São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FUTEBOL


O crítico de teatro Decio de Almeida Prado pede liberdade de criação para os jogadores


DECIO DE ALMEIDA PRADO
especial para a Folha

Quem vencerá a Copa do Mundo de 1998? Só há uma resposta honesta: ninguém sabe. Das inúmeras tardes turfísticas da minha adolescência conservei na memória sobretudo uma frase cética e cheia de sabedoria. Entendido em corridas -dizia-se então e talvez se diga ainda hoje- é quem sabe prever no sábado que cavalo ganhará o Grande Prêmio do domingo e na segunda-feira sabe explicar por que ele não ganhou. Essa é a diferença entre ciência, onde os fatos são previsíveis -o sol nascerá amanhã às 6 horas e 27 minutos- e o jogo, no qual não existem senão probabilidades maiores ou menores. Alguém foi capaz de prognosticar que os Estados Unidos venceriam a Inglaterra em 1950 e o Brasil em 1998?
Não se deve perder de vista essa distinção capital porque a tendência moderna é atenuá-la ou negá-la. Tanto os treinadores quanto os comentaristas profissionais gostariam muito que o futebol fosse uma ciência exata, ou quase exata, de forma a justificar a importância de seus atos e palavras, para não falar de seus avantajados vencimentos. Eles, entre todos, é que deteriam a chave dos resultados positivos ou negativos. Zagallo, por exemplo, insistiu, através de inúmeras entrevistas, que o futebol brasileiro ganharia com certeza as Olimpíadas, desde que nos preparássemos para isso. Pois bem, preparamo-nos, sob sua direção, e perdemos para a Nigéria.
Eu, pessoalmente, simpatizo mais, nesse ponto, com os jogadores que, após a derrota, alegam em sua defesa que o futebol é isso mesmo, uma caixinha de surpresas, não dependendo a vitória, nem só da técnica, nem só da determinação (a palavra mágica do momento). O que vejo, a exemplo deles, é que o gol sai com frequência de um acaso feliz: a bola que entra porque resvala em alguém, amigo ou inimigo, o chute forte de fora da área que, em vez de subir, como é a regra, desvia-se do centro do gol o suficiente para que penetre num dos seus cantos altos, na junção da trave com o travessão, lugar que o goleiro jamais alcançará num único movimento, porque a sua impulsão dá-se ou no sentido horizontal ou no sentido vertical -os dois ao mesmo tempo é impossível. Talvez o exemplo supremo dessa casualidade esteja na bola que bate na trave: uns poucos centímetros para dentro, é gol; uns poucos centímetros para fora, é tiro de meta; no meio, entre esses dois pontos tão próximos, é bola que volta à grande área, ora nos pés dos atacantes, ora nos dos defensores.
Não quero dizer, com tais considerações, que não haja causalidade -o inverso da casualidade- no futebol. Ao contrário, o que me proporciona mais prazer, como torcedor ou como espectador, é o gol bem feito, pensado e executado com precisão, no tempo exato, por um ou mais jogadores, que se entendem sem necessitar de palavras, levando também em consideração o que o adversário fez ou pretende fazer. Somam-se nesses instantes mágicos, mas que pagam pelos inócuos, a habilidade física e a presteza mental, o exercício simultâneo do corpo e do pensamento. Nada mais bonito do que o jogador que avança antes mesmo que lhe enderecem a bola ou do que o zagueiro que, antecipando, corta o passe. A arma por excelência do futebol é o drible (palavra inglesa abrasileirada), ou seja, a finta, o engano, dar a entender que se fará certa coisa e fazer-se exatamente o contrário. Não há goleador sem esse espírito inventivo, esse poder de decisão imediata, que não deixa adivinhar se ele baterá a bola com a perna direita ou esquerda, com a face externa ou interna do pé, e até com a ponta da chuteira, lance julgado menos seguro e elegante, mas que numa emergência resolve. Gritava-se no interior paulista: "Chuta de bico que o jogo é de taça!".
