São Paulo, domingo, 07 de junho de 2009

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Depois de Paris

A PARTIR DE LIVRO QUE RECONTA A HISTÓRIA DA CAPITAL FRANCESA, DANUZA LEÃO DESCREVE SEU RELACIONAMENTO AFETIVO COM A CIDADE

DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA

A primeira frase do livro "Paris, Biografia de uma Cidade" [ed. L&PM, tradução de José Carlos Volcato e Henrique Guerra, 592 págs., R$ 94), de Colin Jones, é "Nunca vemos Paris pela primeira vez; sempre a vemos de novo...".
Isso foi escrito em 1878 por Edmondo de Amicis [escritor italiano], e a cada dia que passa é mais verdade. Quem não conhece Paris por meio dos livros que leu, das fotos e filmes que viu, sobretudo dos sonhos que sonhou?
Pergunte a alguém que nunca viajou qual a cidade que ela mais gostaria de conhecer, e a resposta virá imediata: Paris.
Desde pequena, vivo no Rio de Janeiro, mas não tenho a menor pretensão de dizer que conheço minha cidade. Os parisienses também não conhecem a deles, talvez apenas os guias de turismo a conheçam um pouco.
E a cidade tem tanta história que, para conhecê-la profundamente -ou mesmo superficialmente-, é preciso estudá-la.
Existem moradores que vivem na margem direita do Sena e se orgulham de jamais terem atravessado o rio - e vice-versa. Eu mesma, que tive a sorte de morar na cidade duas vezes -uma por dois anos, a outra por cinco-, conheço pouco Paris.
Como das duas vezes fui para morar, nunca percorri Paris como turista, mas me sinto personagem da música que cantava Josephine Baker -"j'ai deux amours, mon pays et Paris" [tenho dois amores, meu país e Paris]-, e nunca houve uma viagem que eu fizesse que não terminasse na "minha" cidade -o que já aconteceu dezenas de vezes. Seria inimaginável que fosse de outra maneira.
Às vezes passo pouco tempo, e como meu bairro é Saint-Germain-des-Prés, já me peguei dizendo, várias vezes: "dessa vez nem fui à Rive Droite" [margem direita].
E me sinto tão integrada à Rive Gauche [margem esquerda], que, se um dia me proibissem de ir à Rive Droite, eu sofreria um pouco, mas não me faria tão mal assim.
No fundo, muitos dos maiores parisienses são um orgulhoso inglês, um tunisiano ou uma brasileira como eu, e, como todos os verdadeiros parisienses, somos ignorantes de nossa cidade e limitamos nossos comentários a nosso bairro de coração ou aos cais do Sena.
Nossa ligação com a cidade é mais baseada no amor do que no conhecimento.

Meu bairro, minha cidade
Um dos primeiros capítulos do livro de Colin Jones se chama "Dos Primórdios ao Ano Mil". Eu, que modestamente conheci Paris em 1952, não vou chegar nem perto do que diz o autor.
Mas vou falar de coisas que aconteceram no meu bairro que ele talvez desconheça e dar a terrível notícia: Saint-Germain-des-Prés está acabando.
Lembro quando, na esquina da rua de Rennes com o bulevar St. Germain, havia um café que foi demolido e ali surgiu uma drugstore. Foi uma grita geral, mas aos poucos os parisienses foram se acostumando.
A drugstore tinha uma ou duas salas de cinema pequenas, livraria, delicatessen, loja de pequenos presentes de última hora, jornaleiro, fechava às duas horas da manhã e era passagem obrigatória antes de se ir para casa.
O tempo passou, Armani comprou o ponto, e outra grita: ninguém precisava de Armani no "quartier" [bairro]. E Saint-Germain, que era um típico pequeno bairro com lojinhas na rua, foi se transformando.
O hotel onde fico sempre, na esquina da rua de Seine com o bulevar Saint-Germain, tinha bem na frente uma peixaria. Fechou. Na pracinha de Saint-Germain, em frente à igreja mais antiga de Paris, que data do século 6º, foi aberta uma loja Louis Vuitton -isso merecia um processo.
A Cartier já está instalada, na rua Saint-Benoît foi aberto um desses detestáveis hotéis butique chamado Bel-Ami, tudo que pode haver de mais moderno no seu pior sentido, e na rua de Buci, um outro, que, de tão moderno e horrendo, dá vontade de chorar.


Mas vou dar a terrível notícia: Saint-Germain-des-Prés está acabando


Não é Nova York
A farmácia que fica aberta até tarde no largo do bulevar, rua de Rennes, rua Bonaparte, da última vez que vi estava com algumas prateleiras vazias, um mau sinal; a tradicional Maison de L'Orient et Chine, coberta de tapumes, e, para completar, na esquina da rua des Saint Pères está anunciada num desenho garrafal a próxima abertura de Ralph Lauren.
Essa loja, que combina tão bem na Madison, em Nova York, não podia ficar por lá mesmo e deixar Paris em paz?
Numa cidade que tem, ali pertinho, a Sorbonne, fundada no século 13, é revoltante que coisas como essas aconteçam e desfigurem a cidade mais linda do mundo.
Paris, que em 1962 passou por uma limpeza total e, no lugar de cinza, voltou a ser branca e bege, não deveria ceder assim ao império das grandes marcas, que nem francesas são.
Por volta do ano 2000, houve um movimento em prol de Vieux Paris [Velha Paris], para conservar as velhas construções. O prefeito Bertrand Delanoë quer preservar Paris como ela é e propôs a construção de edifícios de mais de 200 metros de altura nos arredores da cidade, mas uma consulta pública mostrou que os parisienses não concordam com a ideia.
Minha tristeza maior é com o meu bairro; na rua de Seine, no lugar onde existiam, ao lado da peixaria, pequenos comércios, como a "fromagerie", que vendia laticínios e todos os queijos que se possa imaginar (com direito a uma consultoria, se era para comer naquela noite, ou no almoço do dia seguinte), a "cochonerie", com patês e saucissons [embutidos] de todas as procedências, o boulanger [padeiro] da esquina, que foi vendido à cadeia Paul, e por aí vai.
É natural que um pequeno comerciante se sinta tentado a passar seu ponto por um caminhão de dinheiro, sem nem pensar que com isso está ajudando na degradação de sua cidade, mas é triste.
Por enquanto, ainda contamos com a Brasserie Lipp, o Café de Flore, o Deux Magots e as livrarias La Hune e L'Écume des Jours. Mas, se qualquer delas tombar, só nos restará cantar a canção que cantava Juliette Grécco: "Il n'y a plus d'après à Saint-Germain-des-Prés" [não há mais depois em Saint-Germain-des-Prés], pois aí todos nós teremos morrido um pouco.


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