São Paulo, domingo, 7 de junho de 1998

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A única democracia do mundo


O jornalista conservador inglês Paul Johnson escreve a história do povo americano


JOÃO BATISTA NATALI
enviado especial a Viena

O historiador e jornalista Paul Johnson, 70, é um dos aríetes mais talentosos e afiados que o pensamento conservador possui na Grã-Bretanha.
Foi editor do "New Statesman", autor de cerca de 40 documentários produzidos pela BBC, um dos ghost-writers de Margareth Thatcher e escreve hoje uma coluna semanal na "Spectator".
Seus 34 livros, alguns deles tijolões caudalosos, já tomaram por tema a história do cristianismo e do judaísmo, Elizabeth 1ª e o papel dos intelectuais no nascimento das sociedades modernas, no início do século 19.
Johnson lançou este ano, com 1.088 páginas, "A History of the American People". Com sua erudição sedutora, pondera sobre a condução de episódios por vezes traumáticos que permitiram ao povo norte-americano construir seu modelo de democracia.
Leia a seguir a entrevista que ele concedeu à Folha, em Viena, onde foi um dos participantes da conferência "Capitalismo e Cultura", promovida pelo Project Syndicate e pelo Instituto de Ciências Humanas da Áustria (leia nesta página).

Folha - Em meio à admiração que seu livro demonstra pelos EUA, há algum tópico na história recente ou remota daquele país que lhe desperte uma discordância moral profunda?
Paul Johnson -
Os americanos cometem erros e criam problemas para si mesmos. É o caso sobretudo da escravidão. Nos Estados sulistas os escravos eram de forma geral tratados como se fossem gado, mercadoria. Em muitos Estados era ilegal alfabetizar os escravos ou lhes dar noções de cristianismo. Havia algumas exceções, como Jefferson Davis, que foi presidente dos Estados confederados durante a Guerra Civil. Ele era humano com seus escravos e não compreendia as acusações de inumanidade lançadas contra a escravidão como um todo. A escravidão era desumana. O Sul foi derrotado, e a escravidão abolida. Isso prova minha tese, segundo a qual os norte-americanos conseguem reconhecer que os problemas existem e se mobilizam em seguida para resolvê-los.
Folha - Essa vitalidade para a autocorreção também vale para problemas atuais?
Johnson -
Com certeza. Um dos grandes problemas que o país enfrenta tem sido a criminalidade. Novos métodos de combate ao crime estão surtindo efeitos. Há a experiência de Nova York - baseada no princípio da "tolerância zero"-, conduzida por um chefe de polícia e um prefeito competentes. A receita tem sido copiada por outras cidades norte-americanas.
Folha - Qual a raiz dessa maleabilidade: uma relação moral entre os cidadãos ou um entendimento em torno da elaboração de leis que em seguida se tornam especialmente consensuais?
Johnson -
Creio que isso ocorre por três fatores. O primeiro deles: os EUA são uma democracia genuína, e às vezes suspeito tratar-se da única democracia em todo o mundo. As pessoas falam e suas vozes são ouvidas. O segundo fator: eles possuem um profundo respeito pela lei. O desrespeito à lei sempre resulta em punições. É mais ou menos como num filme de faroeste, em que os bandidos aparentemente comandam a cidade, mas quem acaba no final levando a melhor são os justos, os bons. O terceiro: os norte-americanos cultivam uma crença utópica segundo a qual são desnecessárias coisas como o erro, a loucura, a fraqueza. Eles não possuem essa aceitação filosófica do que é negativo. Acreditam, ao contrário, que isso deve ser eliminado. A junção desses três fatores constitui um combustível poderoso.
Folha - Mas quando os valores individuais se opõem ao próprio princípio da democracia?
Johnson -
