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ANTROPOLOGIA
O amigo dos ancestrais
O antropólogo e historiador
britânico Jack Goody ataca
o relativismo cultural e a
história das mentalidades
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MARIA LÚCIA GARCIA
PALLARES-BURKE
especial para a Folha
Jack Goody, antropólogo e historiador britânico, é reconhecidamente um dos mais versáteis intelectuais de nossos dias. Sua obra,
marcada por grande erudição,
amplitude de interesses e por uma
abordagem distintamente "goodyana", tem atraído a atenção e admiração não só de antropólogos e
historiadores, mas de filósofos,
educadores e economistas.
Georges Duby, por exemplo, caracterizou a obra de Goody como
uma desconcertante e "soberba
lição de rigor" e de agudeza, que
amplia enormemente os horizontes dos historiadores. O economista e filósofo de Harvard Amartya
Sen a recomendou como um excelente corretivo da visão deturpada
que se tem no Ocidente das diferenças entre o mundo oriental e
ocidental. A repercussão e o impacto das idéias de Goody têm sido tão grandes que há três anos foram objeto de uma conferência na
França, algo pouco usual durante
a vida de um intelectual.
Aos 78 anos e em plena atividade, Jack Goody continua vivendo
da forma movimentada e pouco
rotineira que o tem caracterizado
desde muito jovem. Iniciou em
1938 os estudos literários na Universidade de Cambridge -quando foi colega de três outros gigantes da intelectualidade inglesa:
E.P.Thompson, Eric Hobsbawm e
Raymond Williams-, mas a
guerra logo o levou à luta no deserto africano, à captura pelos alemães, a três anos em campo de
prisioneiros, à fuga da prisão e à
vida clandestina na Itália.
Retornando à universidade em
1946, abandonou os estudos literários, ingressou na faculdade de arqueologia e antropologia e, após
se dedicar à educação de adultos
(querendo, como seu amigo
E.P.Thompson, "contribuir para
mudar o mundo"), iniciou sua
carreira de antropólogo com uma
pesquisa de campo num vilarejo
do norte de Gana, onde se transformou no "amigo dos ancestrais". Desbravando desde então
novos campos de estudo, sua
obra, sempre repensada e em
constante movimento, abrange temas tão variados quanto o impacto da escrita nas sociedades, a cultura das flores, a família, o feminismo, o contraste entre as culturas orientais e ocidentais, etc.
Professor de antropologia social
em Cambridge de 1954 a 84, Jack
Goody tem também sido pesquisador e professor itinerante nos
quatro cantos do mundo. No Brasil esteve brevemente em 1984,
quando deu aulas em Recife. Lamentavelmente, no entanto, permanece pouco conhecido do público brasileiro, tendo só 3 de seus
17 livros sido traduzidos para o
português, como "Domesticação
do Pensamento Selvagem" (Presença, 1988) e "Lógica da Escrita e
a Organização da Sociedade"
(Edições 70, 1987), ambos editados em Portugal.
Sempre em incansável atividade,
Jack Goody se dispôs a conceder
esta entrevista no St. John's College, em sua sala atulhada de livros e
manuscritos. Numa conversa
cheia de surpresas e ricas digressões, e mostrando-se extremamente expansivo, gentil e
bem-humorado, Goody discorreu
longamente sobre seus interesses,
suas experiências e sua trajetória
intelectual. O que se segue é uma
parte dessa instigante conversa.
Folha - O sr. escreveu sobre um
número impressionante de temas,
que vão desde as consequências
da alfabetização e reformas educacionais a padrões de família e casamento; desde a África contemporânea e o Brasil do século 19 à Grécia, China e Mesopotâmia antigas;
desde flores e ritos funerários a
amor e comida. Como explica essa
curiosidade enciclopédica?
Jack Goody - Em parte, isso talvez se deva às experiências extremamente variadas que vivi durante a guerra; ao fato de estar um dia
lutando no deserto contra beduínos; em outro convivendo com
prisioneiros de guerra indianos,
sul-africanos, americanos, russos
etc. Acho que quando voltei da
guerra quis, de algum modo, dar
um sentido a toda essa diversidade
de vivências. Mas também acho
que a leitura de Marx e Weber despertaram meu interesse para amplos problemas sociológicos e para
a razão pela qual algumas coisas
acontecem num lugar e não em
outro. Quando fui estudar uma vila no norte de Gana minha intenção nunca foi permanecer circunscrito a ela, mas estudá-la nas suas
relações com as rotas comerciais
do Saara, com o comércio do ouro
tanto oriental quando da América
do Sul etc. Gosto de me ver como
um entendido na área sobre a qual
fiz pesquisa de campo, mas não
como um africanista. A lógica das
minhas pesquisas pode me conduzir tanto para a África quanto para
a Itália, já que me interesso pelos
mesmos problemas, sempre sob a
ótica comparativa.
