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A única democracia do mundo
O jornalista conservador
inglês Paul Johnson escreve a
história do povo americano
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JOÃO BATISTA NATALI
enviado especial a Viena
O historiador e jornalista Paul
Johnson, 70, é um dos aríetes mais
talentosos e afiados que o pensamento conservador possui na
Grã-Bretanha.
Foi editor do "New Statesman", autor de cerca de 40 documentários produzidos pela BBC,
um dos ghost-writers de Margareth Thatcher e escreve hoje uma
coluna semanal na "Spectator".
Seus 34 livros, alguns deles tijolões caudalosos, já tomaram por
tema a história do cristianismo e
do judaísmo, Elizabeth 1ª e o papel
dos intelectuais no nascimento
das sociedades modernas, no início do século 19.
Johnson lançou este ano, com
1.088 páginas, "A History of the
American People". Com sua erudição sedutora, pondera sobre a
condução de episódios por vezes
traumáticos que permitiram ao
povo norte-americano construir
seu modelo de democracia.
Leia a seguir a entrevista que ele
concedeu à Folha, em Viena, onde
foi um dos participantes da conferência "Capitalismo e Cultura",
promovida pelo Project Syndicate
e pelo Instituto de Ciências Humanas da Áustria (leia nesta página).
Folha - Em meio à admiração que
seu livro demonstra pelos EUA, há
algum tópico na história recente
ou remota daquele país que lhe
desperte uma discordância moral
profunda?
Paul Johnson - Os americanos
cometem erros e criam problemas
para si mesmos. É o caso sobretudo da escravidão. Nos Estados sulistas os escravos eram de forma
geral tratados como se fossem gado, mercadoria. Em muitos Estados era ilegal alfabetizar os escravos ou lhes dar noções de cristianismo. Havia algumas exceções,
como Jefferson Davis, que foi presidente dos Estados confederados
durante a Guerra Civil. Ele era humano com seus escravos e não
compreendia as acusações de inumanidade lançadas contra a escravidão como um todo. A escravidão
era desumana. O Sul foi derrotado,
e a escravidão abolida. Isso prova
minha tese, segundo a qual os norte-americanos conseguem reconhecer que os problemas existem e
se mobilizam em seguida para resolvê-los.
Folha - Essa vitalidade para a autocorreção também vale para problemas atuais?
Johnson - Com certeza. Um dos
grandes problemas que o país enfrenta tem sido a criminalidade.
Novos métodos de combate ao crime estão surtindo efeitos. Há a experiência de Nova York - baseada no princípio da "tolerância zero"-, conduzida por um chefe de
polícia e um prefeito competentes.
A receita tem sido copiada por outras cidades norte-americanas.
Folha - Qual a raiz dessa maleabilidade: uma relação moral entre os
cidadãos ou um entendimento em
torno da elaboração de leis que
em seguida se tornam especialmente consensuais?
Johnson - Creio que isso ocorre
por três fatores. O primeiro deles:
os EUA são uma democracia genuína, e às vezes suspeito tratar-se
da única democracia em todo o
mundo. As pessoas falam e suas
vozes são ouvidas. O segundo fator: eles possuem um profundo
respeito pela lei. O desrespeito à lei
sempre resulta em punições. É
mais ou menos como num filme
de faroeste, em que os bandidos
aparentemente comandam a cidade, mas quem acaba no final levando a melhor são os justos, os bons.
O terceiro: os norte-americanos
cultivam uma crença utópica segundo a qual são desnecessárias
coisas como o erro, a loucura, a
fraqueza. Eles não possuem essa
aceitação filosófica do que é negativo. Acreditam, ao contrário, que
isso deve ser eliminado. A junção
desses três fatores constitui um
combustível poderoso.
Folha - Mas quando os valores individuais se opõem ao próprio
princípio da democracia?
Johnson - Isso também é verdade. Há atualmente nos Estados
Unidos toda espécie de embates.
Um deles diz respeito à maneira
pela qual os grupos de pressão
atuam dentro do sistema democrático. O Congresso se tornou
adaptável às políticas desses grupos, que são bastante fortes e
atuam contra valores individuais.
