São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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ANTROPOLOGIA
O amigo dos ancestrais


O antropólogo e historiador britânico Jack Goody ataca o relativismo cultural e a história das mentalidades


MARIA LÚCIA GARCIA
PALLARES-BURKE
especial para a Folha

Jack Goody, antropólogo e historiador britânico, é reconhecidamente um dos mais versáteis intelectuais de nossos dias. Sua obra, marcada por grande erudição, amplitude de interesses e por uma abordagem distintamente "goodyana", tem atraído a atenção e admiração não só de antropólogos e historiadores, mas de filósofos, educadores e economistas.
Georges Duby, por exemplo, caracterizou a obra de Goody como uma desconcertante e "soberba lição de rigor" e de agudeza, que amplia enormemente os horizontes dos historiadores. O economista e filósofo de Harvard Amartya Sen a recomendou como um excelente corretivo da visão deturpada que se tem no Ocidente das diferenças entre o mundo oriental e ocidental. A repercussão e o impacto das idéias de Goody têm sido tão grandes que há três anos foram objeto de uma conferência na França, algo pouco usual durante a vida de um intelectual.
Aos 78 anos e em plena atividade, Jack Goody continua vivendo da forma movimentada e pouco rotineira que o tem caracterizado desde muito jovem. Iniciou em 1938 os estudos literários na Universidade de Cambridge -quando foi colega de três outros gigantes da intelectualidade inglesa: E.P.Thompson, Eric Hobsbawm e Raymond Williams-, mas a guerra logo o levou à luta no deserto africano, à captura pelos alemães, a três anos em campo de prisioneiros, à fuga da prisão e à vida clandestina na Itália.
Retornando à universidade em 1946, abandonou os estudos literários, ingressou na faculdade de arqueologia e antropologia e, após se dedicar à educação de adultos (querendo, como seu amigo E.P.Thompson, "contribuir para mudar o mundo"), iniciou sua carreira de antropólogo com uma pesquisa de campo num vilarejo do norte de Gana, onde se transformou no "amigo dos ancestrais". Desbravando desde então novos campos de estudo, sua obra, sempre repensada e em constante movimento, abrange temas tão variados quanto o impacto da escrita nas sociedades, a cultura das flores, a família, o feminismo, o contraste entre as culturas orientais e ocidentais, etc.
Professor de antropologia social em Cambridge de 1954 a 84, Jack Goody tem também sido pesquisador e professor itinerante nos quatro cantos do mundo. No Brasil esteve brevemente em 1984, quando deu aulas em Recife. Lamentavelmente, no entanto, permanece pouco conhecido do público brasileiro, tendo só 3 de seus 17 livros sido traduzidos para o português, como "Domesticação do Pensamento Selvagem" (Presença, 1988) e "Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade" (Edições 70, 1987), ambos editados em Portugal.
Sempre em incansável atividade, Jack Goody se dispôs a conceder esta entrevista no St. John's College, em sua sala atulhada de livros e manuscritos. Numa conversa cheia de surpresas e ricas digressões, e mostrando-se extremamente expansivo, gentil e bem-humorado, Goody discorreu longamente sobre seus interesses, suas experiências e sua trajetória intelectual. O que se segue é uma parte dessa instigante conversa.

Folha - O sr. escreveu sobre um número impressionante de temas, que vão desde as consequências da alfabetização e reformas educacionais a padrões de família e casamento; desde a África contemporânea e o Brasil do século 19 à Grécia, China e Mesopotâmia antigas; desde flores e ritos funerários a amor e comida. Como explica essa curiosidade enciclopédica?
Jack Goody -
Em parte, isso talvez se deva às experiências extremamente variadas que vivi durante a guerra; ao fato de estar um dia lutando no deserto contra beduínos; em outro convivendo com prisioneiros de guerra indianos, sul-africanos, americanos, russos etc. Acho que quando voltei da guerra quis, de algum modo, dar um sentido a toda essa diversidade de vivências. Mas também acho que a leitura de Marx e Weber despertaram meu interesse para amplos problemas sociológicos e para a razão pela qual algumas coisas acontecem num lugar e não em outro. Quando fui estudar uma vila no norte de Gana minha intenção nunca foi permanecer circunscrito a ela, mas estudá-la nas suas relações com as rotas comerciais do Saara, com o comércio do ouro tanto oriental quando da América do Sul etc. Gosto de me ver como um entendido na área sobre a qual fiz pesquisa de campo, mas não como um africanista. A lógica das minhas pesquisas pode me conduzir tanto para a África quanto para a Itália, já que me interesso pelos mesmos problemas, sempre sob a ótica comparativa.
