São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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HISTÓRIA
Ciência do indivíduo

free-lance para a Folha

Reconhecido como o maior nome da história oral, Alessandro Portelli, professor de literatura norte-americana da Universidade de Roma La Sapienza, diz que a narrativa deve ser considerada como documento histórico.
Para Portelli, é no diálogo construído entre o narrador -como ele gosta de chamar o entrevistado- e o oralista que reside a diferença da história oral, segundo ele, um campo de encontro interdisciplinar.
O oralista italiano será uma das grandes atrações da conferência, na qual falará duas vezes. No dia 15, participa de painel sobre os rumos da história oral e, no dia 18, da sessão de encerramento.
Leia a seguir entrevista concedida por e-mail à Folha.

Folha - Qual é a diferença entre uma entrevista de história oral em relação a entrevistas de outras áreas, como antropologia, sociologia e jornalismo?
Alessandro Portelli -
Penso que a diferença mais importante está em que a entrevista em história oral remete ao passado e portanto sempre inclui um elemento narrativo, mesmo quando se afasta de uma história mais linear. Em segundo lugar, enquanto a antropologia e a sociologia estão preocupadas sobretudo com estruturas culturais, e portanto com o que é compartilhado entre o entrevistado e seu grupo social, a história oral é, num sentido mais amplo, uma ciência do indivíduo, na qual contextos socioculturais interagem com a subjetividade individual.
Como consequência, a identidade do entrevistado -ou narrador, como gosto de chamá-lo- é mais importante na história oral em comparação com outras práticas de trabalho de campo. Sempre que podemos, nós oralistas usamos nomes reais.
Folha - O sr. considera a história oral uma nova disciplina ou apenas uma nova técnica?
Portelli -
Não sei dizer. É ao mesmo tempo mais e menos que uma técnica, porque não há métodos simples e objetivos para conduzir uma entrevista ou interpretá-la. Eu a vejo como um tipo de trabalho criativo. Talvez possamos vê-la não como uma disciplina separada, mas como um espaço em que outras disciplinas convergem -história, sociologia, antropologia, folclore, literatura, linguística, jornalismo- e criam algo novo que tem repercussão em todas elas.
Folha - Quando e como o sr. começou a trabalhar com história oral?
Portelli -
Comecei porque queria reconstruir a autonomia e antagonismos da cultura dos trabalhadores na Itália, no final dos anos 60 e início dos 70. Eu comecei a coletar canções e percebia que algumas vezes as histórias que as acompanhavam eram mais interessantes e quase sempre mais imaginativas que as próprias canções. Além disso, meu treinamento baseava-se mais em narrativa do que em música. Então comecei a me concentrar na primeira.
Folha - Como professor de literatura, qual foi a contribuição da história oral no seu campo de estudo?
Portelli -
A minha contribuição é basicamente a de atrair a atenção para a entrevista de história oral como um gênero específico de discurso, criado pelo diálogo entre o historiador e o narrador. Estou interessado na história oral não apenas como uma fonte de informação factual, mas também nos caminhos reveladores por meio dos quais essa informação factual transformava-se em memória e em história contada. As histórias, com os erros, mentiras e lendas, são também fatos históricos e precisam ser analisados como tais.
Folha - Qual é a situação da história oral na Itália e na Europa?
Portelli -
Na Itália, a história oral tem recebido muito mais hostilidade do que atenção nos círculos acadêmicos, embora isso esteja mudando. A história oral italiana também tem uma tradição de envolvimento político. Isso ainda é verdade, embora esteja claro que a situação política está mais difícil porque não existem agora movimentos sociais significativos aos quais nós podemos nos relacionar.
Quanto à Europa, a criação da Associação Internacional de História Oral tem reforçado os contatos entre os acadêmicos. Acho importante mencionar o trabalho de pesquisadores das ciências sociais como Paul Thompson, Daniel Bertaux e Selama Leydersdorff, muito ativos na criação de conexões internacionais, especialmente com o Leste europeu.
Folha - Na sua opinião, quais são as peculiaridades da história oral brasileira?
Portelli -
Do que tenho sido capaz de acompanhar, me parece que o Brasil combina uma grande sofisticação metodológica com uma aproximação a culturas orais ativas, tanto urbanas quanto rurais, e com uma sensibilidade para movimentos sociais. Atualmente, a história oral brasileira está entre as mais avançadas do mundo.
Folha - Quais são os temas gerais da história oral que o sr. espera que sejam discutidos no Rio?
Portelli -
Por um lado, a questão de qual é o lugar do discurso oral dentro do sistema mundial de comunicações e qual é a função da memória numa sociedade de informação estreitamente identificada apenas com o momento presente ou o futuro imediato.
Também estou muito interessado no painel sobre o trauma da memória nos campos de extermínio alemães e nos campos de concentração soviéticos. Neste momento, estou estudando a memória dos crimes de guerra nazistas na Itália. Penso que a memória de crimes contra a liberdade e a humanidade não deve ser apagada.
Folha - Como é o seu novo projeto sobre o massacre nazista?
Portelli -
O projeto é uma reconstrução da memória do massacre das Fossas Ardeatinas, em março de 1944, no qual os nazistas mataram 335 reféns, em retaliação a um ataque da resistência realizado no dia anterior.
Eu vejo esse evento como uma síntese da história de Roma no século 20. Pessoas de todos os segmentos -generais, vendedores de rua, trabalhadores, advogados, um padre, comerciantes...- foram executados de uma maneira indescritivelmente brutal. Eles pertenciam a muitas variantes do antifascismo: comunistas, liberais, conservadores. Eram católicos, judeus e ateus.
A história de como os sobreviventes lutaram para manter sua memória e fazer sua vida são uma metáfora da complexa memória italiana a respeito da resistência, do fascismo e da guerra.



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