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Fervor de Buenos Aires
MAIS IMPORTANTE SOCIÓLOGA ARGENTINA, BEATRIZ SARLO FALA À FOLHA SOBRE SEU NOVO LIVRO,
"A CIDADE VISTA", E AFIRMA QUE A CAPITAL PASSA POR UMA TENSÃO SOCIAL INÉDITA
Cristiano Mascaro
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ADRIANA MARCOLINI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE BUENOS AIRES
O último livro da socióloga argentina
Beatriz Sarlo, "La
Ciudad Vista" [A
Cidade Vista, Siglo
Veintiuno Editores, 232 págs.,
39 pesos argentinos, R$ 20;
sem previsão de lançamento
no Brasil], é um ensaio perspicaz sobre as mudanças ocorridas em Buenos Aires nos últimos anos e revela como a cidade foi se transformando com as
sucessivas crises que assolaram o país vizinho.
Ao longo de quatro anos, Sarlo se dedicou ao ofício de escritora e jornalista, percorrendo
sua cidade natal para a coluna
semanal que mantinha no
"Clarín".
Carregava consigo apenas
uma máquina fotográfica digital e mantinha seu olhar mais
do que atento.
Suas andanças lhe revelaram
uma nova Buenos Aires, uma
cidade que mantém seus bairros de classe média arborizados, praças bem conservadas e
atrações turísticas, mas onde
também existem favelas, se
respira pobreza, e a negligência
com o ambiente salta aos olhos.
As descobertas lhe renderam
este livro.
Leia, a seguir, a entrevista
que a ex-professora de literatura na Universidade de Buenos
Aires e uma das mais prestigiadas estudiosas da obra de Jorge
Luis Borges ["Jorge Luis Borges - Um Escritor Na Periferia", ed. Iluminuras] concedeu
à Folha, na capital argentina.
FOLHA - Na introdução de "A Cidade Vista", a senhora conta que, para
escrevê-lo, percorreu Buenos Aires
durante quatro anos, tentando ver e
escutar, sem usar o gravador. Por
que escolheu esse método?
BEATRIZ SARLO - "A Cidade Vista"
surgiu da necessidade de um
trabalho jornalístico para a revista "Viva", do "Clarín".
Era um trabalho que tinha a
ver com os temas que me preocupam, que são a literatura e a
forma como ela se misturou
com a cultura urbana, tal como
se manifesta no mundo contemporâneo.
Minhas ideias prévias estão
muito presentes no livro.
A primeira é a de que mudou
a forma de circulação das mercadorias em Buenos Aires. Um
dos elementos responsáveis
por isso foi o shopping center.
Aqui essa mudança começou
a partir do início da década de
1990. Já no Brasil teve início
mais cedo, conheci shopping
centers em São Paulo anteriores àqueles anos.
Os shoppings haviam se tornado uma forma generalizada
de circulação das mercadorias,
que na outra ponta tinha os
vendedores ambulantes.
Uma forma de circulação típica do Terceiro Mundo, que se
encontra em toda a América
Latina, mas que também existe
na África -ou seja, típica das
culturas dos pobres.
A segunda ideia é a de que
Buenos Aires se converteu em
uma cidade permeada por uma
enorme separação.
Tradicionalmente, sempre
fora dividida entre o sul e o norte, em que o norte era mais
próspero e o sul, mais pobre
-embora sem um abismo entre esses dois pontos cardeais.
Antes, a divisão de Buenos
Aires passava quase pelo centro
da cidade, que era a rua Rivadavia, cortando a cidade de leste a
oeste.
Hoje, porém, o norte se deslocou mais para o norte.
Agora, essa divisão passa pela
avenida Santa Fé, deixando
dois terços da cidade na zona da
pobreza, com exceção dos encraves turísticos, como San
Telmo e La Boca.
O impacto que produz São Paulo para um portenho é realmente o de uma megalópole do futuro
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FOLHA - A máquina fotográfica
não intimidava as pessoas?
SARLO - Com exceção de alguns
casos, eu não pedia permissão
para fotografar, porque o fazia
de muito longe, ou fotografava
objetos, ou casas que não podem ser reconhecidas.
Parecia-me que andar pelas
ruas que rodeiam as favelas
com um caderno de anotações
e uma caneta na mão era muito
mais exótico do que ter uma câmera digital -só um intelectual carrega consigo um caderno de notas com uma caneta.
A câmera me distanciava menos que um caderno.
FOLHA - Ao ler suas descrições sobre as transformações de Buenos Aires, tem-se a impressão de se ler sobre a cidade de São Paulo. A proliferação de shopping centers, a perda
dos espaços públicos, a disseminação do medo são um fato tanto aqui
como lá. A senhora acredita que essa possa ser uma tendência das metrópoles sul-americanas?
