São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

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Ponto de fuga

Terríveis mouros

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Há dez anos que o Festival Amazonas de Ópera existe. Quase um milagre. Ópera é tão bom, mas tão difícil de fazer. Custa caro e, para dar certo, pede empenho, convicção, conhecimento. Apresentar espetáculos dignos, ano após ano, lá no meio da floresta, numa cidade de práticas e hábitos culturais limitados, foi uma aposta tresloucada que venceu.
Graças à cabeça do maestro Luiz Fernando Malheiro, à frente disso tudo.
Ele conseguiu o absurdo: montar, em 2005, a "Tetralogia" de Wagner no Teatro Amazonas, tentativa digna de Fitzcarraldo. Com realismo, todas as quimeras mudaram-se em sólidos projetos consolidados. Os programas evitam a banalidade e demonstram coerência inteligente. Assim, neste ano, foram postos em comparação o "Otelo", de Verdi (Milão, 1887), e seu homólogo, muito menos conhecido, composto por Rossini em 1816.
Duas galáxias diversas: Rossini centra muito em Desdêmona, carregada de premonições, habitada pelo amor e pela morte. Seu Otelo nada tem de monolítico. É consciente de ser negro num mundo de brancos, de ser selvagem numa cidade de tanta sofisticação civilizada como Veneza.
No de Verdi, o princípio do mal é nuclear. Iago toma o primeiro plano. Ele crê num deus cruel que fabricou um mundo hipócrita, do qual faz parte e no qual cumpre seu próprio destino abjeto.
Duas visões vertiginosas da tragédia concebida por Shakespeare.

Credo
O zunzum, em Manaus, era de que a primeira récita do "Otelo" de Verdi fora um desastre. O tenor, meu Deus, o tenor! Quem viu a segunda apresentação, porém, saiu do teatro em estado de graça. O tenor, justamente, tão achincalhado na estréia, Dennis O'Neill, nascido no País de Gales, interpretou de modo tão nuançado, tão musical e tão sincero que o mundo desaparecia, fora a dor que ele vivia em fingimento, no palco. Sem a insolência de certas vozes estentorosas, sedutoras pelo volume e pelo metal estridente, seu timbre claro é contrário à truculência e apto à poesia.
Eiko Senda concebeu Desdêmona em filigranas. Lício Bruno foi Iago: um portento, para empregar palavra de antigamente. Cantor admirável, mesmo num papel agudo para sua voz, ator impressionante, campou um personagem feito de sombras expressionistas.
Essa soberba distribuição inseriu-se na regência de Luiz Fernando Malheiro, cuja paixão mordente não excluía, de modo nenhum, a sonoridade translúcida. A Amazonas Filarmônica mostrou-se digna da obra e o Coral do Amazonas, calcanhar-de-aquiles nas precedentes edições do festival, foi, agora, ponto forte.

Salce
O "Otelo" de Rossini, popular em seu tempo, é raridade hoje. Gabriella Pace impôs uma Desdêmona poderosa. Com exceção de Elmiro, seu pai, encarnado por Pepes do Valle, os outros personagens masculinos, Rodrigo, Iago e o próprio Otelo, são tenores. A partitura exige deles malabarismos vocais arrepiantes, em duelos formidáveis de canto. Todos venceram. O protagonista, Paulo Mandarino, muito seguro, marcou seu mouro com gravidade profunda e dolorosa.
Uma alegria constatar, cada vez mais, a excelência de cantores brasileiros, que o festival do Amazonas tem ajudado a se afirmarem. Marcelo de Jesus, o maestro, compreendeu que a energia rossiniana não significa, forçosamente, frivolidade.

Gelosia
O estupendo concerto dado pelo soprano chileno Cristina Gallardo-Domas parecia confirmar que tudo andou pelo melhor no melhor dos mundos líricos e amazônicos. Infelizmente, não foi bem assim. O festival de Manaus habituou seus espectadores a montagens dentre as mais belas já realizadas no Brasil: "Manon", de Massenet, "Tetralogia", de Wagner, "Condor", de Carlos Gomes (esta superior em poesia e leveza à versão trazida para São Paulo).
Ora, as concepções cênicas dos dois "Otello" foram rasteiras e kitsch. No de Rossini, atingiu-se a indignidade. O diretor decerto se achou superior à obra e decidiu conceber a tragédia como paródia. Rossini só seria bom em óperas-bufas, parece ter sido o lema. Felizmente, graças aos ótimos intérpretes, a música triunfou dessa bobagem esnobe e pretensiosa.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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