual é a literatura que importa hoje?
O problema é que não importa -e por isso não consigo escrever. Em uma época importava -e muitíssimo. Foi o lugar em que, durante a Grande Depressão, se discutiram os temas da economia e da política. E no pós-guerra nos interrogávamos sobre o tipo
de país que os Estados Unidos poderiam ser. Depois
veio a televisão e tudo terminou [magro e desalinhado, Kurt Vonnegut levanta-se para voltar para sua
casa. Mas pouco antes de sair, no último momento,
vira-se:] Deve ser por causa da álgebra que Bush os
odeia [E uma última gargalhada retumba, combativa, por trás da porta].
Tradução deLuiz Roberto Mendes Gonçalves.
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