Com que ficamos então? Com a casualidade, os gols imponderáveis, ou com a causalidade, os gols resultados de superioridades reais? Em meu modo de entender, com as duas, segundo as circunstâncias. A primeira tem uma interferência direta e momentânea. Se as partidas durassem apenas 20 minutos, o acaso poderia ser o fator decisivo. É o que sucedia, antigamente, no Torneio Início, que abria o campeonato paulista e no qual também valia, para desempatar, a quantidade de escanteios obtidos. Os times pequenos possuíam então boas chances de vencer os grandes. E é o que ainda hoje acontece nas decisões através da cobrança de penalidades máximas. Oferece-se a cada competidor o mesmo número de oportunidades de gol. Fica com o título quem é mais feliz, ou mais senhor de seus nervos, nessa prova derradeira e definitiva. Muitos protestam, não aceitam tal critério, mas a verdade é que ela não foge ao espírito do jogo, nunca de todo ausente do futebol. Já nas partidas de 90 minutos ganham, pelo menos como regra estatística, as equipes de melhor técnica, ou mais bem preparadas física e espiritualmente.
Conclusões semelhantes, relativas ao tempo de disputa, aplicam-se à séries de partidas. Nos torneios curtos, como a Copa do Mundo, que, passada a fase inicial, recorrem a jogos do tipo mata ou morre, pode não vencer o país que mais se destacou. Todos se lembram, em Copas do Mundo e ocasiões diversas, de casos como o do Brasil, Hungria e Holanda. Nos campeonatos longos, ao contrário, de turno e returno, decidido por pontos perdidos (ou ganhos, tanto faz), triunfam, com raríssimas exceções, os times de maior regularidade e melhor campanha.
Não se infira, do que venho dizendo, que eu não creia em treinadores. Penso, como todo mundo, que nas atividades humanas sempre tem de haver uma direção superior e unificadora. Este é mesmo o papel que cabe ao técnico: diminuir, e se possível extinguir, a parte do acaso. Acho, porém, e talvez não esteja só, que o treinador, assim como emite, também recebe sugestões, conscientes e inconscientes, do grupo em que atua. Como esquecer, por exemplo, o presidente do clube, pessoa que o escolheu para o cargo, ou o chefe da delegação, em se tratando de seleções? Quando o Brasil venceu pela primeira vez uma Copa do Mundo, em 1958, o sucesso foi atribuído, com razão quero crer, muito mais a Paulo Machado de Carvalho, como passou a denominar-se o Estádio do Pacaembu, do que a Vicente Feola, treinador de carreira não mais do que mediana.
Não se deve minimizar, por outro lado, a contribuição dos jogadores, os únicos que estão dentro do campo nos 90 minutos regulamentares. Estou, a este respeito, menos com alguns comentaristas do momento, que parecem acreditar que as vitórias são conseguidas nos vestiários, através de fórmulas secretas, e mais com a memória coletiva. Poucos recordam o nome do treinador do Santos Futebol Clube, em sua época mais gloriosa, porém ninguém se esquece de Pelé, acompanhado de companheiros como Gilmar, Mauro, Zito, Coutinho e Pepe.
Já é tempo de passar ao que mais interessa. Dando como certo que o fortuito existe no futebol, conferindo-lhe a graça nervosa do jogo, quais seriam, apesar disso, as perspectivas nacionais para a próxima Copa? Que o Brasil é um dos favoritos, se não o favorito absoluto, é fato comprovado pelas cotações das bolsas inglesas. Afinal, somos o único candidato ao título de pentacampeão. Quanto a mim, em particular, vejo-me como um torcedor, empenhado emocionalmente como os outros, mas que tenta não ser fanático a ponto de negar a realidade.