SARLO - Pode ser, mas, de todo
modo, acredito que as duas cidades sejam incomparáveis.
Buenos Aires não é uma megalópole, São Paulo sim.
Buenos Aires está circundada por 9 milhões de habitantes,
mas a cidade em si tem 3 milhões, e os limites dentro dos
quais essa população vive são
bastante precisos.
O impacto que produz São
Paulo para um portenho é realmente o de uma megalópole do
futuro, tanto no seu caráter
anômalo como em sua enorme
vitalidade, na beleza do moderno e do hipermoderno que tem.
Que pode ser um pesadelo no
futuro, com uma enorme vitalidade. Qualquer pessoa de Buenos Aires que vá pela primeira
vez a São Paulo tem a sensação
de que pulsa o coração de um
futuro. Foi isso o que senti
quando estive lá pela primeira
vez, 20 anos atrás.
Buenos Aires não projeta essa imagem. Nada disso. Ela está
rodeada do que, possivelmente,
será o futuro de todas as cidades dos países não europeus
-cinturões de pobreza, favelas,
marcas do desemprego, da podridão, do desastre ecológico.
Mas a cidade em si, que tem
limites muito precisos, não tem
essas marcas e tampouco essa
pulsação do futuro.
Excluindo os bairros do sul,
que são os que estudo -Villa
Riachuelo, Villa Charruó-, é
uma cidade bastante segura para parâmetros latino-americanos. Já a Grande Buenos Aires
pode ser comparada às demais
cidades latino-americanas.
Mas São Paulo, sem dúvida,
tem problemas infinitamente
maiores do que Buenos Aires,
começando pela segurança.
FOLHA - Como a senhora vê Buenos Aires dentro de 30 anos?
SARLO - Não posso dizer, porque não sei como vejo a Argentina dentro de 30 anos. Se me
perguntassem isso com relação
ao Brasil, creio que poderia responder de maneira mais fácil.
FOLHA - E como a senhora vê o Brasil dentro de 30 anos?
SARLO - Vendo as coisas de fora, a ideia que se tem é a de que
o país será uma potência, ao lado de Índia e China. Que catástrofe precisaria acontecer para
que o Brasil não seja uma potência? Não vejo catástrofe nenhuma no horizonte brasileiro.
Com relação à Argentina, não
sei se continuará a ser um país
em decadência ou se conseguirá superá-la e encontrar uma
certa estratégia de estabilidade
como país pequeno, produzindo alguns bens importantes e
dividindo a riqueza produzida.
FOLHA - Em seu livro, a senhora
também cita as favelas, além das
crianças e famílias que vivem nas
ruas da cidade. Diz que essa realidade está ligada à pobreza urbana da
América Latina, com a qual a capital
argentina não se relacionava antes,
pois nem a imaginação e nem o senso comum a concebiam como cidade americana. Como os argentinos
encaram hoje essa nova realidade?
SARLO - Até os anos 1960, o emprego, a defesa dos direitos sociais dos trabalhadores e a educação básica eram três questões que a Argentina parecia ter
solucionado -à exceção de alguns bolsões de miséria que em
Províncias do norte.
Isso não acontecia no resto
da América Latina e era um diferencial do país.
Acredito que somente nos últimos 20 anos os argentinos começaram a se dar conta de que
há pelo menos dois países mais
importantes que o nosso no
continente: o México e o Brasil.
Quando o ex-presidente José
Sarney viajou para a Argentina,
em 1985, e assinou os protocolos do Mercosul [Ata de Iguaçu]
com o então presidente Raúl
Alfonsín, os argentinos ainda
pensavam que se estava firmando um pacto entre duas nações equivalentes.
Isso mudou, e mudou muito
antes que o notássemos. Ou seja, as mudanças materiais
aconteceram em uma temporalidade acelerada.
Já a assimilação cultural, a
assimilação dessas mudanças
no imaginário, a conversão dessas mudanças no senso comum, aconteceram em uma
temporalidade mais lenta.
A Argentina precisou passar
por várias crises, e creio que na
última, de 2001, realmente se
deu conta de que não era o país
próspero, ou relativamente
próspero, que acreditava ser.
Foi quando viu, literalmente,
exércitos de centenas de pobres nas ruas recolhendo lixo.
Houve um momento, em
2001, em que alguns setores da
classe média pensaram que
iriam decair, e então enxergaram à sua volta, porque pensaram que seu futuro poderia estar na pobreza.
Mas, quando passaram a entender que não cairiam, o olhar
se acostumou.
