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O PENSADOR DAS LUZES OBSCURAS
Aproximando Grécia Antiga e vida burguesa, Freud propôs
uma nova abordagem da psique humana e da cultura ocidental, em obras como "Totem e Tabu" e "O Futuro de uma Ilusão"
ELISABETH ROUDINESCO
Milhares de livros foram
dedicados ao inventor
da psicanálise e várias
dezenas de biografias
permitem hoje conhecer nos menores detalhes -além de toda lenda
cor-de-rosa ou negra- a vida, a
moral e a história intelectual desse
vienense paradoxal, pensador das
luzes obscuras, cuja obra (23 volumes e uma intensa correspondência) foi traduzida para 60 línguas.
Fascinado pela morte e pelo sexo,
mas desejando explicar de forma racional os aspectos mais cruéis e mais
obscuros da alma humana, Freud teve a idéia genial, em 15 de outubro
de 1897, aos 41 anos, de trazer ao palco das dinastias trágicas da Grécia
Antiga o pequeno tema privado da
família burguesa do fim do século,
de que se ocupavam na mesma época todos os psicólogos especializados no estudo das neuroses: "Cada
espectador", diz [em carta a Fliess],
"foi um dia no germe, na imaginação, um Édipo que se aterroriza
diante da realização de seu sonho
transposto para a realidade".
À figura de Édipo ele acrescentou a
de Hamlet, herói culpado, confrontado com o espectro de um pai que
exige sua vingança.
Que o complexo de Édipo -matar o pai e casar-se com a mãe- tenha se tornado mais tarde, por culpa
dos próprios psicanalistas, uma psicologia familiarista denunciada por
diversos filósofos em nada reduz a
força de um gesto inaugural. Este
consistiu em colocar o sujeito moderno diante de seu destino: o de um
inconsciente que, sem privá-lo de
sua liberdade de pensar, o determina sem que ele o perceba.
Revolução do sentido íntimo, a
psicanálise teve por vocação primeira modificar o homem, mostrando
que o "eu é outro" e que "o ego não é
o senhor de sua casa".
Freud foi tanto um pensador do irracional e da desrazão quanto um
teórico da democracia, ligado à idéia
de que só a civilização, isto é, a restrição de uma lei imposta às pulsões assassinas, permitia que a sociedade
escapasse de uma barbárie desejada
pela própria humanidade.
Em 1905, desde seus primeiros textos sobre a sexualidade infantil,
Freud foi odiado pelos defensores de
todas as religiões, que o acusaram de
destruir os valores da moral, depois
pelos adeptos dos nacionalismos,
que viam em sua teoria a expressão
de um enfraquecimento da soberania patriarcal, e, enfim, pelos representantes de todas as ditaduras, que
o consideravam suspeito de semear
a desordem nas consciências. Ciência alemã para os franceses, ciência
latina para os nórdicos, ciência degenerada para os puritanos anglófonos, a psicanálise foi taxada de ciência judia pelos nazistas e, enfim, de
ciência burguesa pelos stalinistas.
"Sigi de ouro"
Na segunda metade do século 20,
foi considerada uma falsa ciência pelos defensores das ciências concretas, que a criticavam por não ser
mensurável, depois novamente como ciência judia e comunista pela
extrema-direita e finalmente como
ciência satânica pelos islâmicos radicais. Sem dúvida, esse ódio permanente continua sendo o sintoma
mais poderoso da verdade subversiva da invenção freudiana?
Adorado por sua jovem mãe, que o
chamava de seu "Sigi de ouro" e previa para ele um destino brilhante,
Freud foi criado em uma família numerosa e recomposta, em cujo seio
ocupava um lugar privilegiado, reinando sobre irmãs devotadas e sentindo-se tanto filho de seus meio-irmãos quanto o protetor de seu último irmão, depois de sua mãe, quando seu pai veio a morrer. Não é de
surpreender, como mostram alguns
de seus relatos clínicos, que ele tenha
compreendido melhor a rebelião
dos filhos contra os pais do que a das
filhas contra sua família.
Em 1860, enquanto Emmanuel e
Philipp migravam para Manchester,
Jakob, depois de várias dificuldades
financeiras, instalou-se em Viena.