O que me preocupa, no momento em que escrevo, vésperas da partida da seleção para a França, é a mediocridade das suas últimas partidas. Não me refiro aos resultados, bons ou razoáveis -a derrota para os argentinos, em nosso campo, sendo compensada pela vitória sobre os alemães, no campo deles- e, sim, ao desempenho revelado em campo, muito abaixo, individual e coletivamente, do que se presencia todos os dias nos campeonatos estaduais.
Como vou sacar sobre o futuro, sem saber o que nos está reservado -glória ou infortúnio-, me limitarei a tecer algumas considerações gerais. Quando comecei a frequentar os estádios, adquiria-se o jogo de conjunto pela passagem do tempo. Os quadros mantinham-se estáveis e os selecionados dispunham de meses de treinamento (penso na Copa de 1938, a primeira em que nos preparamos de forma adequada, sob a boa orientação de Ademar Pimenta). Desse modo, cada jogador ficava conhecendo na prática, por intermédio de inúmeros jogos, as qualidades e os defeitos de seus companheiros, suas predileções e até mesmo os seus cacoetes pessoais. Agora, toda essa imensa tarefa recai sobre os ombros do técnico, que faz questão de assumir toda responsabilidade, como se fosse o princípio e o fim do futebol. É ele que, valendo-se da palavra e de umas poucas partidas dispersas através dos anos, define o lugar e a função dos jogadores: goleiro, zagueiros, laterais (ou alas), meio-campistas e atacantes. Estes, por sinal, foram reduzidos de três a dois. Para justificar esta qualificação -apenas eles se declaram atacantes- quase não saem das imediações do gol adversário, naqueles dez metros quadrados que Pelé atribuiu a Romário, esperando que a bola chegue a seus pés.
São bons dribladores, excelentes finalizadores, calmos, precisos em seus movimentos, mas que dependem do apoio de quem permanece atrás. Foi assim que se desenvolveu a teoria do meio-de-campo, das pouco imperantes no Brasil de hoje. Segundo esse ponto de vista, defendido por treinadores e comentaristas, decide-se o jogo menos dentro das duas grandes áreas, no choque final, do que no extenso terreno que se estende entre elas. Com que não concordo por inteiro. Não há dúvida de que a bola, indo e vindo de uma extremidade a outra, passa a todo momento por sobre a linha divisória do campo. Mas daí não se deduz, em minha opinião, que tudo de importância aconteça longe dos gols. Marca-se a vitória, de resto, não pelo número de oportunidades criadas, mas de lances aproveitados. O reforço sistemático do meio-do-campo, feito obviamente pelos dois times, resulta, como já se verificou, no crescimento de empates parcos até em possibilidades de gol. Houve tantos zero a zero que se tornou necessário alterar a contagem dos torneios, valendo três pontos a vitória, mesmo se por magra diferença, em vez dos dois tradicionais. Foi o único meio de combater a praga dos empates, que só alegram as torcidas quando os gols são numerosos.
Que consequências tirar destas sugestões, se forem verdadeiras? Certamente não a de voltar ao passado, que, reencontrado, nunca se revela o mesmo. Pode-se talvez estabelecer uma distinção mais nítida, nas palavras e no pensamento, entre os meio-campistas tendentes ao ataque, sabendo armar e concluir, a exemplo dos bons meias de antigamente, e os volantes propriamente ditos, que, por vocação e formação, preferem os desarmes. Colocar todos eles na mesma categoria verbal, como se fossem idênticos, origina um equívoco linguístico que repercute sobre as decisões tomadas a respeito da realidade. Parece que a convocação, realizada na última hora, do par formado por Giovanni e Rivaldo, de boa atuação lado a lado na Espanha, corresponde a alguma coisa no sentido que estamos apontando. Jogam no meio-de-campo, se se quiser dar esse nome, mas são, potencialmente, no meu entender, atacantes. Outra medida em igual direção afigura-se para mim ser a invenção do tal misterioso nš 1, cuja função exata Zagallo nunca determina -nem poderia determinar sem dizer onde estariam os outros números, a partir do nš 2.
