São Paulo, domingo, 07 de junho de 2009

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Alegre Veneza

O ESCRITOR TURCO ORHAN PAMUK, PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA, FALA DO SENTIMENTO DE TOLERÂNCIA QUE A RAINHA DO ADRIÁTICO INSPIRA

ORHAN PAMUK

Em algum lugar perto da ponte Rialto, ao lado do mercado de peixes, um casal se beijava. Tanto o homem quanto a mulher eram bem-vestidos, altos e belos.
Estavam cercados pelos detalhes arquitetônicos e as janelas góticas que fazem de Veneza a cidade que é e pelo brilho suave e agradável e as cores tangerinas e encarnadas do pôr do sol ao anoitecer.
Estavam em pé numa área vazia ao lado do Grande Canal.
De frente um para o outro, com seus braços envolvendo o corpo um do outro, tinham esquecido o mundo por completo.
Mesmo assim, por um instante, não pude deixar de me perguntar: "Onde será que estão as câmeras?". Então, pensando que seria inapropriado olhar curiosamente para um casal que se beijava, olhei para o outro lado.
Como todo mundo, a felicidade de outras pessoas é capaz de me deixar um pouco infeliz, mas desta vez uma sombra como essa não visitou minha alma. Talvez porque dessa vez eu tenha vindo a Veneza para ser feliz.
Outra razão pela qual eu pude olhar com humor e leveza para o casal que se beijava intimamente foi o fato de eu ter escrito várias páginas sobre esses assuntos em meu romance mais recente, "The Museum of Innocence" (O Museu da Inocência, Knopf, 544 págs., US$ 26,95, R$ 51,82).
Milhões de pessoas que vivem fora da civilização ocidental -e especialmente as que, como eu, vivem em países muçulmanos- nunca veem dois amantes se beijando nos lábios em seu dia a dia (é claro que não é necessariamente preciso ser amante de alguém para que os dois se beijem nos lábios).


Quando sentimos por dentro a profundidade de uma vista veneziana, nos damos conta de que a felicidade é possível neste mundo


Coisa vertiginosa
No mundo não ocidental, beijar nos lábios é um ato realizado ou dentro de casa, no quarto, ou em filmes (com a exceção de Brezhnev e Gromyko).
Como centenas de milhões, ou provavelmente bilhões, de meus concidadãos mundiais, vi um beijo nos lábios pela primeira vez em minha vida no cinema -na minha infância, a televisão ainda não chegara à Turquia.
Eu me recordo de ter me perguntado se os narizes das duas pessoas colidiam quando elas se beijavam.
Hitchcock filmou a mais bela, mais memorável cena de beijo na história do cinema -não em "Interlúdio", como muitos poderiam pensar, mas na cena no trem em "Intriga Internacional".
Ali, beijando-se no compartimento estreito do trem de Chicago, Cary Grant e Eva Marie Saint giram sobre seu próprio eixo enquanto se beijam, descrevendo um círculo quase completo. Talvez para fazer os cinéfilos sentirem que coisa vertiginosa é um beijo.
Mas, quando assisti a esses filmes, a essas cenas de beijos e a esses casais girando diante da câmera -talvez porque eu ainda não tivesse uma namorada que pudesse beijar tanto quanto quisesse-, eu me queixei de sua artificialidade.
Em minha juventude, vi duas pessoas se beijando na rua pela primeira vez num bairro que funcionava como lugar onde os ricos de Istambul passavam suas férias.
Dois astros diante das câmeras, quando o diretor gritava "ação!", primeiro pulverizavam em suas bocas dois jatos do spray mentolado que seguravam nas mãos, e então se beijavam. Esse spray (hoje esquecido há muito tempo), anunciado nos jornais turcos com o slogan "você não precisa mais se sentir constrangido depois de comer alho!", ficou na moda durante algum tempo entre as garotas de nosso bairro que nunca tinham beijado.

Ansiedade metafísica
Nos primeiros dias que passei em Veneza, além do belo casal perto do Rialto, vi inúmeros outros casais se beijando na rua. Outra coisa que me lembrava do cinema quando eu os via era a paisagem linda que sempre formava o pano de fundo de seus beijos.
O que é que nos convida a beijar quando vemos um cenário bonito? Deve ser porque, por um instante, nos damos conta de quão belo é este mundo e de como a vida pode realmente ser bela. Além disso, as estatísticas de turismo e os especialistas matrimoniais nos revelam que mesmo os casais mais infelizes se aproximam quando estão em férias.
Mas nem toda paisagem bela evoca em nós o desejo de beijar ou o sentimento da felicidade. Algumas paisagens evocam medo e até mesmo ansiedade metafísica, do mesmo modo como algumas evocam paz e conforto e outras, como em Istambul, evocam melancolia.
Assim como algumas cidades são lugares para trabalhar, outras são lugares para se divertir, algumas, lugares das quais fugir, outras, lugares para ir de férias, lugares para sentir tristeza e ainda outras, lugares para morrer.
Para os muitos turistas que correm para chegar a Veneza, ela é um lugar para ser feliz.
Quando sentimos por dentro a profundidade de uma vista veneziana, nos damos conta de que a felicidade é possível neste mundo. É talvez esse sentimento de felicidade que nos convide a beijar...
O cortês governante de Vêneto que, falando dos mil anos de relacionamentos entre Veneza e Istambul, me entregou um prêmio bem-vindo, me chamou de lado após a cerimônia e, como um homem que se orgulha de possuir uma mulher muito bela, me mostrou a vista a partir de sua sala.
Saímos para a sacada que dava sobre o Grande Canal. Uma vista magnífica, um Canaletto vivo.
"A vista de lá deve ser ainda melhor", disse o governante, apontando para a sacada do "palazzo" vizinho e sorrindo.
Aquela sacada talvez seja o melhor lugar no mundo para sentir que a felicidade é possível neste mundo, e então beijar.


ORHAN PAMUK é escritor turco, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2006 e autor de "Istambul" (Cia. das Letras), entre outros livros. Copyright: 2009, Orhan Pamuk.

Tradução de Clara Allain.


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