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Em novo livro, ganhador do Nobel de Economia Amartya Sen defende
uma Índia plural e democrática contra clichês e falsificações ocidentais
O passaporte indiano
Melhor começar afir
mando algo que, apesar
de parecer a alguns co
mo fato pouco relevan
te, na verdade tem muita importân
cia: Amartya Sen, autor do recém-
lançado na Inglaterra "The Argu
mentative Indian", é cidadão da Ín
dia. Enquanto a maioria de seus
conterrâneos que conseguiram sair
da Índia por períodos prolongados
procura ao máximo ganhar cidada
nia nos países a que se transferiram
(Reino Unido, Austrália, Canadá,
Estados Unidos), Sen, cuja compe
tência levou as universidades Har
vard e de Cambridge a disputarem o
privilégio de contratá-lo, mantém
resolutamente o seu passaporte in
diano azul, depois de meio século de
realizações intelectuais impressio
nantes do outro lado do mundo.
A cada ano, o ganhador do Nobel
de Economia de 1998 retorna à pe
quena cidade universitária de Santi
niketan, a mais ou menos 150 quilô
metros de Calcutá, e lá o antigo dire
tor do Trinity College, membro da
Universidade de Cambridge, pode
ser visto andando de bicicleta, sem
pre gentil e despretensioso, conver
sando com os moradores locais e
trabalhando na administração de
um fundo que ele estabeleceu com o
dinheiro de seu Prêmio Nobel. Um
dos mais influentes pensadores pú
blicos de nossa era tem fortes raízes
no país em que foi criado e está pro
fundamente envolvido em suas
preocupações.
Lugar-comum
Assim, há pouca gente mais quali
ficada do que o titular da cátedra La
mont, em Harvard, para escrever so
bre a Índia e a identidade indiana,
especialmente em um momento no
qual o estereótipo da Índia como
terra exótica e mística começa a ser
suplantado pelo estereótipo da Índia
como prestadora de serviços admi
nistrativos ao mundo inteiro.
Em sua soberba coleção de en
saios, Sen demole muitos estereóti
pos e coloca a idéia da Índia e da
condição indiana em seu contexto
devido e correto. Um ponto central
de seu conceito de Índia, como suge
re o título do livro, é a longa tradição
de discussão e debate público em
seu país, a presença constante do
pluralismo e da generosidade inte
lectual que dão forma a boa parte da
história da Índia.
Uma das muitas vitórias do livro é
seu tom. Sen não se estende em cele
brações triunfais do passado de seu
país; tampouco poupa as influências
ocidentais (por exemplo "History of
British India", de James Mill) que te
nham simplificado em demasia ou
distorcido a realidade indiana.
Ao escrever sobre a democracia no
país, por exemplo, ele acautela que
"é importante evitar o duplo engano
de, primeiro, considerar que a de
mocracia seja um dom do mundo
ocidental que a Índia simplesmente
aceitou ao se tornar independente
ou, segundo, presumir que haja al
guma coisa de singular na história
indiana que torne o país especial
mente capacitado para a democra
cia". A verdade é muito mais com
plexa, e fica entre esses extremos.
Sen refuta a descrição simplifica
dora da Índia que muitos ocidentais
adotam ao dizer que se trata de um
"país majoritariamente hindu" com
o mesmo rigor acadêmico que em
prega ao demolir a visão restrita do
hinduísmo defendida pela direita
hinduísta agrupada no Hindutva,
que governou o país entre 1999 e
2004.
Iluminado com exemplos dos en
sinamentos e biografias de impera
dores como Akbar e Ashoka e com
ilustrações dos épicos "Ramayana" e
"Mahabharata", bem como um
elenco imenso de outras referências,
Sen propõe uma visão do hinduís
mo como filosofia inclusiva, e não
como religião excludente ou divisi
va. Sua visão do hinduísmo é madu
ra e magnânima o bastante para aco
modar posições dissidentes e "até
mesmo profundo ceticismo".
Trata-se de uma "visão ampla".
"De um hinduísmo largo e genero
so, que contrasta acentuadamente
com as versões estreitas e belicosas
atualmente propostas em especial
por certos segmentos do movimen
to Hindutva."
O tom de Sen é caloroso e celebra
tório em dois ensaios, que falam so
bre figuras que exemplificam a hete
rodoxia que ele considera refletir o
melhor da tradição indiana.
Literatura e cinema
Um ensaio é um vigoroso tributo a
Rabindranath Tagore [1861-1941], o
único indiano premiado com o No
bel de Literatura. "Quando poetas
morrem", escreveu Martin Amis em
sua defesa de Philip Larkin, "usual
mente há pressa em proferir um ve
redicto: reavaliar, retaliar, reagir".
No caso de Tagore (poeta, roman
cista, contista, ensaísta, dramaturgo
e educador, mas conhecido no Oci
dente principalmente pela poesia), o
revisionismo parece ter começado
quando ele ainda era vivo. Defenso
res de seus primeiros trabalhos, co
mo Ezra Pound e W. B. Yeats, se
transformaram em detratores, e a
reputação de Tagore afundou, fora
de seu país, em relativamente pouco
tempo.
Sen se estende sobre a impossibili
dade de traduzir o trabalho de Tago
re, mas argumenta que isso era ape
nas parte do problema. Yeats,
Pound e outros denunciaram Tago
re porque não foram capazes, depois
de algum tempo, de enquadrá-lo sob
o exótico rótulo oriental ao qual o
haviam reduzido. Queriam um mís
tico, um sábio, e nem chegaram a
perceber em Tagore o pensador ra
cionalista, humanista e liberal.
O segundo ensaio trata do cinema
de Satyajit Ray [1921-1992], um dos
mais importantes cineastas india
nos. Ray, cujo filme de estréia, "Pa
ther Panchali" [Canção da Pequena
Estrada], celebra seu jubileu de ouro
neste ano e perdura em termos de
importância, relevância e poder ci
nematográfico, era mais que apenas
um cineasta. Tratava-se também de
um escritor, artista e compositor ex
traordinariamente talentoso, capaz
de se mover sem grandes solavancos
entre o mundo das músicas clássicas
ocidental e indiana.
Embora seus filmes tenham con
quistado muitos prêmios nos festi
vais de Cannes, Veneza e Berlim, ele
jamais tentou fazê-los retratar uma
noção preconcebida do Oriente. São
trabalhos autenticamente indianos,
enraizados na província da qual ele
se origina (Bengala) e indisputavel
mente excelentes.
Sen argumenta que Ray conseguiu
essa síntese ao se aproveitar da tradi
ção heterodoxa da Índia; ele estava
sempre disposto a aprender com ou
tras culturas e era capaz de combi
nar esse conhecimento com aquele
de que estava imbuído em função de
suas próprias referências culturais.
"Em nossa heterogeneidade e aber
tura reside o nosso orgulho, não a
nossa desgraça. Satyajit Ray nos en
sinou isso, e a lição é profundamente
importante para a Índia. E para a
Ásia e o mundo."
Trata-se de um livro que precisava
ser escrito. A percepção da índia pe
lo Ocidente e, de fato, entre os india
nos mesmos, jamais foi mais amorfa
do que agora. "The Argumentative
Indian" oferecerá uma nova dimen
são e perspectiva para essa percep
ção. Não seria surpresa que viesse a
se tornar um trabalho tão influente e
definitivo quanto "Orientalismo",
de Edward Said.
The Argumentative Indian
(O Indiano Argumentativo)
432 págs., 25 libras - R$ 105
de Amartya Sen. Ed. Allen Lane (Inglaterra)
Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel.
0/xx/ 11/ 3170-4033) ou no site
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