Folha - O sr. mostrou que a pretensa "singularidade ocidental" impede nossa compreensão do passado e do presente não só dos "outros", como também de nós mesmos. Isso significa que não há nada único em "nós" ou "neles" e que, portanto, a própria categoria de singular é enganosa?
Goody -
Não totalmente, pois há certas coisas únicas numa cultura e não há nada de errado com a idéia de que todo país, toda pessoa são únicos. Mas acho que a idéia da singularidade do Ocidente -ou seja, de seu individualismo, racionalidade e estrutura familiar- extrapolou os limites e gerou muitas incompreensões. A Inglaterra é única em alguns aspectos, a Europa como um todo em outros, a China ainda em outros, e assim por diante.
Quando digo que extrapolou os limites é porque se tornou uma idéia mais ou menos assente de que pudemos inventar o capitalismo ou a modernização porque nós, ocidentais, somos únicos. Ora, isso só é verdade se pensarmos no capitalismo industrial, mas não se pensarmos no capitalismo mercantil, que era tão ou mais vigoroso no Oriente do que no Ocidente durante os séculos 14, 15 e 16.
Quanto à modernização, quem pode dizer que Hong Kong ou o Japão não são mais modernos do que nós? A questão é que as coisas estão sempre mudando e, a partir de uma perspectiva global, é fácil verificar que o pêndulo oscila e que sociedades que estiveram na vanguarda da modernização numa época cederam lugar para outra em outra época. Não é uma característica única de nossa constituição enquanto ingleses ou europeus, que permite que façamos isto ou aquilo.
E, no entanto, isso é o que meus colegas historiadores, como Lawrence Stone e tantos outros, fazem quando estudam a história da família, da criança etc. Enfatizam em excesso a peculiaridade ocidental e a usam num modo teórico que penso ser muito enganoso. Só se poderá dizer que a família européia ou inglesa é única se outras famílias, como a chinesa, forem estudadas. Basear tal afirmação no estudo de dados sobre as famílias inglesas ou européias dos séculos 18 e 19 não tem qualquer sentido teórico sólido. No entanto, isso é o que tem sido feito muitas vezes.
Folha - Começando seu estudo pela África e o expandindo para abarcar a Europa, o sr. se tornou, de certo modo, um intelectual único no mundo das ciências sociais. Quão importante considera essa mediação entre os dois mundos? Goody - Considero minha experiência africana muito importante, pois onde quer que esteja considerando um problema, na Europa ou em qualquer outro lugar, volto meu pensamento para a África e me pergunto: como seria isso lá no vilarejo que estudei? É muito enriquecedor observar as culturas européias tendo a África como pano de fundo. Muitos dos meus interesses são originários de minha primeira experiência de campo em Gana. Além disso, estudando as diferentes atividades africanas e observando as profundas diferenças com a cultura européia, procurei sempre encontrar algum tipo de explicação contextual para essas diferenças, e não simplesmente resolver a questão dizendo, por exemplo, que a África era o que era pelo fato de ter uma mentalidade selvagem.
Foi esse tipo de preocupação que me levou a me interessar pelo papel da leitura e da escrita nas sociedades. Grande parte das diferenças entre a África e Eurásia (é o que tentei mostrar) estavam relacionadas ao fato de a primeira não ter desenvolvido um sistema de escrita. Tão logo escolas foram introduzidas e o ensino da escrita se iniciou, as coisas começaram a mudar vertiginosamente, ou seja, não havia uma característica estrutural, uma mentalidade arcaica por trás das diferenças. E eu presenciei de perto essa mudança em Gana, num espaço de tempo muito curto. Vi pessoas vindas de vilarejos onde não existia a escrita se transformarem em excelentes professores universitários, em romancistas, em homens de negócio e até em secretário das Nações Unidas!
Folha - O que o levou a se interessar pela revolta de escravos de 1835 em Salvador, no Brasil?
