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UM COMPLÔ ARCAICO
Renomada historiadora da disciplina, Elisabeth Roudinesco desqualifica a obra de Meyer, que considera mentirosa,
mas também ataca a alienação dos psicanalistas atuais
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Elisabeth Roudinesco acusa os
autores de "O Livro Negro da
Psicanálise" de mentirem e
deformarem a história dessa
disciplina. A guerra contra Freud começou nos Estados Unidos há alguns anos; agora, a luta que opõe os
discípulos de Freud aos psiquiatras e
psicoterapeutas de diversas tendências chegou à França, onde logo após
o lançamento do "Livro Negro", a
historiadora da psicanálise lançou
"Por Que Tanto Ódio? Anatomia do
Livro Negro da Psicanálise".
Freud é apresentado como um mentiroso, um falsificador; também não é verdade que
ele era apegado a dinheiro,
não é verdade que mentiu;
era autoritário, mas não há nada de secreto em sua vida
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Mas, segundo ela, sua resposta aos
que criticam Freud e a cura pela palavra é seu livro "Por Que a Psicanálise?" (Jorge Zahar, 2000), publicado
no fim dos anos 90, quando os ataques ao pai da psicanálise começavam a crescer nos EUA.
Nessa entrevista exclusiva, dada
em seu apartamento em Paris, a autora de uma biografia de Lacan, da
"História da Psicanálise na França" e
do "Dicionário da Psicanálise" (ambos pela Jorge Zahar), em co-autoria
com Michel Plon, analisa o "desejo
de colonização" dos psicanalistas
franceses e americanos e fala das novas formas de "fascismo ordinário",
já denunciadas por Gilles Deleuze e
Foucault, que ameaçam a liberdade
no Ocidente.
(LDP)
Folha - Como a sra. analisa "O Livro
Negro da Psicanálise"?
Elisabeth Roudinesco - Ele não contém nenhuma revelação. É um livro
sem interesse e que só teve impacto
porque foi capa do "Nouvel Observateur" [revista semanal de mais influência e vendagem na França].
Folha - O que mais choca nele?
Roudinesco - Ele não me choca porque é um debate antigo. Mas não se
trata mais de querelas historiográficas, teóricas e intelectuais. Um "livro
negro" supõe um massacre de massa, um gulag da psicanálise, muitos
mortos. Tentaram inventar mortos
que não existem, sobretudo drogados mortos por causa da psicanálise,
além de milhares de crianças terríveis por causa de Françoise Dolto
[1908-88, psicanalista especializada
em infância].
Os fatos são inexatos. Freud é
apresentado como um mentiroso,
um falsificador. O caso de um autor
sério como Patrick Mahony é exemplar. Para explicar as pulsões incestuosas de Freud, ele publicara um
texto sobre a análise de Anna Freud
por seu pai, num livro sério, nos
EUA. No contexto do "livro negro",
a pulsão incestuosa se transforma
em incesto de fato para o grande público. Também não é verdade que
Freud era apegado a dinheiro. Não é
verdade que ele era um escroque,
não é verdade que mentiu. Ele era
autoritário, teve problemas com
seus discípulos. Mas não há nada de
secreto em sua vida.
Além disso, esse livro desenvolve
uma teoria do complô, do conspiracionismo, isto é, que os psicanalistas
do mundo inteiro são um movimento de bandidos, de gângsteres, que
ocupam lugares indevidos nas instituições. Fica difícil discutir com autores de mentiras.
Folha - "Por Que Tanto Ódio" é uma
resposta ao "Livro Negro"?
Roudinesco - Não, trata-se apenas
de um artigo que fiz na imprensa seguido de uma grande nota informativa. Não tive a intenção de fazer
uma análise precisa dos textos do
"Livro Negro". O livro que escrevi e
que é uma resposta antecipada ao livro negro é "Por Que a Psicanálise?".
Esse debate entre os que combatem
e os que defendem a psicanálise já
aconteceu nos EUA.
Folha - As críticas à psicanálise dizem respeito, entre outras coisas, ao
seu caráter não-científico. A psicanálise é uma ciência?
Roudinesco - Nunca foi. O problema é que ela desperta, como Marx,
como todo movimento de emancipação que perturba a ordem do
mundo, um ódio particular. Hoje
não podem atacar a revolução sexual, não podem mais acusar a psicanálise de ser uma pornografia.
Mas já tentaram tudo, acusaram-na de ser uma ciência judaica, de ser
uma falsa ciência. Cada época, segundo sua ideologia, a acusa de alguma coisa. A tese segundo a qual
ela é uma falsa ciência remonta a antes da Primeira Guerra, mas perdeu
seu impacto hoje por causa da evolução da psiquiatria, que reintegrou
o campo da medicina orgânica, passando ao domínio da psicofarmacologia e das neurociências.
Agora, volta o grande debate entre
os defensores do psiquismo e os organicistas, que data do fim do século
19, e que volta com o progresso da
genética e das neurociências, com a
idéia de que se pode tratar da doença
mental sem tratamento psíquico. A
psicanálise continua um obstáculo
que precisa ser destruído.
Folha - Pela farmacologia?
Roudinesco - O melhor ainda é o
tratamento pela palavra, a psicanálise, mais a farmacologia. O que não é
desejável é a ideologia farmacológica, a idéia de tratar apenas pela farmacologia. Por outro lado, há o
comportamentalismo, onde não há
clínica, que trata os sujeitos como
ratos de laboratório. É o condicionamento, uma ideologia extremamente perigosa para a sociedade, independentemente da
psicanálise.
