São Paulo, domingo, 07 de maio de 2006

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O PENSADOR DAS LUZES OBSCURAS

Aproximando Grécia Antiga e vida burguesa, Freud propôs uma nova abordagem da psique humana e da cultura ocidental, em obras como "Totem e Tabu" e "O Futuro de uma Ilusão"

ELISABETH ROUDINESCO

Milhares de livros foram dedicados ao inventor da psicanálise e várias dezenas de biografias permitem hoje conhecer nos menores detalhes -além de toda lenda cor-de-rosa ou negra- a vida, a moral e a história intelectual desse vienense paradoxal, pensador das luzes obscuras, cuja obra (23 volumes e uma intensa correspondência) foi traduzida para 60 línguas.
Fascinado pela morte e pelo sexo, mas desejando explicar de forma racional os aspectos mais cruéis e mais obscuros da alma humana, Freud teve a idéia genial, em 15 de outubro de 1897, aos 41 anos, de trazer ao palco das dinastias trágicas da Grécia Antiga o pequeno tema privado da família burguesa do fim do século, de que se ocupavam na mesma época todos os psicólogos especializados no estudo das neuroses: "Cada espectador", diz [em carta a Fliess], "foi um dia no germe, na imaginação, um Édipo que se aterroriza diante da realização de seu sonho transposto para a realidade".
À figura de Édipo ele acrescentou a de Hamlet, herói culpado, confrontado com o espectro de um pai que exige sua vingança.
Que o complexo de Édipo -matar o pai e casar-se com a mãe- tenha se tornado mais tarde, por culpa dos próprios psicanalistas, uma psicologia familiarista denunciada por diversos filósofos em nada reduz a força de um gesto inaugural. Este consistiu em colocar o sujeito moderno diante de seu destino: o de um inconsciente que, sem privá-lo de sua liberdade de pensar, o determina sem que ele o perceba.
Revolução do sentido íntimo, a psicanálise teve por vocação primeira modificar o homem, mostrando que o "eu é outro" e que "o ego não é o senhor de sua casa".
Freud foi tanto um pensador do irracional e da desrazão quanto um teórico da democracia, ligado à idéia de que só a civilização, isto é, a restrição de uma lei imposta às pulsões assassinas, permitia que a sociedade escapasse de uma barbárie desejada pela própria humanidade.
Em 1905, desde seus primeiros textos sobre a sexualidade infantil, Freud foi odiado pelos defensores de todas as religiões, que o acusaram de destruir os valores da moral, depois pelos adeptos dos nacionalismos, que viam em sua teoria a expressão de um enfraquecimento da soberania patriarcal, e, enfim, pelos representantes de todas as ditaduras, que o consideravam suspeito de semear a desordem nas consciências. Ciência alemã para os franceses, ciência latina para os nórdicos, ciência degenerada para os puritanos anglófonos, a psicanálise foi taxada de ciência judia pelos nazistas e, enfim, de ciência burguesa pelos stalinistas.