Folha - O sr. mostrou que a pretensa "singularidade ocidental"
impede nossa compreensão do
passado e do presente não só dos
"outros", como também de nós
mesmos. Isso significa que não há
nada único em "nós" ou "neles" e
que, portanto, a própria categoria
de singular é enganosa?
Goody - Não totalmente, pois
há certas coisas únicas numa cultura e não há nada de errado com a
idéia de que todo país, toda pessoa
são únicos. Mas acho que a idéia da
singularidade do Ocidente -ou
seja, de seu individualismo, racionalidade e estrutura familiar- extrapolou os limites e gerou muitas
incompreensões. A Inglaterra é
única em alguns aspectos, a Europa como um todo em outros, a
China ainda em outros, e assim
por diante.
Quando digo que extrapolou os limites é porque
se tornou uma idéia mais
ou menos assente de que
pudemos inventar o capitalismo ou a modernização
porque nós, ocidentais, somos únicos. Ora, isso só é
verdade se pensarmos no
capitalismo industrial,
mas não se pensarmos no capitalismo mercantil, que era tão ou
mais vigoroso no Oriente do que
no Ocidente durante os séculos 14,
15 e 16.
Quanto à modernização, quem
pode dizer que Hong Kong ou o
Japão não são mais modernos do
que nós? A questão é que as coisas
estão sempre mudando e, a partir
de uma perspectiva global, é fácil
verificar que o pêndulo oscila e que
sociedades que estiveram na vanguarda da modernização numa
época cederam lugar para outra
em outra época. Não é uma característica única de nossa constituição enquanto ingleses ou europeus, que permite que façamos isto ou aquilo.
E, no entanto, isso é o que meus
colegas historiadores, como Lawrence Stone e tantos outros, fazem quando estudam a história da
família, da criança etc. Enfatizam
em excesso a peculiaridade ocidental e a usam num modo teórico
que penso ser muito enganoso. Só
se poderá dizer que a família européia ou inglesa é única se outras
famílias, como a chinesa, forem
estudadas. Basear tal afirmação no
estudo de dados sobre as famílias
inglesas ou européias dos séculos
18 e 19 não tem qualquer sentido
teórico sólido. No entanto, isso é o
que tem sido feito muitas vezes.
Folha - Começando seu estudo
pela África e o expandindo para
abarcar a Europa, o sr. se tornou,
de certo modo, um intelectual único no mundo das ciências sociais.
Quão importante considera essa
mediação entre os dois mundos?
Goody - Considero minha experiência africana muito importante,
pois onde quer que esteja considerando um problema, na Europa ou
em qualquer outro lugar, volto
meu pensamento para a África e
me pergunto: como seria isso lá no
vilarejo que estudei? É muito enriquecedor observar as culturas européias tendo a África como pano
de fundo. Muitos dos meus interesses são originários de minha
primeira experiência de campo em
Gana. Além disso, estudando as
diferentes atividades africanas e
observando as profundas diferenças com a cultura européia, procurei sempre encontrar algum tipo
de explicação contextual para essas diferenças, e não simplesmente
resolver a questão dizendo, por
exemplo, que a África era o que era
pelo fato de ter uma mentalidade
selvagem.
Foi esse tipo de preocupação que
me levou a me interessar pelo papel da leitura e da escrita nas sociedades. Grande parte das diferenças
entre a África e Eurásia (é o que
tentei mostrar) estavam relacionadas ao fato de a primeira não ter
desenvolvido um sistema de escrita. Tão logo escolas foram introduzidas e o ensino da escrita se iniciou, as coisas começaram a mudar vertiginosamente, ou seja, não
havia uma característica estrutural, uma mentalidade arcaica por
trás das diferenças. E eu presenciei
de perto essa mudança em Gana,
num espaço de tempo muito curto. Vi pessoas vindas de vilarejos
onde não existia a escrita se transformarem em excelentes professores universitários, em romancistas, em homens de negócio e até
em secretário das Nações Unidas!
Folha - O que o levou a se interessar pela revolta de escravos de
1835 em Salvador, no Brasil?
Goody - Em parte porque me
interesso por revoltas, em geral.
