São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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LIVROS
O elogio desesperado da vida


Eros e Tanatos" traz poemas póstumos do antropólogo Darcy Ribeiro, morto em 1997


MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Qualquer pessoa que nos últimos tempos tenha visto Darcy Ribeiro na televisão -no "Roda Viva" da TV Cultura, no "Jô Onze e Meia"- terá ficado refém da simpatia, do envolvimento, do prazer que o antropólogo e senador pedetista tinha com relação à vida.
Ele sabia -e nós sabíamos- que estava sofrendo de um câncer fatal. Esse câncer deu a Darcy Ribeiro um aumento de vitalidade: publicou vários livros, disseminou ensinamentos, mostrava-se mais entusiasta e missionário do que nunca.
Darcy Ribeiro teve sempre uma religião, o Brasil. Seu brizolismo era um otimismo. Criador da Universidade de Brasília, chefe da Casa Civil de João Goulart, idealizador dos Cieps e do Sambódromo, é como se o país fosse o seu quarto de brinquedos, ilimitado, inconsequente e puro. Tudo era possível, tudo dependia de sua genialidade para dar certo, e dava -na cabeça dele-, pois ele estava convencido de ser um gênio.
Se ele estivesse iludido a seu próprio respeito, qual o problema? Melhor ser um falso messias do que um falso realista. Melhor ser bufão do que intelectual ranheta e crítico.
Sempre gostei de ver Brizola na TV. Nas pausas que ele faz para a câmera, nas convicções com que ele franze o rosto, no sublinhar gaúcho do sotaque há todo um poema, o da convicção sincera -que não é nem sincera nem convicta. Ele sabe estar mentindo, mas está a tal ponto encantado com a própria mentira que suas mentiras parecem verdadeiras.
Contra a farsa brizolista, Darcy Ribeiro exercia uma convicção mineira: era a inocência teatral, a criancice esperta que se punha em cena. Mas não era mortal, fúnebre, barroca e conciliatória como a de Tancredo: era o mineirismo eufórico, quase baiano, voltado menos para o escândalo do que para a linguagem do escândalo, para a esperteza do escândalo.
O que dizer deste livro de poemas que Darcy Ribeiro publica postumamente? São poemas muito ruins. Desconfio, entretanto, que o julgamento literário não cabe aqui. Darcy Ribeiro sabia-se condenado pelo câncer, e publicou vários livros que lhe serviriam de legado intelectual. Lendo seus poemas, percebemos a cada página o medo de morrer, o elogio da vida.
Menos do que poemas, são cartas desesperadas de alguém que ainda ferve de desejo e esperança enquanto vê o corpo fraco, traidor, infiel, enganoso. Este livro é mais um documento humano do que um documento literário. Sentimos a dor de Darcy Ribeiro quando ele diz: "Vocês todos vivendo, seu filhos da puta. Só eu não". Ou: "Hoje fiz 70 anos. Quisera 700". Um homem tão apaixonado pela vida, tão cego no seu amor à vida, não poderia deixar de expor-se, tragicamente, diante de diagnósticos pessimistas do ponto de vista médico.
Tudo isso emociona bastante. Mas não é poético. Darcy Ribeiro fazia da jactância e do machismo uma razão de viver. Assim, seus escritos descambam na pura pornografia: "Ficar lá dentro abismado, apertado./ Sentindo o grelo tremer de gozo". Ou, vendo a amante: "Nua saltar, puta devassa./ Depois aplacada, cair lassa". E, no mesmo poema: "Boca sorvedora de jorros de porra".
Toda essa violência vocabular parece ser sintoma de uma raiva amorosa, dirigida contra a mulher amada, em primeira instância, e contra a morte, em segunda instância; contra a morte do brizolismo, em terceira instância; contra a morte do Brasil -um Brasil lascivo e livre-, finalmente. É como se, querendo inconformadamente viver, Darcy Ribeiro transformasse seu sucesso com as mulheres numa espécie de estupro contra a morte.
O desespero destes poemas é patente, assim como o enorme amor à vida que era a marca de Darcy. Podemos respeitá-lo nessa vitalidade extrema, criativa, genial. Mas ele próprio se desrespeitava, na sua loucura feroz e otimista. Se estivesse vivo, seria ridículo. É mais do que isso, sabendo-se mortal: seus poemas são um testemunho pungente, mineiro e evasivo. Comovem, a despeito do poeta, que não há. O que há é essa sensualidade extrema, e ao mesmo tempo agonizante, que se libera na hora de morrer. Poemas péssimos, grande homem.

A OBRA
Eros e Tanatos - Darcy Ribeiro. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 176 págs. Preço não definido.

POEMA

AMOR

Quero um amor alucinado, depravado, Amor inteiro, enlaçados de corpo-a-corpo,Amor sem reserva, que a tudo se entrega, lancinante.

Quero você assim, abrasada, pedindo gozo,
Eriçada, ronronando feito gata, tesuda.
Seus seios túmidos, me furando o peito.

Quero você, pentelho contra pentelho, roçantes.
Carne encravada na carne. Bocas coladas,
Babadas, meladas, sangrando sufocadas.

Quero amar você tão bichalmente que urremos.
Eu, penetrando rasgando. Você me comendo furiosa.
Nós dois fundidos, unidos, soldados.

Você e eu, nós dois, sós, neste mundo dos outros.
DARCY RIBEIRO




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