Tem-se um exemplo disso na idéia de
que, para tratar dos
desvios sexuais, devem-se realizar castrações químicas ou
cirúrgicas. É o que se
chama intervenção
sobre o corpo e o condicionamento. Nessa
visão, tratam-se os
sintomas por meios
que excluem a evolução humana. Ou se
continua a crer que a
alma humana é aperfeiçoável, mas que
não há o risco zero, e
isso é uma ideologia
progressista. Ou então é a barbárie.
Essas pessoas pensam que se pode prevenir a delinqüência
com exames nas
crianças de três anos.
Parece ridículo, mas
acreditam nisso. De um lado, os desvios sexuais, de outro as crianças. E
nós no meio. Significa que todo
mundo deve passar por controle para tentar ser normal. Mas o que é ser
normal?
Folha - É o controle total do Estado
sobre o cidadão?
Roudinesco - Sim, mas é normal
que se controle o cidadão, que se
lancem políticas contra o câncer.
Mas até onde se vai? Será normal que
um biopoder controle nossas emoções, nosso psiquismo, nosso afeto,
que determine uma norma, que não
se sabe bem o que é? A experiência
com os criminosos e desviantes vai
nos levar a refletir sobre o que querem fazer conosco. A partir de um
momento, podem considerar que
todas as pessoas que fumam são criminosas, criminosas contra elas
próprias e contra o outro.
É um fascismo ordinário, de que
Gilles Deleuze e [Michel] Foucault
descreveram o mecanismo. Vivemos num mundo unificado, no qual
a alternativa é o integrismo religioso.
Estamos entre a pornografia e o misticismo, entre a pornografia e o puritanismo. Como penso que a democracia é perfectível, o combate de
amanhã é recusar esses sistemas.
Folha - Esse é um dos combates da
psicanálise?
Roudinesco - Sim, mas ela não o enfrenta, o que é uma pena.
Folha - Por que os psicanalistas não
o enfrentam? Por que não se envolvem mais na política?
Roudinesco - Porque se tornaram
reacionários, cometeram erros monumentais, não se ocuparam do social, não trataram de política, tornaram-se conservadores. Mas não
conservadores como Freud, um
conservador esclarecido. Transformaram-se em psicoterapeutas, antes
desprezados por eles. Não se vai nem
pedir que os psicanalistas sejam subversivos. Confundiram a neutralidade na cura com a neutralidade política. Eles não pensam mais os problemas da sociedade; e, quando o fazem, é com interpretações psicanalíticas absolutamente incoerentes.
Enganaram-se de debate com os
defensores da ciência, pois, em vez
de debater os problemas de sociedade, debateram com os comportamentalistas. Essa é a tendência americana. A metade dos psicanalistas
americanos é de comportamentalistas. Foram eles que fizeram o DSM
(Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais).
Os psicanalistas se transformaram
em terapeutas comportamentalistas.
E pensam que isso é ciência. Não estão mais imbuídos da força emancipadora do início, reforçada por Lacan, e da qual ainda temos vestígios
na França, onde nos mobilizamos
contra o comportamentalismo mais
do que em qualquer parte. E por isso
publicam esse livro negro.
Folha - Os autores falam de "deificação de Freud", de "hagiografia", a
propósito da biografia de Ernest Jones ["A Vida e a Obra de
Sigmund Freud", Imago], "de evangelho
freudiano", de "peregrinação" a Viena e a
Londres para conhecer
as casas de Freud. Os
psicanalistas seriam os
discípulos de um novo
messias?
Roudinesco - Essas
críticas têm 50 anos de
atraso. Nenhuma pessoa séria vive a psicanálise sob o ângulo de
Jones. Eles acusam os
psicanalistas de viverem na legenda dourada, talvez seja verdadeiro para alguns. Faz
parte desse lado reacionário de que eu falava. Atacam Jones,
mas esquecem trabalhos sérios sobre
Freud, inclusive os
meus, os de [Yosef Hayim] Yérushalmi, os
de Peter Gay.
Folha - A psicanálise é vista como
uma prática subversiva, de contestação da sociedade. Como praticá-la
num país como a China ou sob qualquer totalitalitarismo?
Roudinesco - Não se pode praticá-la sob totalitarismos. Quando os antigos sistemas ditatoriais, totalitários, estão em via de desconstrução,
começam os contatos.
É a mesma situação nos países do
mundo árabe-islâmico.
Folha - Pode-se analisar alguém
sem liberdade, sem democracia?
Roudinesco - Quando a palavra não
é totalmente livre, não pode haver
análise. Na China, há pouca coisa,
menos que no mundo árabe-islâmico. Diria que os psicanalistas franceses têm um desejo de China que existe desde o maoísmo. É o sonho da
China, sonho da Ásia, mais forte que
eles. Só existe um psicanalista, em
Chengdu, Huo Datong, objeto de todas as cobiças. Há alguns avanços da
psiquiatria em Pequim. O que se
passa hoje, entre os psicanalistas
franceses, ocidentais e americanos, é
que eles querem colonizar. É um desejo de colonização. Por isso, defendo sempre a independência.
Huo Datong fez algo muito bom,
bastante independente. Mas esse é o
caminho mais difícil. É preciso ao
mesmo tempo ter relações com o estrangeiro e não ser colonizado, mas é
muito difícil. Mas há hoje entre os
psicanalistas franceses uma "chinomania". Os lacanianos têm o mesmo
desejo de Oriente que Lacan. É uma
identificação com Lacan, que foi ao
Japão e que sonhava com a China.
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