Mas, nesse caso particular, o que
me atraiu foi o fato de o chefe de
polícia local atribuir o relativo sucesso da revolta ao papel da escrita
no seu planejamento. Sabe-se que
escravos e homens livres participantes da revolta -a maioria muçulmanos de origem ioruba- frequentava escolas informais islamitas, onde aprendiam a ler e a escrever em caracteres árabes, e que
muitos dos líderes tinham perfeito
domínio da leitura e da escrita, o
que os colocava acima dos colonizadores brancos que mal sabiam
assinar o nome.
Com essa habilidade eles puderam planejar o levante em segredo,
enviando mensagens e instruções
que foram apreendidas pela polícia (e analisadas por Nina Rodrigues em 1900). Como decorrência
dessa revolta, foi tomada uma medida draconiana, buscando privar
a comunidade negra de seus membros letrados: 400 negros foram
expulsos e enviados para a África,
e tal êxodo parece ter tirado o impulso de futuras revoltas. Assim,
meu antigo interesse pelas consequências da alfabetização se viu
aguçado por esse episódio que punha à luz as potencialidades da leitura e da escrita para a transformação cultural.
Folha - Um de seus objetivos tem
sido refutar as distinções etnocêntricas entre "nós" (os civilizados,
avançados, lógico-empíricos) e
"eles" (os primitivos e míticos). Ao
mesmo tempo o sr. se recusa a
aceitar o relativismo cultural, que
chama de "igualitarismo sentimental". O que há de errado com o relativismo cultural?
Goody - Essa é uma moda bem
pós-modernista, mas, de certo
modo, sempre houve esse elemento na própria antropologia, na medida em que seus praticantes se
preocuparam em mostrar que
muitas sociedades não são tão diferentes da nossa quanto comumente se pensa; preocupação,
aliás, bastante louvável. Mas acho
também muito importante reconhecer, ao lado das semelhanças,
as inegáveis diferenças.
O relativismo cultural, no seu limite, afirma que, por exemplo, os
povos africanos são iguais aos chineses, japoneses e europeus. Mas,
se são, a questão que se coloca é
saber por que eles não realizaram
as mesmas coisas. E para isso essa
concepção não tem resposta. Não
se trata, em absoluto, de dizer que
algumas culturas ou povos são inferiores, menos inteligentes ou
moralmente piores do que outros,
mas de reconhecer que as realizações são muito diferentes.
Pensando no caso africano, eles
desenvolveram, evidentemente,
sistemas de conhecimento sobre a
natureza, mas não puderam desenvolvê-los da mesma forma que
outros o fizeram com a ajuda do
que chamo de "tecnologia do intelecto", ou seja, de escrita e do
que ela possibilita. Dizer simplesmente, como faz Derrida, que ler a
natureza é o mesmo que ler livros é
enganoso. Lendo estrelas não poderei obter o mesmo tipo
de conhecimento sobre o
Brasil que quando tenho
acesso a livros, enciclopédias etc.
A habilidade de ler, escrever, usar livros me capacita a fazer coisas que os
povos de uma cultura fundamentalmente oral, por
mais talentosos e inteligentes que
sejam, não podem fazer. Igual vantagem em produtividade adquirem aqueles que usam a tração animal ou o trator para trabalhar a
terra, em vez da energia humana.
Nós, por exemplo, não poderíamos estar aqui sentados durante
todas essas horas conversando se
sistemas de produção mais elaborados não nos poupassem de longas horas de trabalho no solo para
garantir nossa comida diária.
Folha - Seu interesse por questões educacionais recua à época
em que trabalhou com educação
de adultos no pós-guerra e se
manteve em seu papel de observador dos sistemas educacionais africanos e europeus. Há quase duas
décadas, chegou a propor uma reforma radical da educação que envolvia a "desescolarização parcial"
da juventude. Como concilia essa
proposta com seu interesse pelas
consequências da alfabetização?
Goody - Meu interesse pelo papel transformador que a introdução da escrita exerceu nas sociedades me levou a reconhecer, por um
lado, que os modos de comunicação oral não são eliminados com a
introdução da escrita e, por outro,
que o domínio das culturas letradas (e dos letrados) e a correlata
depreciação dos iletrados é um fato deplorável.
Assim, minha proposta de desescolarização estava ligada a um esforço (que considerava, tanto à
época como hoje, necessário) de se
ensinar respeito por outros tipos
de trabalho menos intelectuais e de
se avaliar o trabalho manual de um
modo mais positivo. Uma das coisas mais desastrosas em educação
é que as pessoas são afastadas das
atividades produtivas da sociedade. Quando fui educador após a
guerra havia a possibilidade de os
alunos aprenderem o que é uma
batata e como ela é cultivada, passando uma semana no meio dos
batatais. No entanto, a experiência
não durou, pois os professores e as
autoridades não sossegaram enquanto não trouxeram os alunos
para dentro das salas de aulas.
