São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A APOSTA DESPERDIÇADA

REINALDO GONÇALVES
ESPECIAL PARA A FOLHA


Enterremos Lula e, sem compaixão, deixemos o PT chorar os seus mortos
O que está ocorrendo com o PT não me surpreende. Na realidade, não há decepção porque não havia ilusão. Essa posição baseava-se em algum conhecimento sobre o funcionamento do PT, a conduta das suas lideranças e registros de quem viveu a "cozinha" do partido e da teoria sociológica.
Fui filiado ao PT entre o início dos anos 90 e janeiro deste ano. Minhas atividades se restringiram a contribuições pontuais quando da elaboração do programa econômico em 1989, 1994, 1998 e 2002. Como contribuição indireta, participei do grupo dos economistas do Instituto Cidadania, de Lula, que se reuniu regularmente entre 1999 e 2001. A partir de 2001, quando aumentavam as chances de Lula vencer as eleições presidenciais de 2002, fui me afastando do PT. A minha última participação foi como testemunha de defesa de Heloisa Helena, Luciana Genro e Babá na Comissão de Ética do PT em 2003.
Nos anos 80 e 90, o PT abriu nova frente para a esquerda brasileira. No entanto a expectativa de se criar um partido de massas fracassou. Ao longo da história do PT, ficou cada vez mais evidente que o partido era dominado pelo grupo liderado por Lula. O crescimento do PT, sob a hegemonia desse grupo, já trazia os elementos que provocariam sua senilidade acelerada.
Muitos olhavam a conduta da direção nacional do PT e a liderança de Lula com grande e crescente desconfiança. No Rio de Janeiro, a direção nacional comandada por Lula fez inúmeros erros, inclusive a sabotagem a Chico Alencar em 1996, a intervenção contra Vladimir Palmeira em 1998 e a promoção de quadros partidários medíocres.
A liderança de Lula era fonte de preocupação. Essa liderança era explicada por um conjunto de fatores: a solércia do líder; a hipervalorização da figura do operário pela intelectualidade abestalhada de classe média, que se impressionava facilmente com histórias tolas do gênero "sanduíche de mortadela" e "janela de ônibus"; a capacidade de mobilização de recursos (pois parte expressiva da dominação decorreu do controle do cofre); a "libido dominandi" do grupo dirigente; e a teoria do cogumelo.

À sombra
Esta merece destaque. Segundo essa teoria, os cogumelos crescem à sombra. No caso do PT, o que se observou foi que parte expressiva do grupo dirigente do PT era formada por "cogumelos" de Lula, ou seja, personagens que "sob o sol" secariam, mas cresceram protegidos por ele. Lula plantou uma razoável quantidade de cogumelos no PT e na CUT. A CUT está, atualmente, definhando, visto que marcada pelo neopeleguismo. E o PT descarrilou de vez.
Ao longo desse período, alguns conhecedores da "cozinha" do partido alertavam sobre a conduta do grupo dirigente. Alguns diziam que esse grupo não tinha um projeto de sociedade para o Brasil; havia unicamente um projeto estreito e mesquinho de poder. Outros afirmavam, ainda, que esse projeto de poder estava impregnado de ânsia de glória e riqueza. Eram hipóteses do passado. No presente, os petistas devem torcer para que os indícios de formação de quadrilha, corrupção passiva e ativa e prevaricação não sejam comprovados.
O resultado é que, longe do entusiasmo, sempre tive "respeito qualificado" por Lula "et caterva". E isso não se alterou quando participei das reuniões do Instituto Cidadania e observei a ausência de firmeza na definição de estratégias para a economia brasileira.
A teoria sociológica também me ajudou a entender o que se passou e se passa no PT e no governo de Lula. No livro de Robert Michels, "Partidos Políticos", publicado em 1911, há uma análise clássica sobre líderes sindicais. Segundo Michels, "o novo ambiente exerce uma influência poderosa sobre o ex-trabalhador manual". "Na sua associação diária com pessoas de nascimento superior, ele aprende os costumes da boa sociedade e esforça-se para assimilá-los. Inspirado por uma tola auto-satisfação, o ex-trabalhador experimenta prazer no seu novo ambiente, e ele tende a ser indiferente e mesmo hostil a todas as aspirações progressistas no sentido democrático. Ele acomoda-se à ordem existente e, finalmente, cansado da luta, torna-se mesmo reconciliado com esta ordem."
Em junho de 2001 houve um debate sobre o tema "Globalização e Socialismo" no PT, inclusive, com a presença de Lula. Esse debate foi publicado pela Fundação Perseu Abramo ("Socialismo e Globalização Financeira"). Após um debate bastante agitado, concluí a minha intervenção da seguinte forma: "A estratégia de nada fazer, nada mudar, significa deixar o Brasil vulnerável, débil, nessa trajetória de africanização, o que é uma estratégia de alto risco. Para não mudar, é melhor deixar a social-democracia ou os liberais no poder. Estou convencido de que qualquer estratégia, marcada pela pusilanimidade e pela linha de menor resistência, desembocará em um processo autofágico. Perderemos o rumo e o prumo. Não tenho dúvidas de que a história vai cobrar, e caro, se seguirmos a linha de menor resistência". Lamentavelmente, parece que eu tinha razão.
Essa conclusão baseava-se na percepção crescentemente pessimista a respeito das perspectivas do desempenho de Lula na Presidência da República. Ao longo dos anos, fui me convencendo de que parte expressiva dos dirigentes do PT, com destaque para Lula, não tinha um projeto de sociedade para o Brasil. Havia quase que exclusivamente um projeto de poder. Portanto, atualmente, não há espaço para surpresa ou decepção.
O fato é que Lula e o PT morreram. Enterremos Lula e, sem compaixão, deixemos o PT chorar os seus mortos. E que o espectro de Lula não ronde as esquerdas brasileiras nos próximos anos. Assim, poderemos reconstruir blocos consistentes de forças políticas efetivamente democráticas e populares. Lula foi uma aposta perdida.
Reinaldo Gonçalves é professor titular de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Texto Anterior: O PROJETO SOCIALISTA
Próximo Texto: AGORA É LULA
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.