Isso também é verdade. Há atualmente nos Estados Unidos toda espécie de embates. Um deles diz respeito à maneira pela qual os grupos de pressão atuam dentro do sistema democrático. O Congresso se tornou adaptável às políticas desses grupos, que são bastante fortes e atuam contra valores individuais. Vejamos o caso do aborto. Escrevi no meu livro que se trata de uma grande questão moral. Acredito que o aborto voltará a ser proibido, da mesma maneira como a escravidão no passado já o foi. Matar uma criança antes de seu nascimento é algo pavoroso, e os norte-americanos o reconhecerão em breve, por mais que grupos de pressão favoráveis ao aborto continuem agindo com eficiência.
Outro embate atual está na maneira pela qual o Judiciário, sobretudo a Corte Suprema, invade a área de competência institucional do Legislativo. Cito novamente o caso do aborto. Se o Legislativo de determinado Estado decidir que aborto é crime, essa decisão legislativa será tornada sem efeito por trombar com uma decisão da Corte Suprema. Nessa corte, os juízes tendem a ser em sua maioria liberais, enquanto nos legislativos os deputados e senadores tendem a ser conservadores. É algo que os britânicos não compreendem, já que no Reino Unido o Parlamento tem todos os poderes.
Folha - O sr. usou a expressão "matar uma criança antes de seu nascimento". Por que o sr. não se opõe também à pena de morte?
Johnson -
Eu acredito que a pena de morte é necessária em casos extremos. É uma crença que os liberais não compartilham. Minha mulher, por exemplo, se opõe veementemente à execução de um criminoso. Este é um assunto sobre o qual, aliás, não conversamos. O passo extraordinário que consiste em tirar legalmente a vida de uma pessoa é um sinal e um símbolo de que se leva a lei muito a sério. Se você não tem a coragem de tomar uma decisão como essa, ninguém acreditará que você encara o crime com seriedade. É a razão pela qual os Estados liberais tendem a registrar taxas bastante elevadas de criminalidade.
Folha - Tramita no Legislativo de um dos Estados norte-americanos projeto que torna compulsória a castração de condenados por violência sexual. Não há nisso uma comprometedora analogia com o fundamentalismo islâmico?
Johnson -
Eu me oponho a isso. Acredito que a mutilação contrarie a doutrina cristã. Há uma interpretação equivocada da Bíblia por parte dos que defendem essa medida. De qualquer modo, acredito que a palavra fundamentalismo é utilizada indevidamente. Essa palavra é usada pela esquerda para desvalorizar um cristão comum. Os EUA são um país essencialmente cristão. É a esquerda que é não-americana.
Folha - Os EUA atribuíram a implícita dimensão de imoralidade ao ato de fumar, e provavelmente só por isso uma outra dimensão, a de saúde pública, tornou-se aceitável. O mesmo se esboça contra bebidas alcoólicas. E a sexualidade não convencional está na fila.
Johnson -
O puritanismo existiu nos primórdios dos EUA e retorna de tempos em tempos. A Lei Seca, nos anos 20, foi uma dessas manifestações, que por sua vez já vinha do século 19, com alguns Estados proibindo o consumo de bebidas alcoólicas. Mas ao mesmo tempo essa forma de proibição foi fortemente contestada por aqueles que acreditavam que a Lei Seca só favorecia o crime organizado. Esse ponto de vista prevaleceu. As baterias se voltam agora contra o fumo. Mas há nisso algo de curioso: se não fosse pelo fumo, os EUA não teriam se viabilizado economicamente.
No início do século 17, os agricultores da Virgínia passaram a cultivar o fumo como único produto exportável, e assim capaz de garantir divisas para a importação de bens da Inglaterra. Sem o fumo é provável que a colônia da Virgínia tivesse sido abandonada por seus primeiros colonizadores. É uma ironia. Acredito que a dimensão puritana do combate ao cigarro irá longe demais e a opinião pública se encarregará de operar um recuo. Há sempre nos EUA um conflito entre o puritanismo e aquilo que eu chamo de "elemento empírico inglês" das mentalidades. Cada vez que o puritanismo vai demasiadamente longe, esse elemento empírico acaba prevalecendo. É uma das receitas do sucesso daquele país.
Folha - Mudemos de assunto. O sr. é um grande admirador de João Paulo 2º...
