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+Livros
Cavalaria turca
Aparentado
às novelas medievais,
épico sobre a formação
dos povos
da Ásia central
ganha tradução
em português
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Livro de Dede
Korkut" é uma coletânea de 12 narrativas, cujo gênero, denominado
"destan" em turco, designa histórias em prosa e poesia de cunho épico, compostas para serem declamadas com acompanhamento de "alaúdes de braço
longo".
O livro é parte da herança
oral dos povos da Turquia e da
Ásia central, a qual, segundo
Marco Syrayama de Pinto, autor da verdadeira façanha da
tradução, conta com "mais de
mil épicos (...) coletados entre
os mongóis e os povos turcos".
O "destan" -conquanto
emule passagens da Bíblia, do
Alcorão e das epopeias homéricas- tem equivalência mais
próxima com gêneros ocidentais medievais, como a canção
de gesta, a novela de cavalaria e
os vários tipos de "lendas e narrativas" incorporadas aos chamados "livros de linhagem".
A recolha por escrito do material do livro se deu por meio
de dois manuscritos, um de
Dresden [Alemanha] e outro
do Vaticano, ambos provavelmente de meados do século 16.
A sistematização do livro, entretanto, deve ter se dado um
século antes, enquanto a composição das narrativas, a julgar
pelos dados históricos obtidos
de seus heróis principais, deve
recuar pelo menos ao século 13.
De qualquer modo, as narrativas são compostas em diferentes épocas, e o livro é, como
diz o seu tradutor, "produto da
criação de diversos bardos ao
longo do tempo".
Todas as narrativas contam
eventos passados com príncipes dos oguzes, tribos nômades
e seminômades que, vindas do
Oriente, se estabelecem em regiões montanhosas da Turquia
e do Irã, tornando-se parte do
Exército seljúcida, e depois do
Império Otomano.
Os príncipes mais poderosos
eram Bayindir Cã e seu genro
Salur Kazan, em torno dos
quais se reuniam os protagonistas de cada uma das histórias do livro.
Dede Korkut, por sua vez, era
o "adivinho" e xamã dos oguzes, um sábio longevo que recebia diversas funções nas tribos,
desde a de bardo que memoriza
e declama os grandes feitos de
seus heróis até a de mediador
de situações melindrosas, que
demandassem diplomacia e
engenho entre os chefes dos
clãs.
Os poderes de Dede Korkut,
fundados sobre a palavra e o
canto, eram também de invocação divina e "performance"
mágica, como no conto em que,
acuado por um chefe armado e
furioso, fez com que a sua espada ficasse "suspensa no ar, porquanto (...) era um santo e seus
desejos eram atendidos".
Sincretismo
Isso significa que, como anota Syrayama, a despeito dos esforços do prólogo, escrito em
época posterior, para reduzir as
histórias a um islamismo puro,
encontra-se nelas ineludível
traço sincrético, xamanístico,
evidenciado também na adoração a cavalos, lobos, montanhas
e árvores.
As narrativas produzem
sempre elogio à descendência,
bem como à fidelidade ao nome, ao sangue, aos pais. É igualmente objeto de encômio o valor demonstrado pelo guerreiro
no ardor da luta, sem excluir
dessa dignidade belicosa os
pastores e as mulheres.
Estas, por vezes, demonstram tal habilidade nos combates que o herói, como ocorre na
história de Kan Turali, percebendo que quem havia de fato
derrotado e posto em debandada o inimigo era a sua amada
princesa Seldjan, foi tomado de
tal fúria que teve desejo de matá-la, para que ela não "se gabasse" diante de todos.
A pintura dos temores que
acometem os heróis em relação
à geração de descendentes e à
sucessão da chefia do clã é notável na história do ciclope Depegöz, que ecoa o gigante Polifemo, e sobretudo na de Domrul, na qual a "loucura" da ofensa aos aliados, da desobediência
aos pais e da blasfêmia contra
os deuses é contida suavemente pela mulher, cujo amor incondicional tudo reconcilia.
Nenhuma narrativa, porém,
é superior à de Bogatch Cã, que
abre o "Livro de Dede Korkut".
Tópicos como a desonra dos
pais sem filhos, a confiança na
oração ao Deus único que tudo
provê, a traição dos áulicos e o
infinito amor materno articulam uma narrativa tensa, virtualmente trágica, na qual o rei,
ludibriado por seus nobres, é
levado a ferir mortalmente o
próprio filho, excelente em todas as suas ações.
Bogatch, contudo, é salvo por
milagre das flores campestres,
animadas pelo espírito de renovação da primavera, misturadas ao sangue e ao leite extraído
a golpes do seio ressecado da
mãe.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Universidade Estadual de Campinas e autor de
"Teatro do Sacramento" (Edusp).
O LIVRO DE DEDE KORKUT
Tradução: Marco Syrayama de Pinto
Editora: Globo (tel. 0/ xx/ 11/3767-7908)
Quanto: R$ 39,90 (248 págs.)
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