Goody -
Em parte porque me interesso por revoltas, em geral. Mas, nesse caso particular, o que me atraiu foi o fato de o chefe de polícia local atribuir o relativo sucesso da revolta ao papel da escrita no seu planejamento. Sabe-se que escravos e homens livres participantes da revolta -a maioria muçulmanos de origem ioruba- frequentava escolas informais islamitas, onde aprendiam a ler e a escrever em caracteres árabes, e que muitos dos líderes tinham perfeito domínio da leitura e da escrita, o que os colocava acima dos colonizadores brancos que mal sabiam assinar o nome.
Com essa habilidade eles puderam planejar o levante em segredo, enviando mensagens e instruções que foram apreendidas pela polícia (e analisadas por Nina Rodrigues em 1900). Como decorrência dessa revolta, foi tomada uma medida draconiana, buscando privar a comunidade negra de seus membros letrados: 400 negros foram expulsos e enviados para a África, e tal êxodo parece ter tirado o impulso de futuras revoltas. Assim, meu antigo interesse pelas consequências da alfabetização se viu aguçado por esse episódio que punha à luz as potencialidades da leitura e da escrita para a transformação cultural.
Folha - Um de seus objetivos tem sido refutar as distinções etnocêntricas entre "nós" (os civilizados, avançados, lógico-empíricos) e "eles" (os primitivos e míticos). Ao mesmo tempo o sr. se recusa a aceitar o relativismo cultural, que chama de "igualitarismo sentimental". O que há de errado com o relativismo cultural?
Goody -
Essa é uma moda bem pós-modernista, mas, de certo modo, sempre houve esse elemento na própria antropologia, na medida em que seus praticantes se preocuparam em mostrar que muitas sociedades não são tão diferentes da nossa quanto comumente se pensa; preocupação, aliás, bastante louvável. Mas acho também muito importante reconhecer, ao lado das semelhanças, as inegáveis diferenças.
O relativismo cultural, no seu limite, afirma que, por exemplo, os povos africanos são iguais aos chineses, japoneses e europeus. Mas, se são, a questão que se coloca é saber por que eles não realizaram as mesmas coisas. E para isso essa concepção não tem resposta. Não se trata, em absoluto, de dizer que algumas culturas ou povos são inferiores, menos inteligentes ou moralmente piores do que outros, mas de reconhecer que as realizações são muito diferentes.
Pensando no caso africano, eles desenvolveram, evidentemente, sistemas de conhecimento sobre a natureza, mas não puderam desenvolvê-los da mesma forma que outros o fizeram com a ajuda do que chamo de "tecnologia do intelecto", ou seja, de escrita e do que ela possibilita. Dizer simplesmente, como faz Derrida, que ler a natureza é o mesmo que ler livros é enganoso. Lendo estrelas não poderei obter o mesmo tipo de conhecimento sobre o Brasil que quando tenho acesso a livros, enciclopédias etc.
A habilidade de ler, escrever, usar livros me capacita a fazer coisas que os povos de uma cultura fundamentalmente oral, por mais talentosos e inteligentes que sejam, não podem fazer. Igual vantagem em produtividade adquirem aqueles que usam a tração animal ou o trator para trabalhar a terra, em vez da energia humana. Nós, por exemplo, não poderíamos estar aqui sentados durante todas essas horas conversando se sistemas de produção mais elaborados não nos poupassem de longas horas de trabalho no solo para garantir nossa comida diária.
Folha - Seu interesse por questões educacionais recua à época em que trabalhou com educação de adultos no pós-guerra e se manteve em seu papel de observador dos sistemas educacionais africanos e europeus. Há quase duas décadas, chegou a propor uma reforma radical da educação que envolvia a "desescolarização parcial" da juventude. Como concilia essa proposta com seu interesse pelas consequências da alfabetização?
Goody -
Meu interesse pelo papel transformador que a introdução da escrita exerceu nas sociedades me levou a reconhecer, por um lado, que os modos de comunicação oral não são eliminados com a introdução da escrita e, por outro, que o domínio das culturas letradas (e dos letrados) e a correlata depreciação dos iletrados é um fato deplorável.
Assim, minha proposta de desescolarização estava ligada a um esforço (que considerava, tanto à época como hoje, necessário) de se ensinar respeito por outros tipos de trabalho menos intelectuais e de se avaliar o trabalho manual de um modo mais positivo. Uma das coisas mais desastrosas em educação é que as pessoas são afastadas das atividades produtivas da sociedade. Quando fui educador após a guerra havia a possibilidade de os alunos aprenderem o que é uma batata e como ela é cultivada, passando uma semana no meio dos batatais. No entanto, a experiência não durou, pois os professores e as autoridades não sossegaram enquanto não trouxeram os alunos para dentro das salas de aulas.
