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HISTÓRIA
Ciência do indivíduo
free-lance para a Folha
Reconhecido como o maior nome da história oral, Alessandro
Portelli, professor de literatura
norte-americana da Universidade
de Roma La Sapienza, diz que a
narrativa deve ser considerada como documento histórico.
Para Portelli, é no diálogo construído entre o narrador -como
ele gosta de chamar o entrevistado- e o oralista que reside a diferença da história oral, segundo
ele, um campo de encontro interdisciplinar.
O oralista italiano será uma das
grandes atrações da conferência,
na qual falará duas vezes. No dia
15, participa de painel sobre os rumos da história oral e, no dia 18,
da sessão de encerramento.
Leia a seguir entrevista concedida por e-mail à Folha.
Folha - Qual é a diferença entre
uma entrevista de história oral em
relação a entrevistas de outras
áreas, como antropologia, sociologia e jornalismo?
Alessandro Portelli - Penso que
a diferença mais importante está
em que a entrevista em história
oral remete ao passado e portanto
sempre inclui um elemento narrativo, mesmo quando se afasta de
uma história mais linear. Em segundo lugar, enquanto a antropologia e a sociologia estão preocupadas sobretudo com estruturas
culturais, e portanto com o que é
compartilhado entre o entrevistado e seu grupo social, a história
oral é, num sentido mais amplo,
uma ciência do indivíduo, na qual
contextos socioculturais interagem com a subjetividade individual.
Como consequência, a identidade do entrevistado -ou narrador,
como gosto de chamá-lo- é mais
importante na história oral em
comparação com outras práticas
de trabalho de campo. Sempre que
podemos, nós oralistas usamos
nomes reais.
Folha - O sr. considera a história
oral uma nova disciplina ou apenas uma nova técnica?
Portelli - Não sei dizer. É ao
mesmo tempo mais e menos que
uma técnica, porque não há métodos simples e objetivos para conduzir uma entrevista ou interpretá-la. Eu a vejo como um tipo de
trabalho criativo. Talvez possamos
vê-la não como uma disciplina separada, mas como um espaço em
que outras disciplinas convergem
-história, sociologia, antropologia, folclore, literatura, linguística,
jornalismo- e criam algo novo
que tem repercussão em todas
elas.
Folha - Quando e como o sr. começou a trabalhar com história
oral?
Portelli - Comecei porque queria reconstruir a autonomia e antagonismos da cultura dos trabalhadores na Itália, no final dos
anos 60 e início dos 70. Eu comecei
a coletar canções e percebia que algumas vezes as histórias que as
acompanhavam eram mais interessantes e quase sempre mais
imaginativas que as próprias canções. Além disso, meu treinamento baseava-se mais em narrativa do
que em música. Então comecei a
me concentrar na primeira.
Folha - Como professor de literatura, qual foi a contribuição da história oral no seu campo de estudo?
Portelli - A minha contribuição
é basicamente a de atrair a atenção
para a entrevista de história oral
como um gênero específico de discurso, criado pelo diálogo entre o
historiador e o narrador. Estou interessado na história oral não apenas como uma fonte de informação factual, mas também nos caminhos reveladores por meio dos
quais essa informação factual
transformava-se em memória e
em história contada. As histórias,
com os erros, mentiras e lendas,
são também fatos históricos e precisam ser analisados como tais.
Folha - Qual é a situação da história oral na Itália e na Europa?
Portelli - Na Itália, a história
oral tem recebido muito mais hostilidade do que atenção nos círculos acadêmicos, embora isso esteja
mudando. A história oral italiana
também tem uma tradição de envolvimento político. Isso ainda é
verdade, embora esteja claro que a
situação política está mais difícil
porque não existem agora movimentos sociais significativos aos
quais nós podemos nos relacionar.
Quanto à Europa, a criação da
Associação Internacional de História Oral tem reforçado os contatos entre os acadêmicos. Acho importante mencionar o trabalho de
pesquisadores das ciências sociais
como Paul Thompson, Daniel
Bertaux e Selama Leydersdorff,
muito ativos na criação de conexões internacionais, especialmente com o Leste europeu.
Folha - Na sua opinião, quais são
as peculiaridades da história oral
brasileira?
Portelli - Do que tenho sido capaz de acompanhar, me parece
que o Brasil combina uma grande
sofisticação metodológica com
uma aproximação a culturas orais
ativas, tanto urbanas quanto rurais, e com uma sensibilidade para
movimentos sociais. Atualmente,
a história oral brasileira está entre
as mais avançadas do mundo.
Folha - Quais são os temas gerais
da história oral que o sr. espera
que sejam discutidos no Rio?
Portelli - Por um lado, a questão de qual é o lugar do discurso
oral dentro do sistema mundial de
comunicações e qual é a função da
memória numa sociedade de informação estreitamente identificada apenas com o momento presente ou o futuro imediato.
Também estou muito interessado no painel sobre o trauma da
memória nos campos de extermínio alemães e nos campos de concentração soviéticos. Neste momento, estou estudando a memória dos crimes de guerra nazistas
na Itália. Penso que a memória de
crimes contra a liberdade e a humanidade não deve ser apagada.
Folha - Como é o seu novo projeto sobre o massacre nazista?
Portelli - O projeto é uma reconstrução da memória do massacre das Fossas Ardeatinas, em
março de 1944, no qual os nazistas
mataram 335 reféns, em retaliação
a um ataque da resistência realizado no dia anterior.
Eu vejo esse evento como uma
síntese da história de Roma no século 20. Pessoas de todos os segmentos -generais, vendedores de
rua, trabalhadores, advogados,
um padre, comerciantes...- foram executados de uma maneira
indescritivelmente brutal. Eles
pertenciam a muitas variantes do
antifascismo: comunistas, liberais,
conservadores. Eram católicos, judeus e ateus.
A história de como os sobreviventes lutaram para manter sua
memória e fazer sua vida são uma
metáfora da complexa memória
italiana a respeito da resistência,
do fascismo e da guerra.
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