São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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Jornalista alemão defende que Heiner Müller criou uma fantasia do Ocidente como barbárie civilizatória que prenunciaria a atitude antiamericana de intelectuais como Peter Sloterdijk

O TÉDIO DA DEMOCRACIA

José Galisi Filho
especial para a Folha

Na eleição de 1998, Gerhard Schroeder chegou ao poder, propondo a construção de um "novo centro" político na Alemanha. Desde a criação da República Federal, em 1949, as coalizões que conquistaram o centro do eleitorado mantiveram a base de um consenso estável sobre o qual a Alemanha reencontraria seu caminho para a unidade.
É com surpresa então que o novo livro do crítico de literatura e redator de política do diário "Die Zeit", Richard Herzinger, "Republik ohne Mitte" [República sem Centro, ed. Siedler], propõe a tese de que, desde a reunificação das duas Alemanhas, em 1990, esse centro meridiano da política está vazio, e essa tomada de consciência levaria finalmente a mudanças radicais na esfera pública do país, sobretudo entre seus intelectuais.
O livro é também a síntese do pensamento de um dos mais brilhantes intelectuais da nova geração de Berlim, cuja carreira de jornalista teve como eixo um levantamento exaustivo das figuras do conservadorismo político alemão -em especial seu antiamericanismo- e começou com um trabalho acadêmico fulminante sobre o dramaturgo Heiner Müller -"Masken der Lebensrevolution" (Máscaras da Revolução, ed. Wilhelm Fink, 1992). Herzinger buscava na obra de Müller aquilo que o próprio autor apontava como as duas premissas de seu trabalho: 1) distanciar suas idéias e visão de mundo como um "material" da atualidade e descobrir, assim, qual era o seu significado político real; e 2) julgá-la sem tabus em razão disso, uma estratégia que Müller empregara sistematicamente com Brecht.
Distanciando-se de uma germanística desconstrutivista, descritiva e laudatória, que fizera da intertextualidade da obra e seus sistemas de auto-referências à tradição literária um quebra-cabeça do qual nenhuma citação escapava ilesa, Herzinger se propôs a traduzir a retórica monumental das imagens de Müller para o presente. Herzinger não acreditava que Müller tivesse superado as "premissas escatológicas" e "maniqueístas" de uma "visão de mundo" arraigada na ex-República Democrática Alemã (RDA) desde sua constituição, isto é, uma visão antiocidental que se afirmara desde a luta contra Brecht e o "formalismo" e que havia determinado a organização da esfera cultural na RDA.
Ao estalinizar o partido em todas as suas esferas no início dos anos 50, Walter Ullbricht [1893-1973, estadista alemão que foi um dos responsáveis pela criação da RDA e do Muro de Berlim" e seu grupo partiram na época para uma campanha difamatória contra a obra de Brecht e seus discípulos. E foi justamente nesse momento que a denúncia do "cosmopolitismo" representado pelo "barbarismo da cultura americana" mostrava que, tanto à esquerda quanto à direita, havia uma unidade indissolúvel na tradição alemã de recusa ao Ocidente -e, durante a Guerra Fria, à América.
De fato, Herzinger mostra, na entrevista abaixo, como Heiner Müller reaviva as principais coordenadas do complexo cultural conservador da crítica civilizatória alemã, a saber: a oposição entre cultura e civilização sob o conceito de decadência; o ressentimento contra a sociedade liberal como lugar da massificação e comercialização da alma e do espírito; e sobretudo a recusa ao Ocidente e a seu "imperialismo tecnológico", a partir da qual surge a idéia alternativa de que o socialismo deveria opor uma "outra trilha temporal" e uma qualidade mais "vital" e "orgânica". A busca incessante de Heiner Müller por um "outro" e uma "diferença" na ruptura do "continuum" benjaminiano encontraria assim os mais eminentes fantasmas românticos.
Essas posições, longe de serem "críticas", legitimariam o socialismo real no seu ocaso. O mais interessante no trabalho de Herzinger, contudo, é seu pressuposto teórico: no exato momento em que o socialismo desaparecia, ele não via mais sentido em usar as coordenadas direita ou esquerda, preferindo se servir das categorias de ocidental ou antiocidental de modo a encontrar um denominador comum diante da irracionalidade do presente: terrorismo ecológico, nova e velha direitas etc.

