São Paulo, domingo, 07 de março de 2010

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+Sociedade

Terra devastada

Uma das mais famosas novelas da literatura alemã, "O Terremoto no Chile", de Kleist, tematiza a relação entre a força da natureza e a capacidade destrutiva do homem

MARCUS MAZZARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um ano após o devastador terremoto de Lisboa, certamente um dos maiores abalos sofridos pela consciência europeia, Kant conclui na pacata Königsberg a sua "História e Descrição Natural dos Fatos Mais Notáveis do Terremoto no Final de 1755". Diz o filósofo numa passagem: "É necessário reunir tudo aquilo que a imaginação consegue conceber de mais terrível para representar, ainda que precariamente, o horror em que as pessoas se veem quando a terra se move sob seus pés, quando tudo ao redor vem abaixo, quando a água agitada em seu leito completa a desgraça com inundações e quando o temor da morte, o desespero pela perda total de todos os bens e, por fim, a visão de outras misérias arrasam mesmo o ânimo mais resistente.
Uma tal narrativa seria comovente e, por ter um impacto direto sobre o coração, talvez possa torná-lo melhor. Só que eu deixo essa história para mãos mais capazes."
Dessas palavras o jovem Heinrich von Kleist (1777-1811) extraiu a inspiração para uma das mais extraordinárias novelas da literatura alemã, gênero que, em suas mãos, atingiu níveis insuperáveis, fazendo plena justiça à etimologia da palavra: as novelas desse autor constituem, sem exceção, "novidades" inauditas.
Só que, em vez de voltar-se ao terremoto de Lisboa (como fizera Voltaire em seu "Cândido"), Kleist recua um século e coloca no centro da narrativa o terremoto que atingiu o Chile e destruiu sua capital no dia 13 de maio de 1647.

Catástrofe
Nasce assim, em 1807, "O Terremoto no Chile" [trad. Marcus Mazzari, Companhia das Letras], e, como é característico de Kleist, já as primeiras palavras confrontam o leitor com um acontecimento altamente dramático: "Em Santiago, a capital do reino do Chile, no instante exato do grande abalo sísmico do ano de 1647, no qual milhares de pessoas encontraram a sua ruína, Jerônimo Rugera, um jovem espanhol acusado de crime, encontrava-se junto a uma pilastra da prisão em que havia sido encarcerado e tencionava enforcar-se."
Na sequência, Kleist suspende o fio narrativo para recuperar a história pregressa desse espanhol, preso por ter engravidado a jovem Josefa, filha de um dos fidalgos mais ricos da cidade.
O terremoto, contudo, não apenas interrompe a tentativa de suicídio e traz abaixo a prisão, mas dispersa também a marcha de Josefa rumo ao cadafalso, onde seria decapitada publicamente (afinal, o escândalo ocorrera num país de severíssima tradição católica).
Retomado o fio, Kleist desenvolve a história em ritmo vertiginoso, lançando mão de expressivos recursos para envolver o leitor na catástrofe, como mostra a narração, fundamentada na exaustiva repetição do advérbio "aqui", da fuga de Jerônimo: "Aqui ainda desmoronou mais uma casa e, arremessando escombros ao redor, impeliu-o a uma rua paralela; aqui as chamas já se alçavam de todas as cumeeiras, coriscando em meio a nuvens de fumaça, e o empurraram de maneira pavorosa a uma outra rua; aqui o rio Mapocho, alçado de seu leito, veio rolando em sua direção e, rugindo, lançou-o a uma terceira rua. Aqui se amontoava uma pilha de corpos esmagados, gemia ainda uma voz sob os escombros, aqui gritavam pessoas do alto de telhados tomados pelo fogo, seres humanos e animais lutavam contra as ondas, um corajoso empenhava-se em trazer ajuda e salvamento; aqui estava um outro, pálido como a morte, e em mudez estendia mãos trêmulas para os céus."
As reviravoltas que se dão na história dos amantes reunidos pelo terremoto são tantas e tão surpreendentes que mesmo um breve resumo ocuparia bastante espaço.

História política
Vale apontar para o emprego disseminado da conjunção temporal "quando" ("als"), recurso com o qual Kleist acompanha, na dimensão linguística, desdobramentos marcados pela irrupção brusca do inesperado e do radicalmente diverso -o que contribui para imprimir à narrativa o seu movimento vertiginoso. Baseando-se na tragédia que atingiu o Chile em 1647, Kleist oferece expressiva ilustração às palavras lançadas por Kant no escrito mencionado.
Mas a novela coloca em cena muito mais do que o horror inaudito de um terremoto; conta-nos também uma tragédia amorosa e, entrelaçada a esta, uma história política, pois demonstra por fim que a violência emanada dos homens pode ser ainda mais aniquiladora do que a violência da natureza.
Trinta e cinco anos mais tarde, Heinrich Heine (1797-1856) também contrapõe a violência da natureza e da história numa crônica datada de 31 de dezembro de 1842. Foi um ano trágico, e o cronista começa a imaginar suas incontáveis vítimas entrando no Reino de Pluto, entre os quais franceses e alemães carbonizados em incêndios de grandes proporções.
Mas, de repente, Heine vê marcharem as vítimas de outra catástrofe que volta a abalar os dias de hoje: "No dia seguinte, enquanto Hamburgo ainda ardia, ocorreu o terremoto no Haiti e os pobres negros foram arremessados aos milhares para o Reino das Sombras. Quando chegaram banhados em sangue, acreditou-se lá embaixo que eles vinham de uma batalha com os brancos e haviam sido massacrados ou chicoteados até a morte como escravos sublevados. Não, também dessa vez a boa gente do Estige se enganou.
Não foi o homem, mas sim a natureza que causou o grande banho de sangue naquela ilha onde a escravidão foi abolida há tempos." E Heinrich Heine emprega assim os últimos instantes do ano de 1842 para lembrar suas vítimas, em particular os miseráveis habitantes dessa ilha "tão quente, onde crescem a cana, o café e a negra liberdade de imprensa e onde, portanto, com muita facilidade pode ocorrer um terremoto".

MARCUS MAZZARI é professor de literatura comparada na USP, autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica" (ed. Ateliê).



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