São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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A igreja reage

LUÍS EBLAK
da Redação

A história da igreja durante o regime militar brasileiro (1964-85) talvez ainda não tenha sido escrita, mas quando isso ocorrer o assunto mais polêmico será com certeza as relações entre bispos e militares.
Para o historiador brasilianista norte-americano Kenneth Serbin, foi exatamente com a igreja que a luta pelos direitos humanos no Brasil teve início. E não foi nada fácil.
Serbin está para lançar nos EUA o livro "Justiça Social ou Subversão? - Os Diálogos Secretos dos Bispos e Generais Brasileiros".
A Editora Vozes deve publicar no mês que vem "Sombras da Repressão - O Outono de Maurina Borges", da jornalista Matilde Leone. O livro fala de uma freira que, em 1969, foi presa em Ribeirão Preto acusada de subversão. Após a prisão, a igreja excomungou dois delegados, algo inédito no período.
Recentemente, o cardeal d. Paulo Evaristo Arns disse à Folha que começou a lutar pelos direitos humanos no Brasil justamente após conhecer o caso de Ribeirão Preto.
No último mês, chegou às livrarias "Carlos Marighella - O Inimigo Número Um da Ditadura Militar", de Emiliano José (Ed. Sol e Chuva). A obra ressuscita o caso da morte do guerrilheiro, da qual teriam participado frades dominicanos. Outro livro que trata do assunto -o clássico sobre a esquerda nos anos 60, "Combate nas Trevas", do historiador Jacob Gorender- acaba de ser relançado.


O historiador americano Kenneth Serbin defende que, mais do que a morte do jornalista Wladimir Herzog, foi o assassinato de um estudante há 25 anos que fez a igreja iniciar a luta pelos direitos humanos


O historiador Kenneth Serbin defende a tese de que a morte do estudante da USP Alexandre Vannucchi Leme, há 25 anos, despertou a igreja para a luta pública pelos direitos humanos no Brasil.
Antes disso, a igreja já lutava por justiça social, mas foi com a morte do estudante e guerrilheiro da ALN (Ação Libertadora Nacional) que os religiosos se colocaram publicamente contra a tortura.
Prova disso teria sido a missa de sétimo dia da morte de Vannucchi, feita como um protesto à tortura. Serbin também defende que, mais que a morte do jornalista Wladimir Herzog, em 75, foi a de Alexandre que despertou a esquerda.
Professor assistente do departamento de história da Universidade San Diego (EUA), Serbin prepara o lançamento em seu país do livro "Justiça Social ou Subversão? - Os Diálogos Secretos dos Bispos e Generais Brasileiros". A obra trata das relações entre igreja e Estado durante o governo do presidente Medici (1969-74), e a morte de Alexandre Vannucchi ocupará um capítulo da obra.
Por telefone, Serbin falou à Folha. Leia a seguir a entrevista. (LUÍS EBLAK)