Por outro lado, seja acostumando ou não, essas pessoas
estão aí. Essa é a nossa realidade, mesmo em países que podem ser grandes potências, como é o caso de México e Brasil.
Pode haver pobres nas ruas
em outros lugares do mundo,
mas crianças não -só na África,
na América Latina e em algumas regiões da Ásia.
FOLHA - A famosa frase "Buenos
Aires, a Paris da América do Sul" é
verdadeira ou foi criada para conferir à cidade uma identidade?
SARLO - Em princípio, Buenos
Aires não se parece com Paris.
É uma mistura de cidades, teve
muitos modelos, entre eles Paris, mas também Barcelona e
Nova York. Hoje é globalizada,
pode estar olhando para qualquer cidade globalizada, para
São Paulo ou para qualquer outra onde estejam sendo construídos os arranha-céus mais
altos do mundo.
Buenos Aires sempre foi uma
mescla; a avenida de Mayo, por
exemplo, é marcada por uma
arquitetura eclética.
É preciso se reportar aos
poetas modernistas, a Ruben
Darío, aos poetas que vinham
da América Central e chegavam
a Buenos Aires no final do século 19. Eram de cidades [e países] muito pequenas -Darío
era nicaraguense, por exemplo.
Quando queriam fazer uma
comparação, o faziam com um
nome, não com uma cidade
realmente existente -e diziam
Paris. No caso do Brasil, o turismo para cá era de elite e assíduo, e acabou moldando essa
imagem. Mas quem conhece
Paris sabe que não se parece
com a capital argentina.
O turismo do Brasil para cá era de elite
e acabou moldando a imagem da cidade como a Paris da América do Sul
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FOLHA - O surgimento das favelas
em Buenos Aires era previsível?
SARLO - Assim como os bairros
onde os pobres viviam em condições precárias, as favelas nasceram nos anos 1940, quando
se produziram grandes migrações internas pela necessidade
de mão de obra das indústrias
que se concentravam nos arredores da cidade.
Elas cresceram, mas na época eram mais parecidas com
um bairro de trabalhadores.
Nos anos 1960, havia muitas
favelas dentro e fora da cidade
de Buenos Aires; a ditadura as
arrancou do perímetro da cidade, mas hoje estão de volta.
Atualmente, há favelas imensas. Antes, as pessoas que viviam nas favelas tinham trabalho. Havia muitos operários da
construção civil, imigrantes do
Paraguai -em suma, pessoas
que tinham um salário.
Podia haver, eventualmente,
um ou outro desempregado,
mas o problema do desemprego não existia ainda.
Hoje, vivem nas favelas basicamente os desempregados, famílias desestruturadas, com
uma forte presença de criminalidade e drogas.
FOLHA - Uma boa parte de seu livro
é dedicada aos atuais imigrantes em
Buenos Aires, aos latino-americanos
e aos asiáticos. Qual seria a maior diferença entre as ondas imigratórias
de hoje e as do passado?
SARLO - Em comparação com
os fluxos imigratórios do passado, os fluxos atuais são muito
pequenos.
Nas primeiras duas décadas
do século 20, em Buenos Aires
e também em Rosario havia
mais estrangeiros que nativos,
e, naturalmente, um percentual muito mais elevado de filhos de estrangeiros do que de
argentinos.
Eram ondas imigratórias
realmente gigantescas, só comparáveis, em toda a América, às
dos EUA. Eram gigantescas
porque a Argentina era um país
muito despovoado, em que não
houve escravidão, como no caso do Brasi. Ou seja, a mão de
obra era escassa.
Havia agentes de imigração
na Europa que mentiam para
os imigrantes em potencial, dizendo-lhes que aqui receberiam terra e máquinas agrícolas, o que não era verdade.
Mas eram salários relativamente altos para a época, e a comida era muito barata.
Portanto, não é possível
comparar com o que acontece
atualmente, embora haja uma
corrente imigratória muito forte dos países limítrofes, especialmente da Bolívia e do Paraguai. Já houve também do Uruguai, mas não hoje.
De toda maneira, a marca
dessa imigração pobre é forte, e
agora se reforçou com a chegada dos peruanos.
Os chineses e coreanos são
completamente diferentes, são
comunidades muito pequenas
-os coreanos não devem ser
mais do que 13 mil- que vêm
com pequenos capitais.
Concentram-se em Buenos
Aires, em bairros que, eu diria,
quase têm o aspecto de gueto,
que não se mesclam.
FOLHA - Como a classe média urbana reagiu à chegada desses novos
imigrantes? Há discriminação?
SARLO - Os paraguaios e os bolivianos são discriminados, são
todos inseridos em um continente de discriminação latino-americana.