"Sigi de ouro"
Na segunda metade do século 20, foi considerada uma falsa ciência pelos defensores das ciências concretas, que a criticavam por não ser mensurável, depois novamente como ciência judia e comunista pela extrema-direita e finalmente como ciência satânica pelos islâmicos radicais. Sem dúvida, esse ódio permanente continua sendo o sintoma mais poderoso da verdade subversiva da invenção freudiana?
Adorado por sua jovem mãe, que o chamava de seu "Sigi de ouro" e previa para ele um destino brilhante, Freud foi criado em uma família numerosa e recomposta, em cujo seio ocupava um lugar privilegiado, reinando sobre irmãs devotadas e sentindo-se tanto filho de seus meio-irmãos quanto o protetor de seu último irmão, depois de sua mãe, quando seu pai veio a morrer. Não é de surpreender, como mostram alguns de seus relatos clínicos, que ele tenha compreendido melhor a rebelião dos filhos contra os pais do que a das filhas contra sua família.
Em 1860, enquanto Emmanuel e Philipp migravam para Manchester, Jakob, depois de várias dificuldades financeiras, instalou-se em Viena. Foi nessa cidade, que ele não apreciava, mas onde viveria até 1938, que Freud fez seus estudos de medicina, apaixonando-se pela biologia darwiniana, que serviria de modelo para todos os seus trabalhos.
A idéia de que a psicanálise é apenas um puro produto do espírito judeu vienense decorre de um clichê. Porém sabemos bem que os contragolpes da progressiva desintegração do Império Austro-Húngaro fizeram dessa cidade, como salienta o historiador Carl Schorske [em "Viena Fin-de-Siècle", Cia. das Letras], um dos "mais férteis caldos de cultura anti-histórica de nosso século".
Rejeitando as ilusões de seus pais, que acreditavam nos benefícios do liberalismo, os filhos da burguesia voltaram-se para uma nova busca de identidade. Judeus na maior parte e falando várias línguas, eles sonharam com a conquista de uma terra prometida, outros com uma possível regeneração do homem pelo retorno aos grandes mitos do passado: projeto de um Estado judeu para Theodor Herzl, desconstrução do eu para Hugo von Hoffmannsthal, negação ou conversão entre os intelectuais habitados pelo ódio de ser judeu, culto de uma feminilidade transgressiva ou ainda "secessão" ou inversão dos valores da arte clássica para Robert Musil, Arthur Schnitzler, Gustav Klimt ou Mahler.

Organizador da anarquia
Embora estranho a essa modernidade, à qual preferia a arte da Renascença ou da Antigüidade greco-latina, Freud foi marcado muito mais do que ele mesmo supunha por esse movimento, haja vista sua concepção de um inconsciente atemporal ou de um psiquismo estruturado em tópicos (o ego, o id, o superego): "Cabe a ele o mérito de ter dado uma organização à anarquia dos sonhos", disse Karl Kraus. "Mas tudo se passa como na Áustria."
Em 1885, depois de ter sido nomeado "privatdozent" em neurologia, Freud obtém uma bolsa de estudos para Paris. Ansiava então encontrar Charcot, cujas experiências sobre a histeria o fascinavam. Já célebre no mundo inteiro, o grande mestre da neurologia francesa hipnotizava mulheres do povo internadas no La Salpêtrière. Diante de uma platéia de intelectuais, fazia desaparecer e depois reaparecer seus sintomas, paralisias ou convulsões, demonstrando não serem simulações.
Voltando a Viena, Freud casou-se finalmente com Martha Bernays após cinco anos de noivado, durante os quais sentiu uma intensa frustração sexual, a ponto de às vezes mergulhar na neurastenia. Dessa união nasceram seis filhos: Mathilde, Martin, Oliver, Ernst, Sofie e Anna.
Em seu apartamento da 19 Berggasse, apoiado pelo amigo Josef Breuer, começou a tratar jovens e mulheres da burguesia afetadas por distúrbios histéricos. No desejo de curá-las, utilizou os métodos admitidos na época: hidroterapia, massagens, eletroterapia.
Constatando em pouco tempo sua total ineficácia, ele praticou primeiro a hipnose e a sugestão e depois a catarse. Daí nasceu o termo "psicanálise", empregado pela primeira vez em 1896 para designar uma cura por meio da palavra com exploração do inconsciente, sem intervenção corporal nem sugestiva. A publicação por Breuer e Freud dos "Estudos sobre a Histeria" foi um acontecimento. Os autores apresentaram oito casos de mulheres, entre eles o de Bertha Pappenheim (Anna O.), afirmando que todas haviam sido curadas da neurose.
Sabe-se hoje que isso não é exato. Mas a grandeza dessa obra residiu na utilização pelos autores de um estilo romanceado, despido de todo jargão técnico, e que dava uma dignidade às mulheres anônimas, descritas como heroínas de uma aventura inovadora da psique humana.
Entre 1887 e 1902, Freud tornou-se amigo de Wilhelm Fliess, um médico de Berlim adepto de teorias extravagantes. Ao longo das páginas de uma correspondência por muito tempo expurgada, descobrimos como ele se interessou pela bissexualidade, como duvidava sem cessar de si próprio, como delirou com a cocaína sem renunciar ao tabagismo e como, depois de ter suspeitado de que seu pai era um perverso sexual que abusava dos filhos, abandonou sua teoria chamada da sedução real pela da fantasia. Ao longo dessa experiência íntima, que concluiu numa violenta ruptura, Freud elaborou uma teoria original dos sonhos, da sexualidade, da negação e do desejo.
A partir de 1900, publicou todas as obras que fizeram dele um clínico incomum e o fundador de uma nova disciplina: "A Interpretação dos Sonhos", "Psicopatologia da Vida Cotidiana", "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade", "Os Chistes e Sua Relação com o Inconsciente", "Totem e Tabu".
Em 1909, convidado a pronunciar cinco conferências na Universidade Clark, em Worcester, na Costa Leste dos EUA, Freud teve um sucesso triunfal ao falar sem anotações, em alemão, depois dialogando em inglês com o público. Ele conservou, no entanto, um preconceito desfavorável em relação a esse país pragmático, que acolheu seus ensinamentos com uma ingenuidade desconcertante.
Desejando universalizar sua doutrina e acreditando poder protegê-la de supostos desvios, fundou uma internacional, reunindo ao seu redor diversos discípulos europeus: Sándor Ferenczi (Budapeste), Karl Abraham (Berlim), Ernest Jones (Londres), Carl Gustav Jung (Zurique), Raymond de Saussure (Genebra), Marie Bonaparte (Paris), Lou Andreas-Salomé (Göttingen). Depois de analisar sua filha, Anna, esta se tornou sua mais fiel herdeira.
Longe de evitar as dissidências, essa iniciativa as favoreceu, e, se a psicanálise conseguiu se implantar no conjunto do mundo ocidental, foi ao preço de conflitos e excomunhões que mostraram que a cura pela palavra nunca conseguiu ajudar os psicanalistas a se entenderem entre si e a dissipar suas querelas.
Depois da Primeira Guerra e do desmoronamento do Império Austro-Húngaro, Viena deixou de ser a capital do freudismo, num momento em que os praticantes americanos iam em grande número formar-se no divã do mestre. Foi nessa época que ele decidiu reformular sua primeira teoria do inconsciente, postulando a existência de uma pulsão de morte própria da humanidade ("Além do Princípio de Prazer").

