São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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A freira na prisão


Conheça a história de madre Maurina, que foi torturada e exilada, sob acusação de pertencer a uma organização guerrilheira


do enviado especial a Catanduva

A madre franciscana Maurina Borges da Silveira, hoje com 71 anos, foi presa em outubro de 1969, acusada de haver participado de um grupo guerrilheiro de Ribeirão Preto -a FALN (Forças Armadas de Libertação Nacional).
As suspeitas se basearam no fato de ela, diretora do orfanato Lar Santana, em Ribeirão Preto, ter permitido que um membro da FALN -Mario Lorenzato- fizesse reuniões de estudantes em sua instituição religiosa. Além disso, uma das guerrilheiras, Aurea Moretti, usava um hábito de freira quando foi presa. A polícia desconfiou que a madre também fosse do grupo.
Dezenas de militantes foram presos com Maurina e Aurea. A Oban (Operação Bandeirantes, braço repressor dos militares) foi para Ribeirão Preto exclusivamente para investigar o caso. O episódio acabou resultando na excomunhão de dois delegados (Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano), que se recusaram a falar à Folha sobre o assunto.
"Foi o arcebispo d. Felício da Cunha quem excomungou os dois, por causa das torturas contra presos políticos e as maldades feitas contra madre Maurina. Foi com o caso de Ribeirão que comecei a minha luta pela justiça social", afirmou d. Paulo Evaristo Arns (leia texto ao lado).
Da prisão em Ribeirão ela foi mandada para o Dops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social), em São Paulo, e, em seguida, para o presídio Tiradentes. Em 70, foi trocada pelo cônsul japonês Nobuo Okuchi, sequestrado pela VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Daí, ganhou o exílio involuntário para o México. Na prisão, foi obrigada a confessar que tinha um amante e que era comunista, ela conta.
No livro "Combate nas Trevas", Jacob Gorender afirma que houve violência sexual contra a madre. "Baseei-me nos membros da FALN", disse Gorender.
A madre, no entanto, nega que tenha sido vítima de violência sexual. Diz que o que sofreu foi violência moral. A Folha falou com três pessoas que estiveram com a madre nas primeiras semanas de México. Todas disseram que "dificilmente deve ter havido estupro". "A madre é muito sensível. Um policial gritando com ela já era uma grande violência", afirmou Shizuo Osawa, na VPR chamado Mário Japa, também libertado em troca do cônsul. Aurea Moretti e Vanderley Caixe, membros da FALN, também defendem que não deve ter havido violência sexual.
A Editora Vozes está preparando o lançamento de "Sombras da Repressão - O Outono de Maurina Borges", da jornalista Matilde Leone. A história da madre é contada como se fosse um romance, mas se baseia em entrevistas feitas pela autora, que levou 12 anos para realizar as pesquisas.
Madre Maurina vive hoje em no centro de Catanduva, interior de São Paulo. Divide sua vida entre reuniões religiosas e trabalhos de assistência a crianças carentes da cidade, onde está há 14 anos.
Comunicativa e bem humorada, ela recebeu a Folha para uma conversa de pouco mais de duas horas, mas pediu que não fosse fotografada. (LUÍS EBLAK)