Desde a reunificação, o sr. vem enfatizando a continuidade das figuras e dos sentimentos antiamericanos da inteligência alemã. Já em "Profetas dos Fins dos Tempos ou a Ofensiva dos Antiocidentais" (1995), o sr. descrevia esses sentimentos que uniam direita e esquerda numa zona morta, marcada pelo refluxo do pensamento utópico. Quais seriam as figuras e os atores desse processo?
Comecei meu trabalho acadêmico sobre Heiner Müller no início dos 90 sob o pano de fundo dessa reviravolta, ou seja, a questão-chave do papel da Alemanha no mundo pós-Guerra Fria. Naquele momento, a questão ainda levantava o fantasma do caminho "alternativo" da Alemanha à modernidade como "Sonderweg", isto é, o fascismo. Era natural que, diante do rápido desabamento do império soviético, a questão alemã estivesse na ordem do dia. Ninguém sabia, de fato, aonde levaria aquela estrada. A Alemanha reunificada seria integrada finalmente ao sistema cultural ocidental, liberal, ou a Alemanha iria procurar novamente um alinhamento com o Leste, como no passado? Em outras palavras, retomaríamos o romantismo político que nos conduziu à catástrofe ou seríamos um "novo centro" no coração da Europa, uma ponte entre o Ocidente e o Leste? Como era natural, essa questão não tinha uma resposta clara e até hoje permanece em aberto. No passado, a centralidade da Alemanha foi um fator que acentuou suas ambições hegemônicas no interior do continente e conduziu à catástrofe do nacional-socialismo. Com a divisão do país depois da derrota e a assimilação compulsória de sua parte ocidental ao sistema de segurança da Otan (aliança militar ocidental), a República Federal iniciou um caminho democrático num sistema de valores liberal, enquanto o outro lado permanecia atrelado à hegemonia do bloco soviético. A Alemanha passa a se reconhecer depois da reunificação como parte constitutiva desse sistema ocidental, mas o que é o "Ocidente" depois da reunificação, quando os blocos deixaram de existir? Até 20 anos atrás, seria fácil responder à questão sobre onde ficava o Ocidente. Mas, com a desnacionalização dos Estados e a globalização, essa questão assume um novo significado.
Como Heiner Müller se situaria nesse contexto? Nos anos 70, surgiu na literatura da então RDA o que se convencionou denominar de "mudança de paradigma civilizatório". Do ponto de vista da República Federal, parecia que essa mudança temática indicava uma atitude crítica e distanciada dos autores da inteligência leal da RDA à estagnação do socialismo real. Autores como Christa Wolf, Volker Braun e sobretudo Heiner Müller passaram a tematizar explicitamente em ensaios, romances e peças motivos básicos da crítica à civilização, com muitos pontos de contato com a tradição frankfurtiana.
De que modo?
Christa Wolf, por exemplo, via em "Cassandra" (ed. Estação Liberdade) o patriarcado como matriz do desenvolvimento catastrófico do Ocidente. Já em Heiner Müller, vê-se isso com toda a força em peças como "Filoctetes", mas sobretudo em "Gundling" (uma peça sobre Lessing e a relação entre o intelectual e o poder), que é uma tematização e criminalização nominal do Esclarecimento, como fizeram Adorno e Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento" (ed. Jorge Zahar). A minha tese, que acabou desencadeando uma polêmica com essa crítica, é que essa "guinada" oposta à variante civilizatória tinha antes um caráter conservador, à medida que essa inteligência leal legitimava seus privilégios, sacralizando o socialismo real e recuando à matriz do pensamento romântico alemão. Heiner Müller representava a consciência de um estamento intelectual da RDA que pretendia manter a utopia de um socialismo "alternativo" depois do colapso do Partido da Unidade Socialista, já que Müller era também, por sua vez, uma espécie de dissidência, porém "integrada" dentro dessa inteligência. A reunificação alemã foi experimentada por Müller com um sentimento trágico, de profunda infelicidade pessoal. Ela representava para ele a anexação da RDA à "plutocracia" do marco, ao ditado do Ocidente. Foi um grande golpe intelectual. Era como ser ocupado por um Estado