São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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O PROJETO SOCIALISTA

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA


Em 1999, Lula visitou Antonio Candido para trocar idéias sobre como reavivar o debate na esquerda brasileira
Acho que desde que fundamos o PT, no início de 1980, o socialismo nunca deixou nossa agenda de debates. Tratava-se de ajustar contas com a desastrosa experiência do "socialismo realmente existente" e com a crescente capitulação da social-democracia perante o neoliberalismo. E, a partir deste exame das lições da história contemporânea, cunhar uma concepção nova da sociedade livre e igualitária que almejamos e os caminhos a serem trilhados para alcançá-la.
Em 1999, Lula visitou Antonio Candido para trocar idéias sobre como reavivar o debate na esquerda brasileira, e desse encontro resultou a formação de um grupo composto inicialmente por Antonio Candido, Paulo de Tarso Vannuchi, Chico de Oliveira e eu, encarregado de elaborar um programa de discussões, com aquela finalidade. Depois se juntaram a nós Joaquim Soriano (secretário nacional de Formação do PT) e Ricardo Azevedo (diretor da Fundação Perseu Abramo).
Esse grupo se reuniu numerosas vezes no apartamento de Antonio Candido, e acredito que muito depressa se pôs de acordo que o socialismo poderia servir de eixo condutor para que os debates abordassem o estágio contemporâneo do capitalismo e os modos de enfrentá-lo. Essas reuniões foram deliciosas, pois éramos pessoas de gerações diferentes, com histórias de luta e militância distintas, cada um dando sua contribuição específica à troca de idéias, mas logo verificamos que, no fundamental, estávamos de acordo.
O socialismo era o divisor de águas entre os que lutavam para melhorar ou humanizar o capitalismo e os que acreditavam que era possível e desejável superá-lo e construir em seu lugar uma sociedade em que o gozo das liberdades fosse real para todos, e não só para os favorecidos pelo jogo do mercado.
Nessas conversas, que sempre culminavam com um chá e bolo servido pela professora Gilda, ficou cada vez mais evidente para mim que a adesão ao socialismo era muito mais do que uma postura em prol duma quimérica revolução, que algum dia poderia ocorrer ou não. Ser socialista significa encarar a sociedade presente como algo imperfeito e profundamente injusto para a massa dos excluídos do acesso a trabalho e renda e que pode efetivamente ser superada. O que implica mudar aspectos não apenas secundários do capitalismo, mas a essência do mesmo, que é a enorme desigualdade da distribuição da propriedade e do controle dos meios de produção.
É claro que todos nós estávamos engajados em lutas para a melhoria das condições de vida e de trabalho do povo pobre. A questão do socialismo era distinguir entre melhorias que "amenizavam" aquela desigualdade e melhorias que a "substituíam" por algum regime de propriedade e controle dos empreendimentos econômicos pelos que os operam e/ou usufruem seus produtos. O grupo conseguiu elaborar um programa de debates em que figuravam como temas "O Socialismo em 2000", "A Economia Socialista", "O Indivíduo no Socialismo", "Instituições Políticas no Socialismo", "Classes Sociais em Mudança e a Luta pelo Socialismo", "Globalização e Socialismo".
Esses debates se realizaram entre abril e junho de 2000, na sede da direção nacional do PT e contaram com ampla e seleta audiência, que participava ativamente das discussões. Eu fui o relator da segunda mesa, sobre "Economia Socialista", e meu debatedor foi João Machado (Lenina Pomeranz também estava prevista, mas não pôde comparecer). Intervieram pelo público Aldo Fornazieri (que começou se declarando não socialista, o que ninguém lhe levou a mal), Eduardo Suplicy, Max Altman, Arlindo Chinaglia, Fernando Haddad, Luiz Inácio Lula da Silva e José Genoino.

Mal-entendidos
Confesso que fiquei muito emocionado, em primeiro lugar porque havia anos que eu sonhava discutir o socialismo com a liderança do meu partido, para esclarecer mal-entendidos e deixar claro que a economia solidária era o modo prático e teórico de construir o socialismo, no capitalismo neoliberal de hoje. Em segundo lugar, porque em vez da rejeição de plano, que eu temia, o que ouvi foi uma abordagem simpática -embora cheia de dúvidas- da minha tese. Lula perguntou: "Será que o PT, com essa vontade que tem de induzir a sociedade a ter uma compreensão socialista, não deveria ele, o partido, colocar em prática ações que podem conduzir a sociedade a sentir que há outro jeito de se fazer as coisas?".
O que me deixou sobremodo satisfeito foi a fala de João Machado, dirigente histórico do PT e notável economista. "Recentemente cursei uma disciplina na USP com Paul Singer (...) e descobri então que o movimento pelo socialismo que existe hoje no Brasil é muito mais amplo do que eu imaginava. Fiquei surpreso com a diversidade e a riqueza das experiências de formas de economia solidária existentes no Brasil e fora do Brasil." E houve naturalmente os que discordaram. Arlindo Chinaglia disse: "O capitalismo é capaz de hegemonizar várias formas de produção, inclusive aquelas que Paul Singer caracterizou como não-capitalistas, exatamente porque elas não ferem, não atingem e não disputam o grande poder que está concentrado no sistema financeiro hoje (...). Sinceramente, não consigo vislumbrar qualquer possibilidade de crescimento num grau que de fato faça jus a uma estratégia socialista, daquilo que você definiu como "implante socialista"...".
Os outros debates foram igualmente calorosos e produtivos. E tanto responderam a uma necessidade que a direção e a intelectualidade do PT sentiam, que uma segunda rodada de debates, dessa vez relacionando o socialismo com as grande questões sociais e políticas do momento, foi organizada pelo mesmo grupo e realizada no ano seguinte. Pude estar presente em todos esses debates e os aproveitei muito. Discutiram-se as relações do socialismo com a questão ambiental, racial, feminina, do desenvolvimento local e com as religiões.

A hora do debate
Depois veio a campanha eleitoral vitoriosa de 2002 e a formação do governo do presidente Lula. Aparentemente tinha chegado a hora da prática e a organização de debates teóricos foi deixada de lado. Só que, agora, o partido e o governo mergulharam em uma crise, que é ao mesmo tempo moral e política. Angustiados pelo jorro de (más) revelações, os petistas estão se reunindo pelo Brasil afora para tentar entender o que se passou e o que é necessário fazer para resolver a crise, passando o PT a limpo ou o "refundando", como querem alguns.
Sendo um partido democrático, ao PT só resta organizar uma série de debates que permitam revisar em profundidade a sua história, tendo em vista os fatores e condições que o levaram a práticas tão contrárias ao programa e à ética que sempre o caracterizaram.
Não estou, obviamente, sugerindo que o grupo liderado por Antonio Candido seja novamente convocado para organizar tais debates. Quando se deseja repetir a história de qualquer modo, o risco de que seja como farsa é grande.
O que estou constatando é que, há poucos anos, o PT foi capaz de organizar debates sobre temas controversos num clima de respeito e compreensão, absolutamente incomuns na esquerda, em outros tempos. O momento presente parece exigir que algo nessa direção seja novamente tentado, com uma urgência muito maior, dada a gravidade da crise.
Paul Singer é economista, professor da USP e secretário nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego.

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