Johnson -
... o maior papa deste século. Que ele tenha vida eterna! No ano passado, no Domingo de Ramos, tive a honra de presentear Sua Santidade com uma tradução polonesa de minha "História do Cristianismo". O sorriso de prazer com que ele recebeu o livro foi comovente.
Folha - Retomemos. O papa esteve em janeiro em Cuba, rompendo com isso o cordão de isolamento internacional em que Fidel Castro se encontrava. O sr. não é um admirador de Fidel. Como entender esse paradoxo?
Johnson - O papa estava absolutamente certo ao fazer essa viagem. O regime de Castro está chegando ao fim. O que se discute agora sigilosamente é uma rota honrosa de fuga do ditador em direção ao exílio. Deve-se evitar de qualquer maneira um banho de sangue. A igreja tem um papel importante nisso.
Folha - No espectro político britânico o sr. já foi trabalhista.
Johnson -
Fui membro por 20 anos do Partido Trabalhista. Mas nunca fui um liberal em questões como pena de morte ou homossexualismo. Quando trabalhista, eu acreditava que aquele partido tinha maiores condições de melhorar a vida das classes trabalhadoras. Mas quem se desempenhou melhor nessa tarefa foi Margareth Thatcher. Temos agora um grande dirigente trabalhista, Tony Blair, que é uma espécie de filho espiritual de Thatcher.
Folha - Quando trabalhista, como o sr. se relacionava com os marxistas?
Johnson -
Nunca fui marxista. E o Partido Trabalhista também nunca o foi. Há pouquíssimos marxistas na Inglaterra. A existência deles contraria a tradição empírica inglesa. Por sua vez, o Partido Comunista foi sempre um grupúsculo insignificante em meu país, contrariamente ao que ocorreu na França ou na Itália.
Folha - Que pensamentos a expressão "pós-modernismo" lhe evoca?
Johnson -
É uma expressão que não significa absolutamente nada. As pessoas a utilizam por pura questão de modismo.
Folha - Como o sr. se posiciona com relação a dois sistemas "fechados em suas completudes", o primeiro de ordem estética, a obra de Richard Wagner, o segundo de ordem científica, a psicanálise?
Johnson -
Estou escrevendo um ensaio sobre Wagner para o meu próximo livro, dedicado aos criadores de novas concepções. Ele foi, como pessoa, alguém terrivelmente condenável. Mas foi também um exemplo de como o bom Deus opera por meio de pessoas horríveis, já que ele foi um gênio na produção da beleza.
Quanto a Freud, eu acredito que ele tenha sido um excelente exemplo de falso cientista. Popper já dizia que o verdadeiro cientista concebe hipóteses e em seguida se indaga se elas podem ou não ser suficientemente comprovadas. Freud, ao contrário, apenas buscou evidências que comprovassem suas hipóteses. Nunca se preocupou com evidências que pudessem negá-las. Era essa, aliás, a maneira como Karl Marx também funcionava.
Folha - A sra. Johnson é uma admiradora de Freud. Não o incomoda estar casado com alguém que o contradiz tão frontalmente?
Johnson -
Estamos casados há 42 anos. É importante que num casal as pessoas estejam em desacordo em algumas coisas. Uma mulher casada não pode se tornar uma pessoa do constante "sim senhor".
Folha - O sr. é um bom pintor amador, não é verdade?
Johnson -
Estou me preparando para uma exposição individual no mês de junho. Não pinto nada de abstrato. Sou muito conservador nisso. Eu odeio Picasso.
Folha - Há algum pintor abstrato que o sr. não odeie?
Johnson -
Esse ódio é especialmente dirigido a Picasso, porque ele foi um homem horrível. Eu sou um colecionador de quadros. Não coleciono nada de pintura abstrata. Mas admito que as pessoas possam colecioná-la.


O jornalista João Batista Natali viajou à Áustria a convite do Instituto de Ciências Humanas e do Project Syndicate.

A OBRA
A History of the American People - Paul Johnson. Harper Collins. 800 págs. US$ 35,00.
O livro pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) ou, pela Internet, na Amazon Books
(http://www.amazon.com).



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