Vejamos o caso do aborto. Escrevi
no meu livro que se trata de uma
grande questão moral. Acredito
que o aborto voltará a ser proibido, da mesma maneira como a escravidão no passado já o foi. Matar
uma criança antes de seu nascimento é algo pavoroso, e os norte-americanos o reconhecerão em
breve, por mais que grupos de
pressão favoráveis ao aborto continuem agindo com eficiência.
Outro embate atual está na maneira pela qual o Judiciário, sobretudo a Corte Suprema, invade a
área de competência institucional
do Legislativo. Cito novamente o
caso do aborto. Se o Legislativo de
determinado Estado decidir que
aborto é crime, essa decisão legislativa será tornada sem efeito por
trombar com uma decisão da Corte Suprema. Nessa corte, os juízes
tendem a ser em sua maioria liberais, enquanto nos legislativos os
deputados e senadores tendem a
ser conservadores. É algo que os
britânicos não compreendem, já
que no Reino Unido o Parlamento
tem todos os poderes.
Folha - O sr. usou a expressão
"matar uma criança antes de seu
nascimento". Por que o sr. não se
opõe também à pena de morte?
Johnson - Eu acredito que a pena de morte é necessária em casos
extremos. É uma crença que os liberais não compartilham. Minha
mulher, por exemplo, se opõe veementemente à execução de um criminoso. Este é um assunto sobre o
qual, aliás, não conversamos. O
passo extraordinário que consiste
em tirar legalmente a vida de uma
pessoa é um sinal e um símbolo de
que se leva a lei muito a sério. Se
você não tem a coragem de tomar
uma decisão como essa, ninguém
acreditará que você encara o crime
com seriedade. É a razão pela qual
os Estados liberais tendem a registrar taxas bastante elevadas de criminalidade.
Folha - Tramita no Legislativo de
um dos Estados norte-americanos
projeto que torna compulsória a
castração de condenados por violência sexual. Não há nisso uma
comprometedora analogia com o
fundamentalismo islâmico?
Johnson - Eu me oponho a isso.
Acredito que a mutilação contrarie a doutrina cristã. Há uma interpretação equivocada da Bíblia por
parte dos que defendem essa medida. De qualquer modo, acredito
que a palavra fundamentalismo é
utilizada indevidamente. Essa palavra é usada pela esquerda para
desvalorizar um cristão comum.
Os EUA são um país essencialmente cristão. É a esquerda que é
não-americana.
Folha - Os EUA atribuíram a implícita dimensão de imoralidade
ao ato de fumar, e provavelmente
só por isso uma outra dimensão, a
de saúde pública, tornou-se aceitável. O mesmo se esboça contra
bebidas alcoólicas. E a sexualidade
não convencional está na fila.
Johnson - O puritanismo existiu nos primórdios dos EUA e retorna de tempos em tempos. A Lei
Seca, nos anos 20, foi uma dessas
manifestações, que por sua vez já
vinha do século 19, com alguns Estados proibindo o consumo de bebidas alcoólicas. Mas ao mesmo
tempo essa forma de proibição foi
fortemente contestada por aqueles
que acreditavam que a Lei Seca só
favorecia o crime organizado. Esse
ponto de vista prevaleceu. As baterias se voltam agora contra o fumo. Mas há nisso algo de curioso:
se não fosse pelo fumo, os EUA
não teriam se viabilizado economicamente.
No início do século 17, os agricultores da Virgínia passaram a
cultivar o fumo como único produto exportável, e assim capaz de
garantir divisas para a importação
de bens da Inglaterra. Sem o fumo
é provável que a colônia da Virgínia tivesse sido abandonada por
seus primeiros colonizadores. É
uma ironia. Acredito que a dimensão puritana do combate ao cigarro irá longe demais e a opinião pública se encarregará de operar um
recuo. Há sempre nos EUA um
conflito entre o puritanismo e
aquilo que eu chamo de "elemento empírico inglês" das mentalidades. Cada vez que o puritanismo
vai demasiadamente longe, esse
elemento empírico acaba prevalecendo. É uma das receitas do sucesso daquele país.
Folha - Mudemos de assunto. O
sr. é um grande admirador de João
Paulo 2º...
Johnson - ... o maior papa deste
século. Que ele tenha vida eterna!