Disputa entre monoteísmos
Essa revisão, que o levou a escrever suas mais belas obras como teórico da cultura ("O Futuro de uma Ilusão", "Mal-Estar na Civilização"), ocorreu exatamente no momento em que a sociedade vienense, já assombrada por sua própria agonia, se via confrontada com a negação radical de sua identidade, não sendo mais, segundo as palavras de Stefan Zweig, que "um clarão crepuscular" no mapa da Europa.
Em 1923, Freud descobriu no lado direito de seu palato um pequeno tumor maligno. Seis meses depois, ele teve amputada uma parte da mandíbula. Durante 16 anos sofreria cerca de 30 operações mutiladoras. Infiel ao judaísmo, hostil a todos os ritos de filiação, manteve-se no entanto fiel a sua condição de judeu. Ele se designava como judeu ateu, universalista e de cultura alemã.
Em 1930, manifestou-se contra a criação de um Estado judeu nos territórios palestinos, salientando com lucidez que a questão dos lugares santos estaria um dia no centro de uma disputa insolúvel entre os três monoteísmos. A partir de 1933, assistiu, desesperado, ao exílio forçado para o mundo anglófono de todos os seus discípulos da velha Europa continental, expulsos pelo nazismo.
Obrigado a deixar Viena depois da Anschluss [anexação da Áustria pela Alemanha], instalou-se com sua família em Londres numa bela casa, cercado de seus livros e de suas coleções de antigüidades. Foi lá que escreveu sua última obra, "Moisés e o Monoteísmo", na qual afirmou que o ódio contra os judeus era alimentado por sua crença na superioridade de povo eleito e pela angústia da castração provocada pela circuncisão enquanto signo de eleição.
Freud morreu em 23 de setembro de 1939, depois de ter pedido a seu médico, Max Schur, que aliviasse seu sofrimento. Ele nunca soube o destino que foi reservado pelos nazistas a suas quatro irmãs, desaparecidas nas trevas da "solução final".


Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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