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A freira na prisão
Conheça a história de madre
Maurina, que foi torturada
e exilada, sob acusação
de pertencer a uma
organização guerrilheira
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do enviado especial a Catanduva
A madre franciscana Maurina
Borges da Silveira, hoje com 71
anos, foi presa em outubro de
1969, acusada de haver participado de um grupo guerrilheiro de
Ribeirão Preto -a FALN (Forças
Armadas de Libertação Nacional).
As suspeitas se basearam no fato
de ela, diretora do orfanato Lar
Santana, em Ribeirão Preto, ter
permitido que um membro da
FALN -Mario Lorenzato- fizesse reuniões de estudantes em sua
instituição religiosa. Além disso,
uma das guerrilheiras, Aurea Moretti, usava um hábito de freira
quando foi presa. A polícia desconfiou que a madre também fosse do grupo.
Dezenas de militantes foram
presos com Maurina e Aurea. A
Oban (Operação Bandeirantes,
braço repressor dos militares) foi
para Ribeirão Preto exclusivamente para investigar o caso. O
episódio acabou resultando na excomunhão de dois delegados (Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano), que se recusaram a falar à
Folha sobre o assunto.
"Foi o arcebispo d. Felício da
Cunha quem excomungou os
dois, por causa das torturas contra
presos políticos e as maldades feitas contra madre Maurina. Foi
com o caso de Ribeirão que comecei a minha luta pela justiça social", afirmou d. Paulo Evaristo
Arns (leia texto ao lado).
Da prisão em Ribeirão ela foi
mandada para o Dops (Departamento Estadual de Ordem Política
e Social), em São Paulo, e, em seguida, para o presídio Tiradentes.
Em 70, foi trocada pelo cônsul japonês Nobuo Okuchi, sequestrado pela VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária). Daí, ganhou o
exílio involuntário para o México.
Na prisão, foi obrigada a confessar
que tinha um amante e que era comunista, ela conta.
No livro "Combate nas Trevas", Jacob Gorender afirma que
houve violência sexual contra a
madre. "Baseei-me nos membros
da FALN", disse Gorender.
A madre, no entanto, nega que
tenha sido vítima de violência sexual. Diz que o que sofreu foi violência moral. A Folha falou com
três pessoas que estiveram com a
madre nas primeiras semanas de
México. Todas disseram que "dificilmente deve ter havido estupro". "A madre é muito sensível.
Um policial gritando com ela já
era uma grande violência", afirmou Shizuo Osawa, na VPR chamado Mário Japa, também libertado em troca do cônsul. Aurea
Moretti e Vanderley Caixe, membros da FALN, também defendem
que não deve ter havido violência
sexual.
A Editora Vozes está preparando
o lançamento de "Sombras da Repressão - O Outono de Maurina
Borges", da jornalista Matilde
Leone. A história da madre é contada como se fosse um romance,
mas se baseia em entrevistas feitas
pela autora, que levou 12 anos para realizar as pesquisas.
Madre Maurina vive hoje em no
centro de Catanduva, interior de
São Paulo. Divide sua vida entre
reuniões religiosas e trabalhos de
assistência a crianças carentes da
cidade, onde está há 14 anos.
Comunicativa e bem humorada,
ela recebeu a Folha para uma conversa de pouco mais de duas horas, mas pediu que não fosse fotografada.
(LUÍS EBLAK)
Folha - Como foi o episódio da
sua prisão?
Madre Maurina Borges da Silveira - Havia um grupo, o MEJ (Movimento Estudantil Jovem), que
fazia reuniões em uma sala do Lar
Santana. Num determinado dia, li
nos jornais sobre as prisões. No
jornal saiu que o presidente do
MEJ, Mario Lorenzato, estava sendo procurado pela polícia. E já fazia muitas semanas que ele não
aparecia mais no Lar Santana. Então, fiquei pensando o que teria
ocorrido com ele. Fui até a salinha
onde eles se reuniam. Tinha, no local, todo aquele material do jornal
"O Berro" -da FALN- e outras
coisas. Não queria aquilo lá, então
mandei queimar tudo.