Folha - O senhor defende a idéia de que a missa de sétimo dia da morte do Alexandre celebrada pelo então arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, teria sido um marco no enfrentamento entre a Igreja Católica e o Estado.
Kenneth Serbin -
Sim. Há vários pontos para se levar em conta a esse respeito. Todo mundo fala do caso da morte do jornalista Wladimir Herzog como sendo o grande despertar da oposição. Mas, dois anos e meio antes disso, o cardeal d. Paulo havia rezado uma missa de protesto à violência, durante a qual ele criticara o regime militar, o fato de haver desaparecidos, presos políticos. Quero dizer, nós temos que rever toda a história dos anos 70 no que diz respeito à oposição e ao regime militar. Todos apontam para 75, mas antes disso já houvera uma reação.
Em segundo lugar, a igreja é o grande líder dos movimentos pelos direitos humanos no Brasil. Eu acredito que a instituição mais responsável pela introdução da idéia dos direitos humanos no Brasil é a Igreja Católica. E é justamente em 73 que a Igreja está comemorando os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU. É durante esta campanha que o Alexandre morre. É preciso lembrar também que poucas semanas depois do fato, d. Paulo foi nomeado cardeal pelo papa Paulo 6º. Então nós temos uma conjuntura de vários coisas: tortura, d. Paulo chegando a cardeal, os 25 anos da declaração... No meio disso, o Alexandre morre.
A igreja já havia começado a defender os direitos humanos, mas ela defendia só no papel, pois ela fazia só documentos. Por exemplo, em julho de 72, d. Paulo e outros bispos paulistas tiveram uma reunião em Brodósqui. Nesse documento, eles fizeram duras críticas à tortura. O maior responsável por esse documento foi d. Paulo. Esse documento foi um marco na mudança de discurso dos bispos. Isto quase um ano antes da morte de Alexandre.
Mas era só um documento. Quem lia documentos? A população não lia, pois a censura bloqueava.
E então a defesa dos direitos humanos passa do papel para a ação com a morte do Alexandre.
Estou cada vez mais convicto de que o movimento pelos direitos humanos no Brasil pós-guerra nasce com essa missa. Antes, houve outros momentos de lutas por direitos, como o da abolição da escravidão, mas o sentido da luta pelos direitos humanos era outro, não como é concebido hoje.
Folha - Antes da missa, em novembro de 69, os frades dominicanos foram presos pelo envolvimento com a ALN. Antes disso ainda, em outubro de 69, houve a prisão e tortura da madre Maurina Borges da Silveira, em Ribeirão Preto, o que originou a excomunhão de dois delegados acusados de tortura. O senhor não acha que desde 69 a igreja já tinha uma postura crítica?
Serbin -
Eu não sei até que ponto o caso da madre Maurina teve repercussão no Brasil. E depois, em 70, ela sai do país... Foi um caso relevante para a igreja naquele momento, sem dúvida, mas eu não vejo esse caso como sendo tão importante...
Agora, sobre o caso dos dominicanos, acho que há muita história ainda para ser contada. Temos o livro do Frei Betto ("Batismo de Sangue"), temos o do Jacob Gorender ("Combate nas Trevas"). Esses livros se contradizem (leia na pág. 5-6). Então, falta ainda um livro sobre os dominicanos.
A igreja, por exemplo, nunca se colocou ao lado da luta armada. Nunca aceitaria isso. E eu digo igreja me referindo à hierarquia da instituição. Por exemplo, no Brasil, não tem padres guerrilheiros, tem um ou outro, como o padre Alípio (leia na pág. 5-7), em meados dos anos 60. Mas no Brasil não é como em outros países, como foi na Colômbia, com Camilo Torres, morto como guerrilheiro no final dos anos 60. No Chile, houve padres lutando pelo socialismo. Mas no Brasil isso não ocorreu.
Folha - O sr. pesquisa também, em seu livro, sobre a Comissão Bipartite Igreja-Militares, ou seja, encontros entre bispos e militares do alto escalão.
Serbin -
Estas reuniões eram sistemáticas. De novembro de 70 até agosto de 74, estes bispos se reuniam a cada dois ou três meses no Rio de Janeiro com o general Muricy (Antônio Carlos da Silva Muricy), que chefiava o que se chamava de grupo da situação. Além dele, tinha gente do Cieps (Centro de Informações do Exército), do SNI e outros militares. Do outro lado, havia o chamado grupo religioso, do qual faziam parte alguns nomes: como organizador, Cândido Mendes, havia d. Eugênio, d. Aloísio e d. Ivo.
Nessas reuniões, eles discutiam três assuntos. Primeiro, no início da bipartite, como estabelecer uma colaboração entre a igreja e o Estado para o desenvolvimento socioeconômico do Brasil. Este é um fato muito importante para a historiografia, pois, em todos os estudos sobre aquele período, dá a impressão de que a igreja não colaborava e muito menos dialogava com os militares. Assim, a bipartite traz à tona esse assunto. Isso muda nossa visão da igreja. Isso é quase inacreditável, pois como a igreja que naquele momento está criando a teologia da libertação, está começando as comunidades de base e iniciando protestos pelos direitos humanos, como é que a igreja vai dialogar com militar?
Em segundo lugar, discutiam casos específicos sobre atritos entre igreja e Estado. Num momento que foi o das comemorações dos 150 anos da Independência do Brasil, a Igreja queria celebrar uma missa no monumento do Ipiranga e os militares também. Os generais não permitiram, e a igreja acabou celebrando a missa na Catedral da Sé.
Eles evitaram conflitos maiores entre Estado e igreja. E, ao evitar conflitos maiores, eles impediram que a situação piorasse no Brasil, não deixaram que houvesse mais repressão e até mais mortes.
O terceiro aspecto da bipartite, e talvez o mais diferente, diz respeito às discussões sobre os casos de direitos humanos. O caso mais importante foi o de Alexandre Vannucchi Leme. O caso dele foi discutido três vezes na bipartite. O primeiro ato de protesto foi a missa. O segundo foi o fato de os advogados da família tentarem obter uma exumação do corpo do Alexandre para comprovar as marcas de tortura e para responsabilizar os culpados pela morte dele. Mas evidentemente os militares não iriam permitir nenhuma exumação do corpo do Alexandre naquela época. Impossível. Então o caso chegou até o 2º Exército em São Paulo, e o processo foi engavetado. Não houve saída pela via legal. O que restou? A reunião da bipartite. Três vezes, em 73, os bispos levaram queixas e provas de que o Alexandre tinha sido assassinado, torturado até a morte.
Folha - As discussões foram muito conflituosas?
Serbin -
Eu tive acesso às atas dessas reuniões. Eles discutiam as condições da morte do Alexandre. A versão oficial tinha sido a que ele tinha sido atropelado. Mas todos sabiam que isso era mentira. Os militares também diziam que Alexandre tinha participado de um assassinato, da organização de um assalto... Os militares diziam que eles não tinham endereço nem nome do Alexandre. Ou seja, os militares se fingiam de bobos.
E os bispos perguntavam: como pode ser isso? Porque, na realidade, eles tinham a carteira de identidade do Alexandre, tinham muitas informações que poderiam ter levado à identificação do Alexandre. O corpo deveria ter sido entregue à família. Mas o corpo foi enterrado em Perus, não na vala comum. O Alexandre estava enterrado como indigente. Então os bispos questionavam: por que vocês enterraram o Alexandre como indigente, sendo que tinham como identificar o corpo e entregá-lo à família?
De qualquer forma, os bispos conseguiram, nas reuniões da bipartite, comprovar que a versão do atropelamento era uma farsa.
Embora eles não tenham conseguido exumar o corpo, conseguiram uma vitória política, dar um recado fortíssimo aos militares. Ou seja, eles disseram: tudo bem, vocês podem publicar mentiras sobre atropelamento nos jornais, podem vir aqui e mentir, mas nós temos provas e nós sabemos que vocês estão fazendo essa repressão, estão encobrindo essa repressão, os mortos e desaparecidos. Foi uma vitória. Depois disso, os militares não podiam mais negar que havia repressão, que havia tortura.



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