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Depois de Paris
A PARTIR DE LIVRO QUE RECONTA A HISTÓRIA DA CAPITAL FRANCESA,
DANUZA LEÃO DESCREVE SEU RELACIONAMENTO AFETIVO COM A CIDADE
DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA
A primeira frase do livro "Paris, Biografia de uma Cidade"
[ed. L&PM, tradução de José Carlos
Volcato e Henrique Guerra,
592 págs., R$ 94), de Colin Jones, é "Nunca vemos Paris pela
primeira vez; sempre a vemos
de novo...".
Isso foi escrito em 1878 por
Edmondo de Amicis [escritor
italiano], e a cada dia que passa
é mais verdade. Quem não conhece Paris por meio dos livros
que leu, das fotos e filmes que
viu, sobretudo dos sonhos que
sonhou?
Pergunte a alguém que nunca viajou qual a cidade que ela
mais gostaria de conhecer, e a
resposta virá imediata: Paris.
Desde pequena, vivo no Rio
de Janeiro, mas não tenho a
menor pretensão de dizer que
conheço minha cidade. Os parisienses também não conhecem a deles, talvez apenas os
guias de turismo a conheçam
um pouco.
E a cidade tem tanta história
que, para conhecê-la profundamente -ou mesmo superficialmente-, é preciso estudá-la.
Existem moradores que vivem na margem direita do Sena e se orgulham de jamais terem atravessado o rio - e vice-versa. Eu mesma, que tive a
sorte de morar na cidade duas
vezes -uma por dois anos, a
outra por cinco-, conheço
pouco Paris.
Como das duas vezes fui para
morar, nunca percorri Paris
como turista, mas me sinto
personagem da música que
cantava Josephine Baker -"j'ai
deux amours, mon pays et Paris" [tenho dois amores, meu
país e Paris]-, e nunca houve
uma viagem que eu fizesse que
não terminasse na "minha" cidade -o que já aconteceu dezenas de vezes. Seria inimaginável que fosse de outra maneira.
Às vezes passo pouco tempo,
e como meu bairro é Saint-Germain-des-Prés, já me peguei dizendo, várias vezes:
"dessa vez nem fui à Rive Droite" [margem direita].
E me sinto tão integrada à
Rive Gauche [margem esquerda], que, se um dia me proibissem de ir à Rive Droite, eu sofreria um pouco, mas não me
faria tão mal assim.
No fundo, muitos dos maiores parisienses são um orgulhoso inglês, um tunisiano ou
uma brasileira como eu, e, como todos os verdadeiros parisienses, somos ignorantes de
nossa cidade e limitamos nossos comentários a nosso bairro
de coração ou aos cais do Sena.
Nossa ligação com a cidade é
mais baseada no amor do que
no conhecimento.
Meu bairro, minha cidade
Um dos primeiros capítulos
do livro de Colin Jones se chama "Dos Primórdios ao Ano
Mil". Eu, que modestamente
conheci Paris em 1952, não vou
chegar nem perto do que diz o
autor.
Mas vou falar de coisas que
aconteceram no meu bairro
que ele talvez desconheça e dar
a terrível notícia: Saint-Germain-des-Prés está acabando.
Lembro quando, na esquina
da rua de Rennes com o bulevar
St. Germain, havia um café que
foi demolido e ali surgiu uma
drugstore. Foi uma grita geral,
mas aos poucos os parisienses
foram se acostumando.
A drugstore tinha uma ou
duas salas de cinema pequenas,
livraria, delicatessen, loja de
pequenos presentes de última
hora, jornaleiro, fechava às
duas horas da manhã e era passagem obrigatória antes de se ir
para casa.
O tempo passou, Armani
comprou o ponto, e outra grita:
ninguém precisava de Armani
no "quartier" [bairro]. E Saint-Germain, que era um típico pequeno bairro com lojinhas na
rua, foi se transformando.
O hotel onde fico sempre, na
esquina da rua de Seine com o
bulevar Saint-Germain, tinha
bem na frente uma peixaria.
Fechou. Na pracinha de Saint-Germain, em frente à igreja
mais antiga de Paris, que data
do século 6º, foi aberta uma loja
Louis Vuitton -isso merecia
um processo.
A Cartier já está instalada, na
rua Saint-Benoît foi aberto um
desses detestáveis hotéis butique chamado Bel-Ami, tudo
que pode haver de mais moderno no seu pior sentido, e na rua
de Buci, um outro, que, de tão
moderno e horrendo, dá vontade de chorar.
Mas vou dar
a terrível notícia: Saint-Germain-des-Prés está acabando
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Não é Nova York
A farmácia que fica aberta até
tarde no largo do bulevar, rua
de Rennes, rua Bonaparte, da
última vez que vi estava com algumas prateleiras vazias, um
mau sinal; a tradicional Maison
de L'Orient et Chine, coberta
de tapumes, e, para completar,
na esquina da rua des Saint Pères está anunciada num desenho garrafal a próxima abertura de Ralph Lauren.
Essa loja, que combina tão
bem na Madison, em Nova
York, não podia ficar por lá
mesmo e deixar Paris em paz?
Numa cidade que tem, ali
pertinho, a Sorbonne, fundada
no século 13, é revoltante que
coisas como essas aconteçam e
desfigurem a cidade mais linda
do mundo.
Paris, que em 1962 passou
por uma limpeza total e, no lugar de cinza, voltou a ser branca
e bege, não deveria ceder assim
ao império das grandes marcas,
que nem francesas são.
Por volta do ano 2000, houve
um movimento em prol de
Vieux Paris [Velha Paris], para
conservar as velhas construções. O prefeito Bertrand Delanoë quer preservar Paris como
ela é e propôs a construção de
edifícios de mais de 200 metros
de altura nos arredores da cidade, mas uma consulta pública
mostrou que os parisienses não
concordam com a ideia.
Minha tristeza maior é com o
meu bairro; na rua de Seine, no
lugar onde existiam, ao lado da
peixaria, pequenos comércios,
como a "fromagerie", que vendia laticínios e todos os queijos
que se possa imaginar (com direito a uma consultoria, se era
para comer naquela noite, ou
no almoço do dia seguinte), a
"cochonerie", com patês e saucissons [embutidos] de todas as
procedências, o boulanger [padeiro] da esquina, que foi vendido à cadeia Paul, e por aí vai.
É natural que um pequeno
comerciante se sinta tentado a
passar seu ponto por um caminhão de dinheiro, sem nem
pensar que com isso está ajudando na degradação de sua cidade, mas é triste.
Por enquanto, ainda contamos com a Brasserie Lipp, o
Café de Flore, o Deux Magots e
as livrarias La Hune e L'Écume
des Jours. Mas, se qualquer delas tombar, só nos restará cantar a canção que cantava Juliette Grécco: "Il n'y a plus d'après
à Saint-Germain-des-Prés"
[não há mais depois em Saint-Germain-des-Prés], pois aí todos nós teremos morrido um
pouco.
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