São Paulo, domingo, 07 de março de 2010

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Cavalaria turca

Aparentado às novelas medievais, épico sobre a formação dos povos da Ásia central ganha tradução em português

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Livro de Dede Korkut" é uma coletânea de 12 narrativas, cujo gênero, denominado "destan" em turco, designa histórias em prosa e poesia de cunho épico, compostas para serem declamadas com acompanhamento de "alaúdes de braço longo".
O livro é parte da herança oral dos povos da Turquia e da Ásia central, a qual, segundo Marco Syrayama de Pinto, autor da verdadeira façanha da tradução, conta com "mais de mil épicos (...) coletados entre os mongóis e os povos turcos".
O "destan" -conquanto emule passagens da Bíblia, do Alcorão e das epopeias homéricas- tem equivalência mais próxima com gêneros ocidentais medievais, como a canção de gesta, a novela de cavalaria e os vários tipos de "lendas e narrativas" incorporadas aos chamados "livros de linhagem". A recolha por escrito do material do livro se deu por meio de dois manuscritos, um de Dresden [Alemanha] e outro do Vaticano, ambos provavelmente de meados do século 16. A sistematização do livro, entretanto, deve ter se dado um século antes, enquanto a composição das narrativas, a julgar pelos dados históricos obtidos de seus heróis principais, deve recuar pelo menos ao século 13.
De qualquer modo, as narrativas são compostas em diferentes épocas, e o livro é, como diz o seu tradutor, "produto da criação de diversos bardos ao longo do tempo". Todas as narrativas contam eventos passados com príncipes dos oguzes, tribos nômades e seminômades que, vindas do Oriente, se estabelecem em regiões montanhosas da Turquia e do Irã, tornando-se parte do Exército seljúcida, e depois do Império Otomano.
Os príncipes mais poderosos eram Bayindir Cã e seu genro Salur Kazan, em torno dos quais se reuniam os protagonistas de cada uma das histórias do livro. Dede Korkut, por sua vez, era o "adivinho" e xamã dos oguzes, um sábio longevo que recebia diversas funções nas tribos, desde a de bardo que memoriza e declama os grandes feitos de seus heróis até a de mediador de situações melindrosas, que demandassem diplomacia e engenho entre os chefes dos clãs.
Os poderes de Dede Korkut, fundados sobre a palavra e o canto, eram também de invocação divina e "performance" mágica, como no conto em que, acuado por um chefe armado e furioso, fez com que a sua espada ficasse "suspensa no ar, porquanto (...) era um santo e seus desejos eram atendidos".

Sincretismo
Isso significa que, como anota Syrayama, a despeito dos esforços do prólogo, escrito em época posterior, para reduzir as histórias a um islamismo puro, encontra-se nelas ineludível traço sincrético, xamanístico, evidenciado também na adoração a cavalos, lobos, montanhas e árvores.
As narrativas produzem sempre elogio à descendência, bem como à fidelidade ao nome, ao sangue, aos pais. É igualmente objeto de encômio o valor demonstrado pelo guerreiro no ardor da luta, sem excluir dessa dignidade belicosa os pastores e as mulheres.
Estas, por vezes, demonstram tal habilidade nos combates que o herói, como ocorre na história de Kan Turali, percebendo que quem havia de fato derrotado e posto em debandada o inimigo era a sua amada princesa Seldjan, foi tomado de tal fúria que teve desejo de matá-la, para que ela não "se gabasse" diante de todos. A pintura dos temores que acometem os heróis em relação à geração de descendentes e à sucessão da chefia do clã é notável na história do ciclope Depegöz, que ecoa o gigante Polifemo, e sobretudo na de Domrul, na qual a "loucura" da ofensa aos aliados, da desobediência aos pais e da blasfêmia contra os deuses é contida suavemente pela mulher, cujo amor incondicional tudo reconcilia.
Nenhuma narrativa, porém, é superior à de Bogatch Cã, que abre o "Livro de Dede Korkut". Tópicos como a desonra dos pais sem filhos, a confiança na oração ao Deus único que tudo provê, a traição dos áulicos e o infinito amor materno articulam uma narrativa tensa, virtualmente trágica, na qual o rei, ludibriado por seus nobres, é levado a ferir mortalmente o próprio filho, excelente em todas as suas ações.
Bogatch, contudo, é salvo por milagre das flores campestres, animadas pelo espírito de renovação da primavera, misturadas ao sangue e ao leite extraído a golpes do seio ressecado da mãe.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Teatro do Sacramento" (Edusp).


O LIVRO DE DEDE KORKUT

Tradução: Marco Syrayama de Pinto
Editora: Globo (tel. 0/ xx/ 11/3767-7908)
Quanto: R$ 39,90 (248 págs.)




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