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A devassa da devassa
Suspensão de propaganda de cerveja estrelada por Paris Hilton escancara os limites do "politicamente correto" e aponta para o desgaste do erotismo na sociedade atual
Michal Cizek - 17.mar.06/France Presse
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Mulheres utilizam serviços de "spa da cerveja", que incluem imersão na bebida, em Chodova Plana, República Tcheca
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Provei a cerveja Devassa num dia no aeroporto. Mas, quando
vi na TV sua propaganda com uma norte-americana rica que deve a
fama a um vídeo pornô que circulou na internet, achei de mau
gosto e perdi a simpatia pela
bebida. Ponto. Agora, quando o
Conar retirou a propaganda do
ar, vale a pena discutir um pouco o assunto.
O Conar é um órgão privado
-Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária.
Quando alguém fala em regular
os excessos da televisão, a mídia costuma citar o Conar como exemplo de como fazê-lo
sem o Estado intervir. Quando
se para de falar em regulação
social, esquece-se o Conar.
De todo modo, ele nada tem
a ver com o governo.
Numa pesquisa de 2000 que
publiquei em meu livro "O Afeto Autoritário" (ed. Ateliê),
analisei os julgamentos do Conar que encontrei. Notei uma
certa contradição.
Quando o Conselho de Enfermagem reclamou de quatro
propagandas mostrando enfermeiras como mulheres fáceis, o
Conar concordou e as publicidades sumiram.
Já quando psicólogos reclamaram duas vezes porque sua
profissão era ridicularizada, o
Conar disse que as propagandas eram, só, engraçadas. Em
suma, onde para uns há humor,
para outros há preconceito;
mas a linha de corte depende,
muito, do grau de mobilização
dos que se sentem ofendidos.
A questão do humor ou do
preconceito é ponto em que a
publicidade converge com uma
preferência dos jornalistas que
tratam de entretenimento e variedades: segundo eles, o politicamente correto se distinguiria
pela falta de humor. O elogio-padrão a uma peça de teatro
engraçada diz que ela é "politicamente incorreta".
"Politicamente correto" é
um termo pejorativo, usado
para criticar a preocupação,
nascida nos EUA, de movimentos sociais com expressões que
depreciam grupos historicamente perseguidos.
Por exemplo, os verbos denegrir e judiar vêm do preconceito contra negros e judeus
-embora ninguém pense nisso
hoje, quando os usa.
Piada de português
É difícil, mas necessário, separar o que é justo, para combater um preconceito de largas
raízes históricas, e o que é excesso de algumas pessoas que
levam, com boa-fé ou mesmo
sem ela, longe demais a suscetibilidade.
Denegrir, judiar, humor negro não me parecem exprimir,
hoje, preconceito. Tampouco
vejo problema em piadas de loira, de português, de papagaio e
do Juquinha. Já afirmar que "o
asfalto é o preto de quem todo
mundo gosta", como disse um
ministro dos Transportes em
1997, é grave.
E o é justamente porque o
ministro o disse sem maldade:
mostra que em nossos costumes há brincadeiras preconceituosas que rotulam negativamente grupos discriminados.
Sem o "politicamente correto",
isso passaria batido.
A propaganda da Devassa recorda que, na TV brasileira, a
publicidade de cerveja a alia a
mulheres gostosas. Lembro
uma publicidade que fazia um
corpo feminino tornar-se garrafa de cerveja. Mulheres são
convertidas em coisa, em objeto de consumo?
São, sim. Aparecer em propaganda de cerveja é coisa de gostosa. Recentemente, [o colunista da Folha] José Simão foi
proibido de dizer que uma atriz
era devassa (porque a personagem dela, não ela como pessoa,
tinha um "bar da Boa").
Se Hilton aceita aparecer como devassa -mesmo acreditando que a palavra quer dizer
apenas "sexy", como sua equipe declarou à Folha-, talvez
seja uma resposta ao "affair"
Simão: ela aceita fundir sua
pessoa com sua personagem.
