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+Sociedade
Terra devastada
Uma das mais famosas novelas da literatura alemã,
"O Terremoto no Chile", de Kleist, tematiza a relação entre a força da natureza e a capacidade destrutiva do homem
MARCUS MAZZARI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um ano após o devastador terremoto de Lisboa, certamente um dos
maiores abalos sofridos pela consciência europeia, Kant conclui na pacata
Königsberg a sua "História e
Descrição Natural dos Fatos
Mais Notáveis do Terremoto
no Final de 1755". Diz o filósofo
numa passagem:
"É necessário reunir tudo
aquilo que a imaginação consegue conceber de mais terrível
para representar, ainda que
precariamente, o horror em
que as pessoas se veem quando
a terra se move sob seus pés,
quando tudo ao redor vem
abaixo, quando a água agitada
em seu leito completa a desgraça com inundações e quando o
temor da morte, o desespero
pela perda total de todos os
bens e, por fim, a visão de outras misérias arrasam mesmo o
ânimo mais resistente.
Uma tal narrativa seria comovente e,
por ter um impacto direto sobre o coração, talvez possa torná-lo melhor. Só que eu deixo
essa história para mãos mais
capazes."
Dessas palavras o jovem Heinrich von Kleist (1777-1811) extraiu a inspiração para uma das
mais extraordinárias novelas
da literatura alemã, gênero
que, em suas mãos, atingiu níveis insuperáveis, fazendo plena justiça à etimologia da palavra: as novelas desse autor
constituem, sem exceção, "novidades" inauditas.
Só que, em vez de voltar-se
ao terremoto de Lisboa (como
fizera Voltaire em seu "Cândido"), Kleist recua um século e
coloca no centro da narrativa o
terremoto que atingiu o Chile e
destruiu sua capital no dia 13
de maio de 1647.
Catástrofe
Nasce assim, em 1807, "O
Terremoto no Chile" [trad.
Marcus Mazzari, Companhia
das Letras], e, como é característico de Kleist, já as primeiras
palavras confrontam o leitor
com um acontecimento altamente dramático:
"Em Santiago, a capital do
reino do Chile, no instante exato do grande abalo sísmico do
ano de 1647, no qual milhares
de pessoas encontraram a sua
ruína, Jerônimo Rugera, um jovem espanhol acusado de crime, encontrava-se junto a uma
pilastra da prisão em que havia
sido encarcerado e tencionava
enforcar-se."
Na sequência, Kleist suspende o fio narrativo para recuperar a história pregressa desse
espanhol, preso por ter engravidado a jovem Josefa, filha de
um dos fidalgos mais ricos da
cidade.
O terremoto, contudo, não
apenas interrompe a tentativa
de suicídio e traz abaixo a prisão, mas dispersa também a
marcha de Josefa rumo ao cadafalso, onde seria decapitada
publicamente (afinal, o escândalo ocorrera num país de severíssima tradição católica).
Retomado o fio, Kleist desenvolve a história em ritmo vertiginoso, lançando mão de expressivos recursos para envolver o leitor na catástrofe, como
mostra a narração, fundamentada na exaustiva repetição do
advérbio "aqui", da fuga de Jerônimo:
"Aqui ainda desmoronou
mais uma casa e, arremessando
escombros ao redor, impeliu-o
a uma rua paralela; aqui as chamas já se alçavam de todas as
cumeeiras, coriscando em
meio a nuvens de fumaça, e o
empurraram de maneira pavorosa a uma outra rua; aqui o rio
Mapocho, alçado de seu leito,
veio rolando em sua direção e,
rugindo, lançou-o a uma terceira rua. Aqui se amontoava uma
pilha de corpos esmagados, gemia ainda uma voz sob os escombros, aqui gritavam pessoas do alto de telhados tomados pelo fogo, seres humanos e
animais lutavam contra as ondas, um corajoso empenhava-se em trazer ajuda e salvamento; aqui estava um outro, pálido
como a morte, e em mudez estendia mãos trêmulas para os
céus."
As reviravoltas que se dão na
história dos amantes reunidos
pelo terremoto são tantas e tão
surpreendentes que mesmo
um breve resumo ocuparia bastante espaço.
História política
Vale apontar para o emprego
disseminado da conjunção
temporal "quando" ("als"), recurso com o qual Kleist acompanha, na dimensão linguística,
desdobramentos marcados pela irrupção brusca do inesperado e do radicalmente diverso
-o que contribui para imprimir à narrativa o seu movimento vertiginoso.
Baseando-se na tragédia que
atingiu o Chile em 1647, Kleist
oferece expressiva ilustração às
palavras lançadas por Kant no
escrito mencionado.
Mas a novela coloca em cena
muito mais do que o horror
inaudito de um terremoto; conta-nos também uma tragédia
amorosa e, entrelaçada a esta,
uma história política, pois demonstra por fim que a violência
emanada dos homens pode ser
ainda mais aniquiladora do que
a violência da natureza.
Trinta e cinco anos mais tarde, Heinrich Heine (1797-1856)
também contrapõe a violência
da natureza e da história numa
crônica datada de 31 de dezembro de 1842.
Foi um ano trágico, e o cronista começa a imaginar suas
incontáveis vítimas entrando
no Reino de Pluto, entre os
quais franceses e alemães carbonizados em incêndios de
grandes proporções.
Mas, de repente, Heine vê
marcharem as vítimas de outra
catástrofe que volta a abalar os
dias de hoje:
"No dia seguinte, enquanto
Hamburgo ainda ardia, ocorreu
o terremoto no Haiti e os pobres negros foram arremessados aos milhares para o Reino
das Sombras. Quando chegaram banhados em sangue, acreditou-se lá embaixo que eles vinham de uma batalha com os
brancos e haviam sido massacrados ou chicoteados até a
morte como escravos sublevados. Não, também dessa vez a
boa gente do Estige se enganou.
Não foi o homem, mas sim a natureza que causou o grande banho de sangue naquela ilha onde a escravidão foi abolida há
tempos."
E Heinrich Heine emprega
assim os últimos instantes do
ano de 1842 para lembrar suas
vítimas, em particular os miseráveis habitantes dessa ilha
"tão quente, onde crescem a cana, o café e a negra liberdade de
imprensa e onde, portanto,
com muita facilidade pode
ocorrer um terremoto".
MARCUS MAZZARI é professor de literatura
comparada na USP, autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (ed. Ateliê).
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