No ano passado, no Domingo de
Ramos, tive a honra de presentear
Sua Santidade com uma tradução
polonesa de minha "História do
Cristianismo". O sorriso de prazer com que ele recebeu o livro foi
comovente.
Folha - Retomemos. O papa esteve em janeiro em Cuba, rompendo
com isso o cordão de isolamento
internacional em que Fidel Castro
se encontrava. O sr. não é um admirador de Fidel. Como entender
esse paradoxo?
Johnson - O papa estava absolutamente certo ao fazer essa viagem. O regime de Castro está chegando ao fim. O que se discute
agora sigilosamente é uma rota
honrosa de fuga do ditador em direção ao exílio. Deve-se evitar de
qualquer maneira um banho de
sangue. A igreja tem um papel importante nisso.
Folha - No espectro político britânico o sr. já foi trabalhista.
Johnson - Fui membro por 20
anos do Partido Trabalhista. Mas
nunca fui um liberal em questões
como pena de morte ou homossexualismo. Quando trabalhista, eu
acreditava que aquele partido tinha maiores condições de melhorar a vida das classes trabalhadoras. Mas quem se desempenhou
melhor nessa tarefa foi Margareth
Thatcher. Temos agora um grande
dirigente trabalhista, Tony Blair,
que é uma espécie de filho espiritual de Thatcher.
Folha - Quando trabalhista, como o sr. se relacionava com os
marxistas?
Johnson - Nunca fui marxista.
E o Partido Trabalhista também
nunca o foi. Há pouquíssimos
marxistas na Inglaterra. A existência deles contraria a tradição empírica inglesa. Por sua vez, o Partido Comunista foi sempre um grupúsculo insignificante em meu
país, contrariamente ao que ocorreu na França ou na Itália.
Folha - Que pensamentos a expressão "pós-modernismo" lhe
evoca?
Johnson - É uma expressão que
não significa absolutamente nada.
As pessoas a utilizam por pura
questão de modismo.
Folha - Como o sr. se posiciona
com relação a dois sistemas "fechados em suas completudes", o
primeiro de ordem estética, a obra
de Richard Wagner, o segundo de
ordem científica, a psicanálise?
Johnson - Estou escrevendo um
ensaio sobre Wagner para o meu
próximo livro, dedicado aos criadores de novas concepções. Ele foi,
como pessoa, alguém terrivelmente condenável. Mas foi também
um exemplo de como o bom Deus
opera por meio de pessoas horríveis, já que ele foi um gênio na produção da beleza.
Quanto a Freud, eu acredito que
ele tenha sido um excelente exemplo de falso cientista. Popper já dizia que o verdadeiro cientista concebe hipóteses e em seguida se indaga se elas podem ou não ser suficientemente comprovadas. Freud,
ao contrário, apenas buscou evidências que comprovassem suas
hipóteses. Nunca se preocupou
com evidências que pudessem negá-las. Era essa, aliás, a maneira
como Karl Marx também funcionava.
Folha - A sra. Johnson é uma admiradora de Freud. Não o incomoda estar casado com alguém que o
contradiz tão frontalmente?
Johnson - Estamos casados há
42 anos. É importante que num casal as pessoas estejam em desacordo em algumas coisas. Uma mulher casada não pode se tornar
uma pessoa do constante "sim senhor".
Folha - O sr. é um bom pintor
amador, não é verdade?
Johnson - Estou me preparando para uma exposição individual
no mês de junho. Não pinto nada
de abstrato. Sou muito conservador nisso. Eu odeio Picasso.
Folha - Há algum pintor abstrato
que o sr. não odeie?
Johnson - Esse ódio é especialmente dirigido a Picasso, porque
ele foi um homem horrível. Eu sou
um colecionador de quadros. Não
coleciono nada de pintura abstrata. Mas admito que as pessoas possam colecioná-la.
O jornalista João Batista Natali viajou à Áustria a
convite do Instituto de Ciências Humanas e do
Project Syndicate.
A OBRA
A History of the American
People - Paul Johnson. Harper
Collins. 800 págs. US$ 35,00.
O livro pode ser encomendado,
em São Paulo, à Livraria Cultura
(av. Paulista, 2.073, tel.
011/285-4033) ou, pela Internet, na Amazon Books
(http://www.amazon.com).
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