Quem gosta de cerveja gosta
de gostosa, portanto, cerveja é
gostosa, talvez devassa.
Mas, se não há diferença entre a mulher-garrafa e a "devassa", por que saiu do ar esta
última propaganda? O Conar
pode ter mudado sua percepção das sensibilidades sociais.
A redução da mulher a objeto
se teria tornado intolerável. Se
o Conar deu razão às enfermeiras, mas não aos psicólogos, é
porque atua sob pressão -o
que é outro modo de dizer que
é atento à sensibilidade social.
Pois, se um indivíduo é injustiçado e só consegue justiça fazendo pressão, isso é errado.
Mas, se um grupo maior se
sente injustiçado e só obtém o
que deseja pressionando, isso
pode ser positivo. Nas relações
macrossociais, justiça não se
dá, não se recebe passivamente, mas se constrói.
Por isso, se as mulheres recusam o papel de objeto, a decisão do Conar pode ser uma
conquista delas.
Contudo, para várias mulheres, tornar-se objeto não é redução, mas aumento, de poder.
"Playboy" e "Big Brother"
É o que leva algumas ao "Big
Brother Brasil". Nos anos 90, a
revista "Playboy" colhia suas
capas nas novelas da Globo.
Hoje, seu maior estoque é o
"BBB". Há décadas, a mulher
que posava para calendários de
borracharia saía mal na reputação. Mas, hoje, na mídia, é ela,
como objeto de desejo, que
controla o sujeito desejante.
O jogo ficou mais complexo.
O sujeito não manda, necessariamente, no objeto. Há mulheres que extraem poder de uma
condição de objeto habilmente
constituída. Madonna explicitou isso com seus clipes, com
seu livro "Sex". O problema é
que essa não é uma verdade
universal nem majoritária. A
mulher atacada sexualmente
na rua não controla nada, não
tem poder, é vítima de uma violência inadmissível.
Mas um número menor de
mulheres -que consegue ser
protagonista do que [o filósofo]
Walter Benjamin chamava a
reprodução mecânica e que hoje chamaríamos a imagem na
mídia- ganha dinheiro, fama,
poder com isso.
O problema é que há mais estupros do que capas de "Playboy", de modo que o poder e a
riqueza de algumas não apagam o abuso sobre muitas.
Finalmente: quando a mídia
defende o direito (da cervejaria? da socialite? do espectador
voyeur?) à propaganda com Paris Hilton, vivemos um fenômeno de desgaste: durante milênios o erotismo esteve no jogo entre o que se vê e o que apenas se adivinha. Mostrar dependia de esconder.
Um autor árabe fala do erotismo que emana de um corpo
velado: ele se faz imaginar pelo
som das joias se chocando, pelo
perfume, pelo movimento do
corpo andando. Erotismo é
imaginação.
Ora, como ficam as coisas
quando o corpo se desnuda tanto? Não se trata apenas de
transformar a mulher em objeto. Pois muda o registro sensual
do corpo. Seria errado achar
que as mulheres despidas suscitam menor desejo do que as
imaginadas. Nossa sociedade se
sexualizou intensamente, com
a mostra ilimitada dos corpos
objetos.
Falta de imaginação
Não creio que isso vá embotar o desejo, embora digam alguns que é de sua natureza buscar o difícil e desdenhar o fácil.
Mas o certo é que, entre o desejo e a realização, o prazo diminuiu. Imaginação exige tempo, demora, frustração, desvio.
Corpos se oferecem, se tomam, como cervejas, mas parece que, se aumentou o acesso físico ao corpo alheio, reduziu-se
a capacidade de imaginar. Sexo,
talvez, sem erotismo.
RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular
de ética e filosofia política na USP. O título deste
texto é uma homenagem do autor, totalmente
fora de contexto, ao belo livro de Kenneth Maxwell sobre a Inconfidência Mineira (Paz e Terra).
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