Foi nessa cidade, que ele não apreciava, mas onde viveria até 1938, que
Freud fez seus estudos de medicina,
apaixonando-se pela biologia darwiniana, que serviria de modelo para
todos os seus trabalhos.
A idéia de que a psicanálise é apenas um puro produto do espírito judeu vienense decorre de um clichê.
Porém sabemos bem que os contragolpes da progressiva desintegração
do Império Austro-Húngaro fizeram dessa cidade, como salienta o
historiador Carl Schorske [em "Viena Fin-de-Siècle", Cia. das Letras],
um dos "mais férteis caldos de cultura anti-histórica de nosso século".
Rejeitando as ilusões de seus pais,
que acreditavam nos benefícios do
liberalismo, os filhos da burguesia
voltaram-se para uma nova busca de
identidade. Judeus na maior parte e
falando várias línguas, eles sonharam com a conquista de uma terra
prometida, outros com uma possível regeneração do homem pelo retorno aos grandes mitos do passado:
projeto de um Estado judeu para
Theodor Herzl, desconstrução do eu
para Hugo von Hoffmannsthal, negação ou conversão entre os intelectuais habitados pelo ódio de ser judeu, culto de uma feminilidade
transgressiva ou ainda "secessão" ou
inversão dos valores da arte clássica
para Robert Musil, Arthur Schnitzler, Gustav Klimt ou Mahler.
Organizador da anarquia
Embora estranho a essa modernidade, à qual preferia a arte da Renascença ou da Antigüidade greco-latina, Freud foi marcado muito mais
do que ele mesmo supunha por esse
movimento, haja vista sua concepção de um inconsciente atemporal
ou de um psiquismo estruturado em
tópicos (o ego, o id, o superego):
"Cabe a ele o mérito de ter dado uma
organização à anarquia dos sonhos", disse Karl Kraus. "Mas tudo
se passa como na Áustria."
Em 1885, depois de ter sido nomeado "privatdozent" em neurologia, Freud obtém uma bolsa de estudos para Paris. Ansiava então encontrar Charcot, cujas experiências
sobre a histeria o fascinavam. Já célebre no mundo inteiro, o grande
mestre da neurologia francesa hipnotizava mulheres do povo internadas no La Salpêtrière. Diante de uma
platéia de intelectuais, fazia desaparecer e depois reaparecer seus sintomas, paralisias ou convulsões, demonstrando não serem simulações.
Voltando a Viena, Freud casou-se
finalmente com Martha Bernays após cinco anos de noivado, durante
os quais sentiu uma intensa frustração sexual, a ponto de às vezes mergulhar na neurastenia. Dessa união
nasceram seis filhos: Mathilde, Martin, Oliver, Ernst, Sofie e Anna.
Em seu apartamento da 19 Berggasse, apoiado pelo amigo Josef
Breuer, começou a tratar jovens e
mulheres da burguesia afetadas por
distúrbios histéricos. No desejo de
curá-las, utilizou os métodos admitidos na época: hidroterapia, massagens, eletroterapia.
Constatando em pouco tempo sua
total ineficácia, ele praticou primeiro a hipnose e a sugestão e depois a
catarse. Daí nasceu o termo "psicanálise", empregado pela primeira
vez em 1896 para designar uma cura
por meio da palavra com exploração
do inconsciente, sem intervenção
corporal nem sugestiva. A publicação por Breuer e Freud dos "Estudos
sobre a Histeria" foi um acontecimento. Os autores apresentaram oito casos de mulheres, entre eles o de
Bertha Pappenheim (Anna O.), afirmando que todas haviam sido curadas da neurose.
Sabe-se hoje que isso não é exato.
Mas a grandeza dessa obra residiu
na utilização pelos autores de um estilo romanceado, despido de todo
jargão técnico, e que dava uma dignidade às mulheres anônimas, descritas como heroínas de uma aventura inovadora da psique humana.
Entre 1887 e 1902, Freud tornou-se
amigo de Wilhelm Fliess, um médico de Berlim adepto de teorias extravagantes. Ao longo das páginas de
uma correspondência por muito
tempo expurgada, descobrimos como ele se interessou pela bissexualidade, como duvidava sem cessar de
si próprio, como delirou com a cocaína sem renunciar ao tabagismo e
como, depois de ter suspeitado de
que seu pai era um perverso sexual
que abusava dos filhos, abandonou
sua teoria chamada da sedução real
pela da fantasia. Ao longo dessa experiência íntima, que concluiu numa violenta ruptura, Freud elaborou
uma teoria original dos sonhos, da
sexualidade, da negação e do desejo.
