São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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Reedição dos "ensaios de eclesiologia militante", escritos por Leonardo Boff entre 1972 e 1981, traz as bases da Teologia da Libertação e os documentos do processo do Vaticano contra as teses do então frade

A Inquisição no século 20


Melífluo, paternal e operoso, o inquisidor enuncia uma série de restrições às teses de Boff
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Não resisti e comecei a ler "Igreja - Carisma e Poder" pelo final, que aliás está longe de ser feliz. É que esta edição revista dos "ensaios de eclesiologia militante" escritos por Leonardo Boff entre 1972 e 1981 traz no seu longo apêndice (de quase 140 páginas) os documentos do processo que resultou na sua condenação pelo Vaticano.
O calvário de Boff começa com uma "Carta do Senhor Cardeal Joseph Ratzinger", datada de 1984, "incriminando" -este o termo- alguns pontos do livro, um dos mais importantes textos da Teologia da Libertação. O atual papa Bento 16 era responsável pela Congregação para a Doutrina da Fé, instância do Vaticano que, em outros tempos, respondia pelo nome de Santa Inquisição. O endereço do remetente, aliás, não dá margem a enganos: piazza del Santo Uffizio, 11, Roma.
Melífluo, paternal e operoso, o inquisidor enuncia uma série de restrições às teses, ao tom e às fontes de inspiração (marxistas, desconfia-se) de Leonardo Boff. Não adiantou muito para o nosso teólogo argumentar que, dos textos evangélicos às últimas encíclicas do papa, passando por são Clemente Romano, santo Agostinho e Orígenes (sem contar alguns trabalhos do próprio Ratzinger), há no pensamento católico fundamentos suficientes para se propor uma flexibilização da hierarquia eclesiástica: um modelo em que o "carisma", a intervenção viva do Espírito Santo em cada comunidade religiosa, tivesse lugar ao lado do "poder" instituído pela tradição histórica.
O erudito instrumental teológico de Boff valeria pouco, entretanto, diante dos óbvios interesses do Vaticano: minar as atividades de esquerda nas comunidades eclesiais de base latino-americanas.

Pouco marxista
Os textos de Boff se mostram, aliás, muito menos "marxistas" do que se poderia pensar. A preocupação com a perda dos fiéis, a necessidade de renovar uma estrutura esclerosada e o empenho de intensificar a tolerância diante das demais religiões ganham aqui uma fundamentação teológica extensa e altamente "técnica", por assim dizer, ainda que inteligível para o leigo.
O problema é que, por mais que Boff tivesse bons argumentos, o debate em que se envolvera não teria como dispensar fundamentos de autoridade -a palavra revelada da Bíblia, os pronunciamentos da tradição teológica, as resoluções conciliaras e papais. Estaria sempre exposto, assim, a um desfecho arbitrário. Na condição de frade, Boff se envolveu num jogo interessante, mas do qual não teria como sair vencedor.
Para o leitor atual, é curioso que o problema do carisma e da recuperação da popularidade do catolicismo, que Boff tanto enfatizava, tenha tido uma solução híbrida. Com o crescimento do catolicismo carismático, tendências "de baixo para cima", de nítida inspiração pentecostal, e fortemente conservadoras do ponto de vista político, aliaram-se ao poder centralizador de João Paulo 2º: a dialética entre o carisma e poder, ironicamente, conheceria assim uma versão inversa e simétrica às propostas de Boff.
Igreja - Carisma e Poder
476 págs., R$ 49,90 de Leonardo Boff. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2585-2000).


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