Aí a polícia apareceu no Lar para
revistar a casa. Mas o que eles
acharam foram somente as cadernetas do MEJ. E levaram tudo.
Eles foram embora, mas continuei pensando: posso ser presa a
qualquer momento... Aí, um dia,
eu ainda estava nessa reunião
quando eles me chamaram por telefone e avisaram que a polícia estava me esperando lá em casa, para
me buscar. E eu cheguei na porta e
nem me deixaram entrar. Já me levaram para a delegacia; me levaram para uma sala, na antiga Força
Pública -hoje Delegacia Seccional. E lá eu fiquei até as duas da
tarde...
Fiquei lá. Tinha um monte de
coisas no chão, coisas apreendidas
pela polícia. Tinha armas, coisas
de farmácia, glicerina, que eles falavam que era para fazer bombas...
Chegaram seis homens, mais ou
menos, entre eles estava o Fleury
(Sérgio Paranhos Fleury). Começaram os interrogatórios... que foram os mais bobos que existiam...
Uns falavam de virgindade, outros, que eu estava abandonada,
outros, que a igreja não queria
mais saber de mim...
Outros perguntavam se eu queria sacerdote para me interrogar...
E, quando eles falavam essas besteiras, eu não respondia nada, ficava quieta... E, quando eu não
respondia, eles me davam choque
elétrico... Então, eles esperavam eu
descansar para depois começar de
novo...
E isso durou muito tempo... Até,
eu acho, umas três ou quatro da
tarde. Vinha um, me interrogava,
vinha outro, interrogava...
Folha - A senhora conhecia os
policiais?
Maurina - Não... O único que eu
conhecia era o Fleury... Ele ficou
danado da vida comigo. Ele me
perguntou: "Quer que eu chame
meu primo, que é padre, para te
interrogar?". E eu não respondi...
Passou um tempo, ele perguntou
novamente: "Você não responde?
Não olha na minha cara?". Eu
olhei bem no olho dele... Ele perguntou: "Como você me conheceu?". E eu disse que tinha conhecido o Fleury na revista "Veja",
quando ele tinha inventado uma
história com os dominicanos. Ele
ficou bravo quando falei isso, muito bravo. Simulou, bateu na mesa... E completei: "Foi aí que eu
conheci você". Então, ele deu um
murro na mesa e saiu da sala.
Folha - A senhora se referia ao
episódio do frei Betto e do frei Tito?
Maurina - Sim. Mas só falei dominicanos porque vi na revista.
Depois, veio um delegado. Estava
meio bêbado. Começou a me abraçar e eu disse: "Sai pra lá!".
Folha - Quem era o delegado?
Maurina - Não sei quem era...
Folha - Ele apenas abraçou a senhora?
Maurina - Sim, sim, só. Só sei
que era um delegado de São Paulo.
Não sei quem era ele. Ele pegou a
arma e queria que eu pegasse na
arma. Eu disse não. Disse que não
iria pegar a arma. Ele queria que eu
deixasse minhas digitais no objeto.
Depois me colocaram numa sala
com a Aurea Moretti. Ela não podia nem sentar nem deitar, pois estava toda machucada. Nas mãos e
nos rostos, eles não faziam nada,
mas no resto do corpo sim. Não
podia nem falar, comunicava-se só
com gestos. No dia seguinte, fomos transferidos para a Cadeia Pública de Cravinhos (23 km de Ribeirão Preto). Ficamos lá um mês.
Eu fui interrogada só uma vez. E
colocaram o Mario (Lorenzato) na
minha frente porque eles diziam
que ele era meu amante.
Folha - A polícia falava isso?
Maurina - Sim, a polícia. E queriam porque queriam que nós confessássemos isso. Tanto que foram
escrevendo tudo como se fosse depoimento nosso. Escreviam que eu
era comunista, amante do Mario.