Mas há outra questão que há tempos me preocupa sobre a educação. Trata-se da discrepância entre as realizações educacionais e as econômicas, particularmente dramática no caso africano. Devo confessar que, na época da independência da África, eu, como tantos outros intelectuais e políticos, também pensava que, se se criassem boas escolas e universidades, o desenvolvimento e a economia decolariam. Mas as coisas não acontecem assim e, enquanto a educação (a um custo altíssimo) foi um sucesso, produzindo grandes romancistas e teatrólogos (vivendo agora nos EUA e Europa), o sistema produtivo continuou basicamente o mesmo.
Em Gana, por exemplo, temos uma população educada, insatisfeita, que não quer se dedicar à agricultura tradicional e ansiosa por emigrar. Como resultado, só em Chicago há hoje 10 mil ganeses, alguns com 20 anos de estudo, trabalhando como taxistas ou em subempregos. A ironia é que o Ocidente diz estar ajudando esses países quando envia verbas e cancela dívidas, mas considerando o número de africanos nos subempregos americanos e europeus, o Ocidente está ganhando muito mais do que dando!
Quando digo que a educação deve estar em maior consonância com a economia (não num sentido absoluto, é óbvio) pode parecer reacionário. Mas seguramente a educação universal, por si só, não muda o mundo e seguramente não mudou Gana! O que então defendo (ao lado de uma maior consonância entre educação e sistema de produção) é uma reavaliação das realizações orais, de tal modo que os compositores de balada e os contadores de história sejam tão valorizados quanto os escritores.
Folha - O sr. considera que a noção de "mentalidade" é enganosa como instrumento de análise histórica. Quais suas críticas a essa abordagem?
Goody -
Penso que é muito fácil e até simplista descobrir mudanças de mentalidades ao longo da história, como fizeram P. Ariès, L. Stone e tantos outros. A "invenção da infância", por exemplo, não é convincente porque falta perspectiva comparativa. Para se afirmar que essa invenção aconteceu na Europa num dado momento histórico, seria necessário saber, em primeiro lugar, o que era a infância no momento anterior e, em segundo lugar, como outras sociedades do presente e do passado a consideravam.
O mesmo pode ser dito sobre a noção de que o amor conjugal surgiu na Europa no século 17. Basta nos voltarmos para a Idade Média e os romanos para ver que isso não se sustenta. Foi nessa linha que Ian Watt e eu condenamos a explicação das grandes realizações gregas como fruto do "gênio grego". Há uma certa preguiça intelectual na invocação do "gênio" ou da "mentalidade" dos gregos para explicar seu sucesso. Nisso partilho das críticas de G. Lloyd em "Demystifying Mentalities" (Desmistificando Mentalidades).
Folha - O sr. afirma ter sido influenciado pelo marxismo, mas insiste que a visão de Marx sobre o Oriente alimentou a pretensiosa ideologia ocidental. Não obstante isso, o senhor acha que marxismo ainda teria alguma contribuição a dar aos estudos comparativos?
Goody -
Eu certamente não sou um não-marxista porque ainda penso que Marx oferece ótimos pontos de partida para o tratamento de várias questões. Ainda hoje estava escrevendo uma crítica a algumas de suas idéias, mas exatamente porque acho que devem ser consideradas seriamente.
As ciências sociais ganharam com ele uma dimensão histórica, uma teoria sobre o desenvolvimento social que pode ser vista hoje como, de certo modo, grosseira e inadequada. Ele também estava errado sobre as sociedades asiáticas (que não eram estagnadas e despóticas como supunha) e sobre alguns aspectos das européias. No entanto, mesmo assim, ele levanta problemas essenciais e os trata de um modo que não podemos, de modo algum, descartar como irrelevante.
A comparação que Marx e Weber fizeram padeceu de um flagrante etnocentrismo e também de escassez de dados. Convenhamos que, desconhecendo o chinês, era-lhes praticamente impossível ter acesso ao conhecimento que dispomos hoje, com os bons trabalhos existentes em inglês sobre o Oriente. O que era mais compreensível no passado, torna-se atualmente muito mais criticável.


Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é autora de "The Spectator, o Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18" (Hucitec) e "Nísia Floresta - O Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução Cultural" (Hucitec).



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