São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice LIVROS O elogio desesperado da vida
MARCELO COELHO da Equipe de Articulistas Qualquer pessoa que nos últimos tempos tenha visto Darcy Ribeiro na televisão -no "Roda Viva" da TV Cultura, no "Jô Onze e Meia"- terá ficado refém da simpatia, do envolvimento, do prazer que o antropólogo e senador pedetista tinha com relação à vida. Ele sabia -e nós sabíamos- que estava sofrendo de um câncer fatal. Esse câncer deu a Darcy Ribeiro um aumento de vitalidade: publicou vários livros, disseminou ensinamentos, mostrava-se mais entusiasta e missionário do que nunca. Darcy Ribeiro teve sempre uma religião, o Brasil. Seu brizolismo era um otimismo. Criador da Universidade de Brasília, chefe da Casa Civil de João Goulart, idealizador dos Cieps e do Sambódromo, é como se o país fosse o seu quarto de brinquedos, ilimitado, inconsequente e puro. Tudo era possível, tudo dependia de sua genialidade para dar certo, e dava -na cabeça dele-, pois ele estava convencido de ser um gênio. Se ele estivesse iludido a seu próprio respeito, qual o problema? Melhor ser um falso messias do que um falso realista. Melhor ser bufão do que intelectual ranheta e crítico. Sempre gostei de ver Brizola na TV. Nas pausas que ele faz para a câmera, nas convicções com que ele franze o rosto, no sublinhar gaúcho do sotaque há todo um poema, o da convicção sincera -que não é nem sincera nem convicta. Ele sabe estar mentindo, mas está a tal ponto encantado com a própria mentira que suas mentiras parecem verdadeiras. Contra a farsa brizolista, Darcy Ribeiro exercia uma convicção mineira: era a inocência teatral, a criancice esperta que se punha em cena. Mas não era mortal, fúnebre, barroca e conciliatória como a de Tancredo: era o mineirismo eufórico, quase baiano, voltado menos para o escândalo do que para a linguagem do escândalo, para a esperteza do escândalo. O que dizer deste livro de poemas que Darcy Ribeiro publica postumamente? São poemas muito ruins. Desconfio, entretanto, que o julgamento literário não cabe aqui. Darcy Ribeiro sabia-se condenado pelo câncer, e publicou vários livros que lhe serviriam de legado intelectual. Lendo seus poemas, percebemos a cada página o medo de morrer, o elogio da vida. Menos do que poemas, são cartas desesperadas de alguém que ainda ferve de desejo e esperança enquanto vê o corpo fraco, traidor, infiel, enganoso. Este livro é mais um documento humano do que um documento literário. Sentimos a dor de Darcy Ribeiro quando ele diz: "Vocês todos vivendo, seu filhos da puta. Só eu não". Ou: "Hoje fiz 70 anos. Quisera 700". Um homem tão apaixonado pela vida, tão cego no seu amor à vida, não poderia deixar de expor-se, tragicamente, diante de diagnósticos pessimistas do ponto de vista médico. Tudo isso emociona bastante. Mas não é poético. Darcy Ribeiro fazia da jactância e do machismo uma razão de viver. Assim, seus escritos descambam na pura pornografia: "Ficar lá dentro abismado, apertado./ Sentindo o grelo tremer de gozo". Ou, vendo a amante: "Nua saltar, puta devassa./ Depois aplacada, cair lassa". E, no mesmo poema: "Boca sorvedora de jorros de porra". Toda essa violência vocabular parece ser sintoma de uma raiva amorosa, dirigida contra a mulher amada, em primeira instância, e contra a morte, em segunda instância; contra a morte do brizolismo, em terceira instância; contra a morte do Brasil -um Brasil lascivo e livre-, finalmente. É como se, querendo inconformadamente viver, Darcy Ribeiro transformasse seu sucesso com as mulheres numa espécie de estupro contra a morte. O desespero destes poemas é patente, assim como o enorme amor à vida que era a marca de Darcy. Podemos respeitá-lo nessa vitalidade extrema, criativa, genial. Mas ele próprio se desrespeitava, na sua loucura feroz e otimista. Se estivesse vivo, seria ridículo. É mais do que isso, sabendo-se mortal: seus poemas são um testemunho pungente, mineiro e evasivo. Comovem, a despeito do poeta, que não há. O que há é essa sensualidade extrema, e ao mesmo tempo agonizante, que se libera na hora de morrer. Poemas péssimos, grande homem. A OBRA Eros e Tanatos - Darcy Ribeiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 176 págs. Preço não definido. POEMA AMOR
Quero um amor alucinado, depravado, Amor inteiro, enlaçados de corpo-a-corpo,Amor sem reserva, que a tudo se entrega, lancinante. |
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