São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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Em obras agora lançadas de Lacan, o pensador francês submete o repertório teológico à engrenagem psicanalítica e explica o triunfo da religião sobre outras modalidades de organização de sentido

O discurso de Deus


É muito sutil, mas Lacan toca no que poderíamos chamar, com alguma ousadia, de uma teoria psicana-lítica da santidade
LUIZ FELIPE PONDÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ler Lacan é sempre uma aventura barroca fora de lugar. Conhecido por sua escrita incompreensível, já se suspeitou que tal traço fosse simples má escrita ou afetação desnecessária. Ou metateoria da transmissão psicanalítica. A incompreensão como ato edificante nos levaria à consciência de que, como a cópula e a mulher, a transmissão do conhecimento também não existe.
Talvez esse "discurso da incompreensão" seja excessivo para pensarmos a antropologia profunda que anima esse páthos pela desfuncionalidade estrutural humana. Ingênuos os que crêem que o a priori da linguagem seria a comunicação. Ela é, na melhor das hipóteses clínicas, o espaço da neurose: nela, o horror indiferente da Coisa sem nome esculpe mortalmente nossa agonia.
Nesse fracasso haveria um resto cognitivo narrando o desastre de um sujeito preso num quarto escuro que, a chutes, pontapés e socos no ar, tenta se localizar no vazio. Nessa dança, ele aprende a falar uma língua que o antecede e que a ele nunca pertencerá. Sua palavra não é sua. Saber a quem ela pertence pode ser nossa única saída. Aqui a palavra "sentido" encontra seu duplo sentido: ir em alguma direção, e, nesse método (caminho), orientar-se para ver, na brecha, seu lugar na cadeia infinita dos nomes.
Um movimento de sentido que revela uma inércia real de sentido. O espaço analítico seria o campo da arqueologia particular desse desastre universal (estranha herdeira das Luzes, essa psicanálise!). Parece haver uma dúvida com relação à viabilidade do humano. Para Lacan, apenas imbecis acreditam que o mundo não anda em círculos: o círculo do sintoma. Esse traço é típico de um pensamento freudiano que faz a crítica da falácia humanista como eficácia terapêutica. O delírio de um entendimento ingênuo nos ajudaria a tamponar o terror da realidade que a criança despedaçada experimenta eternamente no adulto em que, a chicotadas, se transforma. "Conhecer-se" é olhar esse abismo com nome próprio.
O grande Outro e o pequeno "a", o objeto caído, a angústia e a falta estruturantes, a vocação à violência escatológica de uma experiência interior radical. Somos seres acuados, e Lacan, um autor de tons dramáticos. Eis algumas das chaves de diálogo, em meio à sua álgebra barroca: do real ao simbólico e ao imaginário, passando pelo "Nome do Pai", busca-se passar da causa freudiana à causa de Deus.
Essa passagem tem seus bons momentos. Todavia, há também dificuldades. Excelentes referências eruditas em meio à confissão de preferências "religiosas" em detrimento de outras confissões (a religião verdadeira seria a tradição judaico-cristã-romana e seu discurso acerca do Pai/filho morto, da lei e da culpa, sem que uma explicação não circular seja dada satisfatoriamente).
Como é comum nas abordagens psicológicas (mesmo que a psicanálise goste de guardar uma certa distância conceitual do que poderíamos chamar de "psicoterapias"), Lacan, nos dois volumes "O Triunfo da Religião" e "Nomes-do-Pai" da Jorge Zahar (coletâneas de discursos organizadas por Jacques-Alain Miller), não avança muito além da submissão elegante e sofisticada do repertório teológico à engrenagem psi: explica-se psicanaliticamente o triunfo da religião sobre outras modalidades de organização de sentido.

Religião e igreja separadas
Em alguns momentos, sente-se uma tendência à superação da identificação rude entre religião e neurose obsessiva -religião e igreja seriam coisas distintas. Contra Jung, afirma: seu pensamento não passa de paganismo (e Lacan se surpreende como cristãos em geral não percebem isso quando aderem de corpo aberto a Jung como se este fosse "mais sensível" à religião do que Freud). A favor de Lacan, em 2005, é a evidente relação entre os "junguianismos" e o produto barato da indústria cultural denominado "Nova Era" ou neopaganismo "fake".
Vale salientar que muitos junguianos apontam esse infeliz parentesco para qualquer pessoa séria como fruto de pura e simples desinformação. Haveria um barateamento conceitual do pensamento junguiano nas feiras de blablablá psicoespiritual. Outra questão a favor de Lacan é sua fina percepção da parafernália quase inútil em que se transformou a educação (aqui ele radicaliza a ponto de se referir às "banalidades de Platão").
Os educadores erram quando acreditam que "constroem" humanos pelo uso indiscriminado das ofertas dessa praga chamada "concepções de mundo". A psicanálise, criada por um neurologista, ainda que não mais alinhada com a biologia, permanece arredia aos discursos abertamente antideterministas. Na lista infeliz de disciplinas frágeis (governo, psicanálise, ciência), a educação ocupa lugar de destaque. Nessa crítica dos modos de lidar com essa espécie louca, ele reconhece que a religião garante maior eficácia de sentido, com todos os riscos que encontrar "um sentido" possa implicar.
Para ele é risível pensar que a ciência (apontando até mesmo a ilusão de uma certa psicanálise), um dia, chegou a sonhar com um xeque-mate na religião. A "religião verdadeira", o monoteísmo abraâmico judaico-cristão, supera qualquer crítica porque sabe da culpa, da lei, da falta ontológica e da agonia infinita que desperta o sujeito em meio aos elementos cegos da matéria indiscriminada. O "discurso de Deus" olha no olho da pulsão de morte.
Lacan não incorre no erro banal, mas comum, de dizer que a religião é mero ópio bem sucedido. Ponto para Lacan. Um dos discursos foi dado na Bélgica, terra onde, na Idade Média, a mística floresceu com força. Há um reconhecimento claro do "saber da mística" no discurso de Jacques Lacan.
As margens do rio Reno, grosso modo entre os séculos 13 e 16, foram palco de uma importante "invasão mística". Mulheres e homens foram queimados pela Inquisição em nome de sua intimidade com Deus. Entregaram-se às chamas com aquele tipo de certeza que só a feroz experiência interior pode dar: para Lacan, essa é a marca do "extremo do íntimo", que é mais forte do que o amor à vida.
O gozo místico é um gozo de gente forte, porque não teme esse "extremo do íntimo". A exclusão de homens como são João e são Paulo é signo da ignorância acadêmica que não sabe que a religião é saber, e não mera alienação. O saber religioso não é mera alienação porque sabe, por exemplo, que a concupiscência narcísica (Lacan encontra santo Agostinho) desenha a irredutibilidade do furioso amor próprio, e ao final, as paredes de nossa própria cela. É muito sutil, mas aqui Lacan toca no que poderíamos chamar, com alguma ousadia, de uma teoria psicanalítica da santidade.
Luiz Felipe Pondé é professor de pós-graduação em ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (SP), professor de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado e autor de "O Homem Insuficiente" (Edusp), entre outros.

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