Folha - Como foi o episódio da sua prisão?
Madre Maurina Borges da Silveira -
Havia um grupo, o MEJ (Movimento Estudantil Jovem), que fazia reuniões em uma sala do Lar Santana. Num determinado dia, li nos jornais sobre as prisões. No jornal saiu que o presidente do MEJ, Mario Lorenzato, estava sendo procurado pela polícia. E já fazia muitas semanas que ele não aparecia mais no Lar Santana. Então, fiquei pensando o que teria ocorrido com ele. Fui até a salinha onde eles se reuniam. Tinha, no local, todo aquele material do jornal "O Berro" -da FALN- e outras coisas. Não queria aquilo lá, então mandei queimar tudo.
Aí a polícia apareceu no Lar para revistar a casa. Mas o que eles acharam foram somente as cadernetas do MEJ. E levaram tudo.
Eles foram embora, mas continuei pensando: posso ser presa a qualquer momento... Aí, um dia, eu ainda estava nessa reunião quando eles me chamaram por telefone e avisaram que a polícia estava me esperando lá em casa, para me buscar. E eu cheguei na porta e nem me deixaram entrar. Já me levaram para a delegacia; me levaram para uma sala, na antiga Força Pública -hoje Delegacia Seccional. E lá eu fiquei até as duas da tarde...
Fiquei lá. Tinha um monte de coisas no chão, coisas apreendidas pela polícia. Tinha armas, coisas de farmácia, glicerina, que eles falavam que era para fazer bombas...
Chegaram seis homens, mais ou menos, entre eles estava o Fleury (Sérgio Paranhos Fleury). Começaram os interrogatórios... que foram os mais bobos que existiam... Uns falavam de virgindade, outros, que eu estava abandonada, outros, que a igreja não queria mais saber de mim...
Outros perguntavam se eu queria sacerdote para me interrogar... E, quando eles falavam essas besteiras, eu não respondia nada, ficava quieta... E, quando eu não respondia, eles me davam choque elétrico... Então, eles esperavam eu descansar para depois começar de novo...
E isso durou muito tempo... Até, eu acho, umas três ou quatro da tarde. Vinha um, me interrogava, vinha outro, interrogava...
Folha - A senhora conhecia os policiais?
Maurina -
Não... O único que eu conhecia era o Fleury... Ele ficou danado da vida comigo. Ele me perguntou: "Quer que eu chame meu primo, que é padre, para te interrogar?". E eu não respondi... Passou um tempo, ele perguntou novamente: "Você não responde? Não olha na minha cara?". Eu olhei bem no olho dele... Ele perguntou: "Como você me conheceu?". E eu disse que tinha conhecido o Fleury na revista "Veja", quando ele tinha inventado uma história com os dominicanos. Ele ficou bravo quando falei isso, muito bravo. Simulou, bateu na mesa... E completei: "Foi aí que eu conheci você". Então, ele deu um murro na mesa e saiu da sala.
Folha - A senhora se referia ao episódio do frei Betto e do frei Tito?
Maurina -
Sim. Mas só falei dominicanos porque vi na revista. Depois, veio um delegado. Estava meio bêbado. Começou a me abraçar e eu disse: "Sai pra lá!".
Folha - Quem era o delegado?
Maurina -
Não sei quem era...
Folha - Ele apenas abraçou a senhora?
Maurina -
Sim, sim, só. Só sei que era um delegado de São Paulo. Não sei quem era ele. Ele pegou a arma e queria que eu pegasse na arma. Eu disse não. Disse que não iria pegar a arma. Ele queria que eu deixasse minhas digitais no objeto.
Depois me colocaram numa sala com a Aurea Moretti. Ela não podia nem sentar nem deitar, pois estava toda machucada. Nas mãos e nos rostos, eles não faziam nada, mas no resto do corpo sim. Não podia nem falar, comunicava-se só com gestos. No dia seguinte, fomos transferidos para a Cadeia Pública de Cravinhos (23 km de Ribeirão Preto). Ficamos lá um mês.
Eu fui interrogada só uma vez. E colocaram o Mario (Lorenzato) na minha frente porque eles diziam que ele era meu amante.
Folha - A polícia falava isso?
Maurina -
Sim, a polícia. E queriam porque queriam que nós confessássemos isso. Tanto que foram escrevendo tudo como se fosse depoimento nosso. Escreviam que eu era comunista, amante do Mario. E a polícia nos fez assinar isso.
No dia seguinte, nos levaram para São Paulo. Fomos para o Dops (Departamento Estadual da Ordem Política e Social), depois eu fui para a prisão Tiradentes.
Cheguei lá em novembro, fiquei dezembro, janeiro... Aí fui para a Penitenciária de Tremembé, que era cuidada por irmãs.
Aí um dia eu estava vendo televisão. Era programa sobre a cultura japonesa. Mostrava todos os costumes do Japão, as características, a religião deles... Até que interromperam o programa e disseram que havia uma notícia importante. "O Presidente da República (Emílio Garrastazu Medici) já liberou os presos políticos que vão ser trocados pelo cônsul japonês e vão para o México", disse o moço da televisão. E o primeiro dos cinco nomes de presos políticos a ser mencionado foi o meu: "Madre Maurina Borges da Silveira". Foi um choque, uma surpresa desagradável.
Folha - Do sequestro, a senhora já sabia naquele momento?
Maurina -
Já tinha lido. Então, foi como se tivessem jogado um balde d'água sobre mim. Eu não poderia acreditar naquilo. Eu não queria sair do país. Queria provar minha inocência.
Então, eu saí de Tremembé, fui para São Paulo. No aeroporto, entrei no avião da FAB e foi a mesma coisa: não me deixaram olhar pela janela, não deixaram ver o Brasil, o meu país, pela última vez... Isso porque nós éramos daqueles que estavam atrapalhando o país, então, não podíamos nem olhar uma última vez para o Brasil, pois tínhamos que sair do país sem ter uma imagem de despedida.
No avião, os homens da polícia viajaram o tempo todo armados. No México, queriam que descêssemos algemados, mas o cônsul brasileiro impediu. Saímos do avião sem algemas. E os policiais brasileiros queriam descer no México, mas as autoridades não deixaram.
O primeiro a me receber foi o padre Francisco Lages. A princípio, fiquei num hotel, depois fui para a congregação São José, de irmãs católicas do México.
No México, foi minha fé em Deus que me sustentou. Por meio dela eu pude ter momentos felizes.
Folha - A senhora viveu na Cidade do México?
Maurina -
Fui para uma fazenda... Era uma cidade chamada Demascalapa, no Estado do México. Fiz trabalhos sociais, com os trabalhadores rurais.
Folha - Voltando um pouco na história. Antes da prisão dos membros da FALN, a senhora sabia da existência do grupo guerrilheiro?
Maurina -
Não sabia. Não sabia de nada. Só sabia do MEJ, mas nada da guerrilha. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palestra sobre amor... Então, nem dá para imaginar que gente de um grupo guerrilheiro se interesse por palestra de uma freira sobre amor.
Folha - De onde acha que vieram tantos boatos sobre a senhora, como os episódios do seu envolvimento com guerrilheiros e a violência sexual?
Maurina -
Porque eles torturaram Mario Lorenzato para que ele mentisse... Agora, tem uma coisa que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No Lar Santana, orfanato que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e rica, o que era um escândalo social para a época (1969). Então, as crianças ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças, e pelo menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que precisavam de fato ficar no orfanato Lar Santana. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu dizia para as famílias: "O orfanato é lugar de criança necessitada que precisa de um lugar para viver, que não tem pai nem mãe". Acho que isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.



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