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Ponto de fuga
Terríveis mouros
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Há dez anos que o Festival Amazonas de Ópera existe. Quase um
milagre. Ópera é tão bom, mas
tão difícil de fazer. Custa caro e,
para dar certo, pede empenho, convicção,
conhecimento. Apresentar espetáculos
dignos, ano após ano, lá no meio da floresta, numa cidade de práticas e hábitos culturais limitados, foi uma aposta tresloucada
que venceu.
Graças à cabeça do maestro Luiz Fernando Malheiro, à frente disso tudo.
Ele conseguiu o absurdo: montar, em
2005, a "Tetralogia" de Wagner no Teatro
Amazonas, tentativa digna de Fitzcarraldo.
Com realismo, todas as quimeras mudaram-se em sólidos projetos consolidados.
Os programas evitam a banalidade e demonstram coerência inteligente. Assim,
neste ano, foram postos em comparação o
"Otelo", de Verdi (Milão, 1887), e seu homólogo, muito menos conhecido, composto por Rossini em 1816.
Duas galáxias diversas: Rossini centra
muito em Desdêmona, carregada de premonições, habitada pelo amor e pela morte. Seu Otelo nada tem de monolítico. É
consciente de ser negro num mundo de
brancos, de ser selvagem numa cidade de
tanta sofisticação civilizada como Veneza.
No de Verdi, o princípio do mal é nuclear.
Iago toma o primeiro plano. Ele crê num
deus cruel que fabricou um mundo hipócrita, do qual faz parte e no qual cumpre
seu próprio destino abjeto.
Duas visões vertiginosas da tragédia concebida por Shakespeare.
Credo
O zunzum, em Manaus, era de que a primeira récita do "Otelo" de Verdi fora um
desastre. O tenor, meu Deus, o tenor!
Quem viu a segunda apresentação, porém,
saiu do teatro em estado de graça. O tenor,
justamente, tão achincalhado na estréia,
Dennis O'Neill, nascido no País de Gales,
interpretou de modo tão nuançado, tão
musical e tão sincero que o mundo desaparecia, fora a dor que ele vivia em fingimento, no palco. Sem a insolência de certas vozes estentorosas, sedutoras pelo volume e
pelo metal estridente, seu timbre claro é
contrário à truculência e apto à poesia.
Eiko Senda concebeu Desdêmona em filigranas. Lício Bruno foi Iago: um portento,
para empregar palavra de antigamente.
Cantor admirável, mesmo num papel agudo para sua voz, ator impressionante, campou um personagem feito de sombras expressionistas.
Essa soberba distribuição inseriu-se na
regência de Luiz Fernando Malheiro, cuja
paixão mordente não excluía, de modo nenhum, a sonoridade translúcida. A Amazonas Filarmônica mostrou-se digna da obra
e o Coral do Amazonas, calcanhar-de-aquiles nas precedentes edições do festival, foi,
agora, ponto forte.
Salce
O "Otelo" de Rossini, popular em seu
tempo, é raridade hoje. Gabriella Pace impôs uma Desdêmona poderosa. Com exceção de Elmiro, seu pai, encarnado por Pepes do Valle, os outros personagens masculinos, Rodrigo, Iago e o próprio Otelo, são
tenores. A partitura exige deles malabarismos vocais arrepiantes, em duelos formidáveis de canto. Todos venceram. O protagonista, Paulo Mandarino, muito seguro,
marcou seu mouro com gravidade profunda e dolorosa.
Uma alegria constatar, cada vez mais, a
excelência de cantores brasileiros, que o
festival do Amazonas tem ajudado a se afirmarem. Marcelo de Jesus, o maestro, compreendeu que a energia rossiniana não significa, forçosamente, frivolidade.
Gelosia
O estupendo concerto dado pelo soprano
chileno Cristina Gallardo-Domas parecia
confirmar que tudo andou pelo melhor no
melhor dos mundos líricos e amazônicos.
Infelizmente, não foi bem assim. O festival
de Manaus habituou seus espectadores a
montagens dentre as mais belas já realizadas no Brasil: "Manon", de Massenet, "Tetralogia", de Wagner, "Condor", de Carlos
Gomes (esta superior em poesia e leveza à
versão trazida para São Paulo).
Ora, as concepções cênicas dos dois "Otello" foram rasteiras e kitsch. No de Rossini,
atingiu-se a indignidade. O diretor decerto
se achou superior à obra e decidiu conceber
a tragédia como paródia. Rossini só seria
bom em óperas-bufas, parece ter sido o lema. Felizmente, graças aos ótimos intérpretes, a música triunfou dessa bobagem
esnobe e pretensiosa.
Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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