Diria mais: acreditar que o esquema tático adotado pelo treinador, delimitando a área de atuação de cada jogador, basta para que eles enfrentem com sucesso todas as situações no transcorrer do jogo, é não perceber, ou perceber mal, que a natureza do futebol é a dinâmica, não estática. Saber, por exemplo, que A, B, C marcarão Z, Y, X, pouco diz sobre o que de fato sucederá durante os 90 minutos de partida, porque também no futebol um dia é da caça, o outro do caçador. Se sobrevierem gols não previstos (e os do adversário nunca o são), não é unicamente porque houve falhas no cumprimento das ordens recebidas no vestiário, como alegam os técnicos -foi um descuido da retaguarda-, mas, muitas vezes, porque os adversários deslocaram-se, apareceram livres onde em teoria não deveriam estar. Em suma, o trabalho do técnico, por louvável que seja, não substitui o dos jogadores. Nenhuma partida é decidida antes da hora e nada se compara ao poder de fogo da improvisação. É fácil imaginar a surpresa que foi a primeira bicicleta executada por Leônidas ou, mais remotamente, o primeiro passe endereçado ao goleiro. De vez em quando, de um escanteio, sai um gol. Mas somente acreditarei que se trata de uma jogada ensaiada se o fato me for comunicado antes, não depois. "Fulano vai centrar no primeiro pau, o zagueiro direito Beltrano vai vir de trás, subir e colocar de cabeça a bola no canto direito baixo." Vejo esse lance desde menino, porém não descrito por antecipação.
Espero ter deixado claro que o meu intento não é diminuir o papel do técnico e, sim, reivindicar a contribuição dos que efetivamente entram em campo. Lembro-me da Copa do Mundo de 1970, a última em que vencemos os outros e convencemos a nós mesmos. Falava-se que Tostão e Pelé não podiam ser escalados no mesmo time por ocuparem posições iguais. O mesmo se aplicaria a Gerson e Rivelino, ambos canhotos e de chute forte. Pois acabaram todos unidos e triunfantes por uma simples razão, não propriamente tática ou estratégica: dominavam com perfeição a bola e tinham ótima visão de conjunto. Tostão, no belo livro que escreveu e leva o seu nome, contou que o começo do entendimento deu-se entre os jogadores, antes mesmo da Copa: "Fui escalado para uma partida amistosa na Suécia, ao lado de Gerson e Pelé. Fui muito bem, mas já existia o chavão de que não poderia jogar com Pelé. Tinha o hábito de jogar de um toque, estava no início errando muitos passes, e aí Gerson com sua inteligência chegou perto e disse: "No lugar de um toque, jogue com dois toques para dar tempo de eu chegar na frente'. Assim fiz, e ali nascia o trio Gerson-Pelé-Tostão, que brilharia para valer em 1970".
Moral da história? Nunca desdenhe um bom treinador, sobretudo se conduzir à vitória. Mas não esqueça que pode haver no campo de futebol outras inteligências que não a dele. Quanto aos atacantes de 1970, um já foi ministro, Pelé, e três são comentaristas de futebol: Tostão, Rivelino e Gerson.
Post-Scriptum (para Tostão) - Jamais se jogou conforme a escalação dada pelos jornais: 1-2-3-5. Na prática, pelo menos desde 1930, era um goleiro (a única coisa que não muda), quatro zagueiros (dois no centro, dois nas laterais), três meios-de-campo (um centro médio, dois meias), três atacantes (o centroavante, os dois pontas). Os meias podiam avançar e os pontas recuar. O esquema funcionava às vezes bem, às vezes mal, como hoje.


Decio de Almeida Prado é historiador e crítico de teatro. Foi um dos fundadores da revista "Clima", nos anos 40, com Antonio Candido e Paulo Emilio Salles Gomes. É autor, entre outros, de "Seres, Coisas, Lugares - Do Teatro ao Futebol" (Companhia das Letras) e "Exercício Findo" (Perspectiva).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.