São Paulo, domingo, 07 de junho de 2009 |
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Alegre Veneza
O ESCRITOR TURCO ORHAN PAMUK, PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA, FALA DO SENTIMENTO
DE TOLERÂNCIA QUE A RAINHA DO ADRIÁTICO INSPIRA
Coisa vertiginosa No mundo não ocidental, beijar nos lábios é um ato realizado ou dentro de casa, no quarto, ou em filmes (com a exceção de Brezhnev e Gromyko). Como centenas de milhões, ou provavelmente bilhões, de meus concidadãos mundiais, vi um beijo nos lábios pela primeira vez em minha vida no cinema -na minha infância, a televisão ainda não chegara à Turquia. Eu me recordo de ter me perguntado se os narizes das duas pessoas colidiam quando elas se beijavam. Hitchcock filmou a mais bela, mais memorável cena de beijo na história do cinema -não em "Interlúdio", como muitos poderiam pensar, mas na cena no trem em "Intriga Internacional". Ali, beijando-se no compartimento estreito do trem de Chicago, Cary Grant e Eva Marie Saint giram sobre seu próprio eixo enquanto se beijam, descrevendo um círculo quase completo. Talvez para fazer os cinéfilos sentirem que coisa vertiginosa é um beijo. Mas, quando assisti a esses filmes, a essas cenas de beijos e a esses casais girando diante da câmera -talvez porque eu ainda não tivesse uma namorada que pudesse beijar tanto quanto quisesse-, eu me queixei de sua artificialidade. Em minha juventude, vi duas pessoas se beijando na rua pela primeira vez num bairro que funcionava como lugar onde os ricos de Istambul passavam suas férias. Dois astros diante das câmeras, quando o diretor gritava "ação!", primeiro pulverizavam em suas bocas dois jatos do spray mentolado que seguravam nas mãos, e então se beijavam. Esse spray (hoje esquecido há muito tempo), anunciado nos jornais turcos com o slogan "você não precisa mais se sentir constrangido depois de comer alho!", ficou na moda durante algum tempo entre as garotas de nosso bairro que nunca tinham beijado. Ansiedade metafísica Nos primeiros dias que passei em Veneza, além do belo casal perto do Rialto, vi inúmeros outros casais se beijando na rua. Outra coisa que me lembrava do cinema quando eu os via era a paisagem linda que sempre formava o pano de fundo de seus beijos. O que é que nos convida a beijar quando vemos um cenário bonito? Deve ser porque, por um instante, nos damos conta de quão belo é este mundo e de como a vida pode realmente ser bela. Além disso, as estatísticas de turismo e os especialistas matrimoniais nos revelam que mesmo os casais mais infelizes se aproximam quando estão em férias. Mas nem toda paisagem bela evoca em nós o desejo de beijar ou o sentimento da felicidade. Algumas paisagens evocam medo e até mesmo ansiedade metafísica, do mesmo modo como algumas evocam paz e conforto e outras, como em Istambul, evocam melancolia. Assim como algumas cidades são lugares para trabalhar, outras são lugares para se divertir, algumas, lugares das quais fugir, outras, lugares para ir de férias, lugares para sentir tristeza e ainda outras, lugares para morrer. Para os muitos turistas que correm para chegar a Veneza, ela é um lugar para ser feliz. Quando sentimos por dentro a profundidade de uma vista veneziana, nos damos conta de que a felicidade é possível neste mundo. É talvez esse sentimento de felicidade que nos convide a beijar... O cortês governante de Vêneto que, falando dos mil anos de relacionamentos entre Veneza e Istambul, me entregou um prêmio bem-vindo, me chamou de lado após a cerimônia e, como um homem que se orgulha de possuir uma mulher muito bela, me mostrou a vista a partir de sua sala. Saímos para a sacada que dava sobre o Grande Canal. Uma vista magnífica, um Canaletto vivo. "A vista de lá deve ser ainda melhor", disse o governante, apontando para a sacada do "palazzo" vizinho e sorrindo. Aquela sacada talvez seja o melhor lugar no mundo para sentir que a felicidade é possível neste mundo, e então beijar. ORHAN PAMUK é escritor turco, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2006 e autor de "Istambul" (Cia. das Letras), entre outros livros. Copyright: 2009, Orhan Pamuk. Tradução de Clara Allain. Texto Anterior: Depois de Paris Próximo Texto: Cristiano Mascaro tem exposição em São Paulo Índice |
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