Mas há outra questão que há
tempos me preocupa sobre a educação. Trata-se da discrepância
entre as realizações educacionais e
as econômicas, particularmente
dramática no caso africano. Devo
confessar que, na época da independência da África, eu, como
tantos outros intelectuais e políticos, também pensava que, se se
criassem boas escolas e universidades, o desenvolvimento e a economia decolariam. Mas as coisas
não acontecem assim e, enquanto
a educação (a um custo altíssimo)
foi um sucesso, produzindo grandes romancistas e teatrólogos (vivendo agora nos EUA e Europa), o
sistema produtivo continuou basicamente o mesmo.
Em Gana, por exemplo, temos
uma população educada, insatisfeita, que não quer se dedicar à
agricultura tradicional e ansiosa
por emigrar. Como resultado, só
em Chicago há hoje 10 mil ganeses,
alguns com 20 anos de estudo, trabalhando como taxistas ou em subempregos. A ironia é que o Ocidente diz estar ajudando esses países quando envia verbas e cancela
dívidas, mas considerando o número de africanos nos subempregos americanos e europeus, o Ocidente está ganhando muito mais
do que dando!
Quando digo que a educação deve estar em maior consonância
com a economia (não num sentido
absoluto, é óbvio) pode parecer
reacionário. Mas seguramente a
educação universal, por si só, não
muda o mundo e seguramente não
mudou Gana! O que então defendo
(ao lado de uma maior consonância entre educação e sistema de
produção) é uma reavaliação das
realizações orais, de tal modo que
os compositores de balada e os
contadores de história sejam tão
valorizados quanto os escritores.
Folha - O sr. considera que a noção de "mentalidade" é enganosa
como instrumento de análise histórica. Quais suas críticas a essa
abordagem?
Goody - Penso que é muito fácil
e até simplista descobrir mudanças de mentalidades ao longo da
história, como fizeram P. Ariès, L.
Stone e tantos outros. A "invenção da infância", por exemplo,
não é convincente porque falta
perspectiva comparativa. Para se
afirmar que essa invenção aconteceu na Europa num dado momento histórico, seria necessário saber, em primeiro lugar, o que era a
infância no momento anterior e,
em segundo lugar, como outras
sociedades do presente e do passado a consideravam.
O mesmo pode ser dito sobre a
noção de que o amor conjugal surgiu na Europa no século 17. Basta
nos voltarmos para a Idade Média
e os romanos para ver que isso não
se sustenta. Foi nessa linha que Ian
Watt e eu condenamos a explicação das grandes realizações gregas
como fruto do "gênio grego". Há
uma certa preguiça intelectual na
invocação do "gênio" ou da
"mentalidade" dos gregos para
explicar seu sucesso. Nisso partilho das críticas de G. Lloyd em
"Demystifying Mentalities"
(Desmistificando Mentalidades).
Folha - O sr. afirma ter sido influenciado pelo marxismo, mas insiste que a visão de Marx sobre o
Oriente alimentou a pretensiosa
ideologia ocidental. Não obstante
isso, o senhor acha que marxismo
ainda teria alguma contribuição a
dar aos estudos comparativos?
Goody - Eu certamente não sou
um não-marxista porque ainda
penso que Marx oferece ótimos
pontos de partida para o tratamento de várias questões. Ainda
hoje estava escrevendo uma crítica
a algumas de suas idéias, mas exatamente porque acho que devem
ser consideradas seriamente.
As ciências sociais ganharam
com ele uma dimensão histórica,
uma teoria sobre o desenvolvimento social que pode ser vista hoje como, de certo modo, grosseira
e inadequada. Ele também estava
errado sobre as sociedades asiáticas (que não eram estagnadas e
despóticas como supunha) e sobre
alguns aspectos das européias. No
entanto, mesmo assim, ele levanta
problemas essenciais e os trata de
um modo que não podemos, de
modo algum, descartar como irrelevante.
A comparação que Marx e Weber fizeram padeceu de um flagrante etnocentrismo e também
de escassez de dados. Convenhamos que, desconhecendo o chinês,
era-lhes praticamente impossível
ter acesso ao conhecimento que
dispomos hoje, com os bons trabalhos existentes em inglês sobre o
Oriente. O que era mais compreensível no passado, torna-se
atualmente muito mais criticável.
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke é autora de
"The Spectator, o Teatro das Luzes - Diálogo e
Imprensa no Século 18" (Hucitec) e "Nísia Floresta - O Carapuceiro e Outros Ensaios de Tradução
Cultural" (Hucitec).
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