E a polícia nos fez assinar isso.
No dia seguinte, nos levaram para São Paulo. Fomos para o Dops
(Departamento Estadual da Ordem Política e Social), depois eu
fui para a prisão Tiradentes.
Cheguei lá em novembro, fiquei
dezembro, janeiro... Aí fui para a
Penitenciária de Tremembé, que
era cuidada por irmãs.
Aí um dia eu estava vendo televisão. Era programa sobre a cultura
japonesa. Mostrava todos os costumes do Japão, as características,
a religião deles... Até que interromperam o programa e disseram
que havia uma notícia importante.
"O Presidente da República (Emílio Garrastazu Medici) já liberou
os presos políticos que vão ser trocados pelo cônsul japonês e vão
para o México", disse o moço da
televisão. E o primeiro dos cinco
nomes de presos políticos a ser
mencionado foi o meu: "Madre
Maurina Borges da Silveira". Foi
um choque, uma surpresa desagradável.
Folha - Do sequestro, a senhora
já sabia naquele momento?
Maurina - Já tinha lido. Então,
foi como se tivessem jogado um
balde d'água sobre mim. Eu não
poderia acreditar naquilo. Eu não
queria sair do país. Queria provar
minha inocência.
Então, eu saí de Tremembé, fui
para São Paulo. No aeroporto, entrei no avião da FAB e foi a mesma
coisa: não me deixaram olhar pela
janela, não deixaram ver o Brasil, o
meu país, pela última vez... Isso
porque nós éramos daqueles que
estavam atrapalhando o país, então, não podíamos nem olhar uma
última vez para o Brasil, pois tínhamos que sair do país sem ter
uma imagem de despedida.
No avião, os homens da polícia
viajaram o tempo todo armados.
No México, queriam que descêssemos algemados, mas o cônsul brasileiro impediu. Saímos do avião
sem algemas. E os policiais brasileiros queriam descer no México,
mas as autoridades não deixaram.
O primeiro a me receber foi o padre Francisco Lages. A princípio,
fiquei num hotel, depois fui para a
congregação São José, de irmãs católicas do México.
No México, foi minha fé em Deus
que me sustentou. Por meio dela
eu pude ter momentos felizes.
Folha - A senhora viveu na Cidade do México?
Maurina - Fui para uma fazenda... Era uma cidade chamada Demascalapa, no Estado do México.
Fiz trabalhos sociais, com os trabalhadores rurais.
Folha - Voltando um pouco na
história. Antes da prisão dos membros da FALN, a senhora sabia da
existência do grupo guerrilheiro?
Maurina - Não sabia. Não sabia
de nada. Só sabia do MEJ, mas nada da guerrilha. Nem desconfiava.
Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palestra sobre
amor... Então, nem dá para imaginar que gente de um grupo guerrilheiro se interesse por palestra de
uma freira sobre amor.
Folha - De onde acha que vieram
tantos boatos sobre a senhora, como os episódios do seu envolvimento com guerrilheiros e a violência sexual?
Maurina - Porque eles torturaram Mario Lorenzato para que ele
mentisse... Agora, tem uma coisa
que eu nunca disse a ninguém. É
sobre os ricos de Ribeirão Preto.
No Lar Santana, orfanato que eu
dirigia, tinha muita criança filha
de mãe solteira e rica, o que era um
escândalo social para a época
(1969). Então, as crianças ficavam
lá, mas o lugar era para os pobres.
Eram cerca de cem crianças, e pelo
menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que
precisavam de fato ficar no orfanato Lar Santana. As famílias davam
cheques para nós e tudo o mais,
mas o correto era que as crianças
vivessem em suas casas. O que eu
fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E
eram mansões, casas enormes. Eu
dizia para as famílias: "O orfanato
é lugar de criança necessitada que
precisa de um lugar para viver, que
não tem pai nem mãe". Acho que
isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação
com a minha prisão.
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