A partir de 1900, publicou todas as
obras que fizeram dele um clínico
incomum e o fundador de uma nova
disciplina: "A Interpretação dos Sonhos", "Psicopatologia da Vida Cotidiana", "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade", "Os Chistes e
Sua Relação com o Inconsciente",
"Totem e Tabu".
Em 1909, convidado a pronunciar
cinco conferências na Universidade
Clark, em Worcester, na Costa Leste
dos EUA, Freud teve um sucesso
triunfal ao falar sem anotações, em
alemão, depois dialogando em inglês com o público. Ele conservou,
no entanto, um preconceito desfavorável em relação a esse país pragmático, que acolheu seus ensinamentos com uma ingenuidade desconcertante.
Desejando universalizar sua doutrina e acreditando poder protegê-la
de supostos desvios, fundou uma internacional, reunindo ao seu redor
diversos discípulos europeus: Sándor Ferenczi (Budapeste), Karl
Abraham (Berlim), Ernest Jones
(Londres), Carl Gustav Jung (Zurique), Raymond de Saussure (Genebra), Marie Bonaparte (Paris), Lou
Andreas-Salomé (Göttingen). Depois de analisar sua filha, Anna, esta
se tornou sua mais fiel herdeira.
Longe de evitar as dissidências, essa iniciativa as favoreceu, e, se a psicanálise conseguiu se implantar no
conjunto do mundo ocidental, foi ao
preço de conflitos e excomunhões
que mostraram que a cura pela palavra nunca conseguiu ajudar os psicanalistas a se entenderem entre si e
a dissipar suas querelas.
Depois da Primeira Guerra e do
desmoronamento do Império Austro-Húngaro, Viena deixou de ser a
capital do freudismo, num momento em que os praticantes americanos
iam em grande número formar-se
no divã do mestre. Foi nessa época
que ele decidiu reformular sua primeira teoria do inconsciente, postulando a existência de uma pulsão de
morte própria da humanidade
("Além do Princípio de Prazer").
Disputa entre monoteísmos
Essa revisão, que o levou a escrever
suas mais belas obras como teórico
da cultura ("O Futuro de uma Ilusão", "Mal-Estar na Civilização"),
ocorreu exatamente no momento
em que a sociedade vienense, já assombrada por sua própria agonia, se
via confrontada com a negação radical de sua identidade, não sendo
mais, segundo as palavras de Stefan
Zweig, que "um clarão crepuscular"
no mapa da Europa.
Em 1923, Freud descobriu no lado
direito de seu palato um pequeno tumor maligno. Seis meses depois, ele
teve amputada uma parte da mandíbula. Durante 16 anos sofreria cerca
de 30 operações mutiladoras. Infiel
ao judaísmo, hostil a todos os ritos
de filiação, manteve-se no entanto
fiel a sua condição de judeu. Ele se
designava como judeu ateu, universalista e de cultura alemã.
Em 1930, manifestou-se contra a
criação de um Estado judeu nos territórios palestinos, salientando com
lucidez que a questão dos lugares
santos estaria um dia no centro de
uma disputa insolúvel entre os três
monoteísmos. A partir de 1933, assistiu, desesperado, ao exílio forçado
para o mundo anglófono de todos os
seus discípulos da velha Europa continental, expulsos pelo nazismo.
Obrigado a deixar Viena depois da
Anschluss [anexação da Áustria pela
Alemanha], instalou-se com sua família em Londres numa bela casa,
cercado de seus livros e de suas coleções de antigüidades. Foi lá que escreveu sua última obra, "Moisés e o
Monoteísmo", na qual afirmou que
o ódio contra os judeus era alimentado por sua crença na superioridade de povo eleito e pela angústia da
castração provocada pela circuncisão enquanto signo de eleição.
Freud morreu em 23 de setembro
de 1939, depois de ter pedido a seu
médico, Max Schur, que aliviasse
seu sofrimento. Ele nunca soube o
destino que foi reservado pelos nazistas a suas quatro irmãs, desaparecidas nas trevas da "solução final".
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
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