inimigo, por uma potência estrangeira -como sua autobiografia "Guerra sem Batalha" (ed. Estação Liberdade) comprova. Müller repetia nesses anos que a "democracia era tediosa" para um artista, pois a vitalidade artística dependeria daquilo que ele denominava a "pressão da experiência autêntica", uma idéia benjaminiana recorrente em Müller. Ora, a democracia é tudo, menos "tediosa". A democracia formal, que ele desprezava, era sinônimo de "consumo", do entorpecimento da sensibilidade pela indústria cultural, pois a história do socialismo real fora feita de "sacrifícios" e então, com o desaparecimento da RDA, desapareceria também a memória dessa proclamada "experiência autêntica" do fascismo, que essa inteligência leal encarnava e ritualizava. Por trás desse acentos pessoais, a questão é saber o que se esconde nessa visão de mundo não apenas em Heiner Müller mas também na inteligência leal da RDA: uma fantasia maniqueísta do Ocidente como barbárie civilizatória. Ora, esse tema se vinculava de maneira inequívoca aos motivos românticos da crítica à civilização. O Ocidente, para Müller, seria assim a "puta Babilônia" do consumo, dos dejetos das "grandes idéias", com o fim da "experiência autêntica" que o socialismo realmente existente supostamente representaria.
O que mudou neste caráter antiocidental da inteligência alemã depois do 11 de setembro?
Para minha surpresa, o 11 de setembro mostrou finalmente, de maneira cabal, que esses sentimentos de aversão ao sistema ocidental da Alemanha estão mais disseminados entre a população do que se supunha. O ressentimento intelectual é parte de um complexo de inferioridade e medo, vale a pena analisá-lo. Montou-se uma verdadeira operação de guerra durante a visita de Bush a Berlim. Esse antiamericanismo é mais forte do que se pensava.
E por que esse sentimento?
Esse sentimento indica duas coisas: em primeiro lugar, um complexo de inferioridade em ser dominado pela América, já que a Europa não consegue definir claramente qual é o seu papel neste novo mundo. Mas é um sentimento ambíguo, pois nunca houve nenhuma época da história européia em que houvesse tanta liberdade e conforto, sem nenhuma guerra, com a exceção dos conflitos nos Balcãs. É ambíguo porque a idade de ouro da Europa foi a idade de ouro da "pax americana". Foi sob a tutela americana que nós, alemães, atingimos esse patamar social. É um mal-estar por se beneficiar dos efeitos indiretos dessa pax, mas também pela impotência que isso significa. Por outro lado, o antiamericanismo traz em seu cerne um complexo de medo atávico, pois para a população os ataques de 11 de setembro dizem respeito apenas aos EUA. Ou seja, medo e inferioridade se combinam. A idéia é: se permanecermos neutros, não seremos atacados, pois não temos nada a ver com eles, somos apenas alemães. Mas no campo intelectual surgiu desde o 11 de setembro uma busca desesperada pela culpa dos americanos. Essa é a razão que leva Günter Grass, Peter Sloterdijk e Walter Jens -a maioria esmagadora da intelectualidade alemã, de maneira grotesca- a pôr a culpa nos EUA, no "imperialismo" e na "unilateralidade" do governo Bush pelo que aconteceu em 11 de setembro. Eu particularmente fico impressionado com o que ouvi, com a falta de sensibilidade moral e intelectual de algumas pessoas que considero inteligentes, como Grass. Ele lamenta que tenham morrido 3.000 inocentes civis americanos, mas no cálculo dele isso não é nada diante das vítimas da fome causadas pela "pax americana". Lamento, como alemão, que Grass não tenha nem sequer entendido que a sociedade americana é completamente heterogênea, que ela não apóia as medidas unilaterais de seu governo. Essa cegueira diante da realidade é um forte distúrbio neurótico no qual o medo nos leva a conjurar velhos fantasmas e a achar argumentos -por mais absurdos que sejam- que mais uma vez nos afastam do real.


José Galisi Filho é doutor em germanística pela Universidade de Hanover, na Alemanha, e autor de "Uma Introdução ao Conceito de Material na Poética de Heiner Müller" (ed. Internacionalismus).


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