São discriminados nas danceterias; ou, se a polícia está à
procura de alguém, inicialmente vai atrás de uma pessoa com
aspecto de imigrante latino-americano, que também pode
ser um argentino do norte.
Mas não é uma discriminação forte, já que Buenos Aires
recebe imigrantes da América
Latina e cidadãos do norte do
país desde os anos 1940.
FOLHA - Por que muitas pessoas na
Argentina afirmam que, durante a
ditadura, tinham menos medo do
que hoje?
SARLO - Porque a ordem do regime militar era a de um regime
totalitário. Havia, sem dúvida,
dois fatores que se diferenciavam da paisagem social de hoje.
De um lado, não havia a penetração das drogas e de gangues juvenis.
De outro, não se podia andar
pelas ruas tranquilamente à
meia-noite. Pois, depois que os
militares e o terrorismo de Estado já haviam se ocupado dos
guerrilheiros e de todos os que
eram de esquerda, passaram a
impor a disciplina para o resto
da sociedade.
Não havia toque de recolher,
mas não se andava pelas ruas
com liberdade, corria-se o risco
de ser parado, interrogado, molestado. Naquela época, a polícia tinha direito de pedir documento, hoje não. A cidade estava sob um regime inicialmente
implantado pelo terror e depois
pela ordem totalitária.
FOLHA - A mídia está difundindo o
medo da insegurança entre a população argentina?
SARLO - Sim, a mídia está trabalhando mal e criando ondas de
psicose na população. Em princípio, o trabalho da imprensa
argentina é ruim, porque não
faz o exercício da comparação,
principalmente a TV, que é
uma máquina irreflexiva.
Na prática, os argentinos vão
passar férias de verão "tranquilas" no Rio de Janeiro, apesar
de ser uma cidade mais perigosa que Buenos Aires.
FOLHA - No Brasil, considera-se o
argentino mais politizado que o brasileiro. Apesar disso, as pesquisas
apontam que há um desinteresse
generalizado em relação às eleições
legislativas, que ocorrerão aqui no
fim do mês. Como a sra. explica isso?
SARLO - O desinteresse pela política é uma marca das sociedades ocidentais hoje em dia.
As pessoas também se desinteressam pela política nos países europeus. Lembremos que
quando Jacques Chirac venceu
as eleições presidenciais [de
2002] na França, houve uma
abstenção no primeiro turno
que quase levou [Jean-Marie]
Le Pen a ser eleito.
Esse é um problema do Ocidente: há um interesse pelo
mais próximo, pelo mais cultural, e a política parece lenta,
institucional.
Na Europa, menos de 30%
dos eleitores aptos costumam
votar nas eleições para o Parlamento europeu. Portanto, essa
não é uma peste só dos latino-americanos.
Mas quando e onde não ocorre esse desinteresse? Quando
há políticos que unam algo fortemente carismático com programas claros, não simplesmente com slogans.
Em minha opinião, esse foi o
caso de Lula e Obama.
FOLHA - Para concluir, como pensa
que o escritor Jorge Luis Borges reagiria se pudesse voltar a Buenos Aires hoje?
SARLO - Borges morreu na Suíça [em 1986] e foi enterrado em
Genebra por sua própria escolha. Em minha opinião, havia
alguma coisa na Argentina da
qual queria fugir, de um Carnaval nacionalista em que ele seria um fetiche da literatura argentina -inclusive por parte de
pessoas que não o leram.
Borges tinha uma percepção
do mundo, pode-se dizer, elitista, mas tinha algo que valorizo
muito: era um espírito não nacionalista e liberal.
Escreveu um conto extraordinário, "O Simulacro" [em "O
Fazedor", Cia. das Letras], que
é imaginário, mas se baseia no
que aconteceu no velório de
Eva Perón [mulher do presidente argentino Juan Domingo
Perón]. Foi um velório de Estado, como o de um rei, e o país
parou durante 15, 20 dias.
Nesse conto, um homem anda pelas Províncias carregando
uma caixa de sapatos com uma
boneca loira dentro.
Ele a abre nas cidadezinhas e
finge uma espécie de velório de
Evita, exibindo a boneca em cima de uma mesa.
Borges põe em evidência o lado sinistro do que acontece
com a morte na Argentina, onde parece que vivemos discutindo o destino dos restos mortais das pessoas que foram importantes na história do país.
FOLHA ONLINE
Leia na internet a íntegra
da entrevista com a
escritora e ensaísta
argentina Beatriz Sarlo;
veja também as
fotografias que ela tirou
de Buenos Aires em
www.folha.com.br/0915410
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