São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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Um lirismo requintado

VIVIANA BOSI CONCAGH
especial para a Folha

Apresentar uma antologia de 13 poetas brasileiros recentes é aventura temerária. Cada um deles vem forjando a própria linguagem e percorre um caminho particular, com cruzamentos variados. Se alguns estão começando a desengavetar, outros já publicaram um ou mais livros. Uns compõem letras de música, outros ainda fazem traduções, editam revistas, colaboram em jornais: enfim, não é possível classificar completamente sob o termo "emergente" o grau heterogêneo de produção e de maturidade de cada um.
Organizada pelo estreante Ricardo Corona e em parte editada em Curitiba, reúne-se à volta de um núcleo de poetas do Paraná, pelo qual comparecem Maurício Arruda Mendonça, Rodrigo Garcia Lopes, Marcos Prado (que morreu jovem, em 1996), Neuza Pinheiro, o próprio Ricardo Corona, Jacques Mario Brand e Alexandre Horner. De São Paulo, associa-se Ademir Assunção, que mantém vínculos de afinidade com o grupo. Radicados no Rio, participam alguns poetas bastante ativos em sua contribuição para a poesia hoje: Antônio Cícero, Carlito Azevedo, Cláudia Roquette-Pinto, Júlio Castañon Guimarães, Adriano Espínola.
O volume é bilíngue (português-inglês) e conta com introdução de Antonio Risério e posfácio de Charles A. Perrone (professor norte-americano de literatura luso-brasileira e de MPB, além de tradutor de poesia). Considerando-se a raridade das publicações que cobrem a poesia brasileira atual, é bem vinda a oportunidade de começar a conhecer o trabalho de diversos poetas, ainda que haja irregularidade na seleção.
A tradução para o inglês, feita pelos próprios autores e por estudiosos de literatura americanos e brasileiros, justifica-se, na origem, por um convite de Lawrence Ferlinghetti, que desejava divulgar a nova poesia brasileira em sua revista "City Lights Review" (explica-nos o organizador em nota introdutória). Entretanto, como nenhum objeto da cultura pode ser lido isoladamente, não podemos deixar de lembrar a semelhança aparente com a antologia "Nothing the Sun Could Not Explain - 20 Contemporary Brazilian Poets" (editada por Michael Palmer, Régis Bonvicino e Nelson Ascher), que saiu há menos de um ano.
A proposta daquele livro diferia desta, pois intentava contemplar tendências diversas da produção poética a partir de meados dos anos 60 e buscava explicitar os critérios de seleção ancorando-se em uma reflexão sobre nossa tradição literária desde o modernismo. Podemos (e devemos) discutir o recorte feito por aquela antologia, mas reconhecemos que houve uma preocupação em abranger diferentes vertentes poéticas e uma demanda de qualidade. Aqui, o nome "Outras Praias/Other Shores" sugere um certo eco e nos faz indagar se haveria um intuito de complementação, a partir de outra geografia poética, com três autores comuns como pontos de intersecção (Carlito Azevedo, Júlio Castañon Guimarães e Cláudia Roquette-Pinto).
Se tentássemos encontrar uma linha de penetração entre as possíveis leituras, poderíamos notar a discussão sobre o contato entre o "real" e a "escritura", ou entre o eu lírico e a (im)possível representação. Cláudia Roquette-Pinto aborda o tema em "Space-Writing", ao referir-se às "circunvoluções do/improviso na moldura/findo o lapso resta/em claro (itinerário de medusas)". Os poemas caminham do apelo visual imediato para a dúvida abstrata, num jogo entre imaginismo e simbolização. "Ignorant Sky" ("Um Céu Que Nada Sabe"), de Antônio Cícero, poderia servir de emblema para essa atitude de questionamento da existência contemporânea, que pesquisa no mundo à volta novas referências de êxtase, entre o eterno e o efêmero, e é um dos motivos centrais dessa poesia, que se resguarda e se entrega enviesada.
Outro território compartilhado é a relação da maioria dos poetas com as literaturas norte-americana e francesa, em especial: um refinamento cosmopolita -marca evidente dos anos 80 e 90- que por vezes lhes confere um ar requintado de exilados na província. Ao mesmo tempo, revelam de novo o íntimo, o existencial, as visões e alumbramentos momentâneos.
Quanto aos procedimentos de construção, a ressonância da dicção estrita de João Cabral assoma em muitos momentos, como no belo "A uma Passante Pós-Baudelairiana", de Carlito Azevedo, que termina em flamenco staccato: "Este tiroteio de silêncios/ esta salva de arrepios". Ou em muitos dos versos precisos de Julio Castañon Guimarães, como em "Exercício de Desenho", quando se refere ao percurso laminado da luz no grafite, que "escava às avessas/ negro sobre negro". Adriano Espínola privilegia a luminosidade do instante contra o fundo espesso da memória: "As dunas espreitam a cidade/ -o bote de areia armado-/ à espera do tempo"; ou: "Com os punhos cerrados de sol/ a luz golpeia/ a praia/ Arde o instante na areia".
A indeterminação das coisas, aliada ao estranhamento do lugar do eu, reponta em Rodrigo Garcia Lopes: "A espuma do sentido se desdobra, onda", ou no poema "Fugaz". A elipse e o corte presidem uma perspectiva mais retraída, própria destes tempos de poucas assertivas. Os versos de Maurício Arruda Mendonça representam bem uma poética e um sentimento de mundo característicos: "A melhor vista/ é da janela/ onde você pode/ ter a possibilidade/ mas não a totalidade".
Uma resenha pode ser um começo de conversa, e passamos a palavra aos leitores, para continuarmos a teia das considerações.


Viviana Bosi Concagh é professora de teoria literária na Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Araraquara.

A OBRA
Outras Praias/Other Shores - Organização de Ricardo Corona. Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, SP, tel. 011/3068-9433). 300 págs. R$ 24,00.



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