São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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Em novo livro, ganhador do Nobel de Economia Amartya Sen defende uma Índia plural e democrática contra clichês e falsificações ocidentais

O passaporte indiano

Melhor começar afir mando algo que, apesar de parecer a alguns co mo fato pouco relevan te, na verdade tem muita importân cia: Amartya Sen, autor do recém- lançado na Inglaterra "The Argu mentative Indian", é cidadão da Ín dia. Enquanto a maioria de seus conterrâneos que conseguiram sair da Índia por períodos prolongados procura ao máximo ganhar cidada nia nos países a que se transferiram (Reino Unido, Austrália, Canadá, Estados Unidos), Sen, cuja compe tência levou as universidades Har vard e de Cambridge a disputarem o privilégio de contratá-lo, mantém resolutamente o seu passaporte in diano azul, depois de meio século de realizações intelectuais impressio nantes do outro lado do mundo.
A cada ano, o ganhador do Nobel de Economia de 1998 retorna à pe quena cidade universitária de Santi niketan, a mais ou menos 150 quilô metros de Calcutá, e lá o antigo dire tor do Trinity College, membro da Universidade de Cambridge, pode ser visto andando de bicicleta, sem pre gentil e despretensioso, conver sando com os moradores locais e trabalhando na administração de um fundo que ele estabeleceu com o dinheiro de seu Prêmio Nobel. Um dos mais influentes pensadores pú blicos de nossa era tem fortes raízes no país em que foi criado e está pro fundamente envolvido em suas preocupações.

Lugar-comum
Assim, há pouca gente mais quali ficada do que o titular da cátedra La mont, em Harvard, para escrever so bre a Índia e a identidade indiana, especialmente em um momento no qual o estereótipo da Índia como terra exótica e mística começa a ser suplantado pelo estereótipo da Índia como prestadora de serviços admi nistrativos ao mundo inteiro. Em sua soberba coleção de en saios, Sen demole muitos estereóti pos e coloca a idéia da Índia e da condição indiana em seu contexto devido e correto. Um ponto central de seu conceito de Índia, como suge re o título do livro, é a longa tradição de discussão e debate público em seu país, a presença constante do pluralismo e da generosidade inte lectual que dão forma a boa parte da história da Índia.
Uma das muitas vitórias do livro é seu tom. Sen não se estende em cele brações triunfais do passado de seu país; tampouco poupa as influências ocidentais (por exemplo "History of British India", de James Mill) que te nham simplificado em demasia ou distorcido a realidade indiana.
Ao escrever sobre a democracia no país, por exemplo, ele acautela que "é importante evitar o duplo engano de, primeiro, considerar que a de mocracia seja um dom do mundo ocidental que a Índia simplesmente aceitou ao se tornar independente ou, segundo, presumir que haja al guma coisa de singular na história indiana que torne o país especial mente capacitado para a democra cia". A verdade é muito mais com plexa, e fica entre esses extremos.
Sen refuta a descrição simplifica dora da Índia que muitos ocidentais adotam ao dizer que se trata de um "país majoritariamente hindu" com o mesmo rigor acadêmico que em prega ao demolir a visão restrita do hinduísmo defendida pela direita hinduísta agrupada no Hindutva, que governou o país entre 1999 e 2004.
Iluminado com exemplos dos en sinamentos e biografias de impera dores como Akbar e Ashoka e com ilustrações dos épicos "Ramayana" e "Mahabharata", bem como um elenco imenso de outras referências, Sen propõe uma visão do hinduís mo como filosofia inclusiva, e não como religião excludente ou divisi va. Sua visão do hinduísmo é madu ra e magnânima o bastante para aco modar posições dissidentes e "até mesmo profundo ceticismo".
Trata-se de uma "visão ampla". "De um hinduísmo largo e genero so, que contrasta acentuadamente com as versões estreitas e belicosas atualmente propostas em especial por certos segmentos do movimen to Hindutva."
O tom de Sen é caloroso e celebra tório em dois ensaios, que falam so bre figuras que exemplificam a hete rodoxia que ele considera refletir o melhor da tradição indiana.

Literatura e cinema
Um ensaio é um vigoroso tributo a Rabindranath Tagore [1861-1941], o único indiano premiado com o No bel de Literatura. "Quando poetas morrem", escreveu Martin Amis em sua defesa de Philip Larkin, "usual mente há pressa em proferir um ve redicto: reavaliar, retaliar, reagir".
No caso de Tagore (poeta, roman cista, contista, ensaísta, dramaturgo e educador, mas conhecido no Oci dente principalmente pela poesia), o revisionismo parece ter começado quando ele ainda era vivo. Defenso res de seus primeiros trabalhos, co mo Ezra Pound e W. B. Yeats, se transformaram em detratores, e a reputação de Tagore afundou, fora de seu país, em relativamente pouco tempo.
Sen se estende sobre a impossibili dade de traduzir o trabalho de Tago re, mas argumenta que isso era ape nas parte do problema. Yeats, Pound e outros denunciaram Tago re porque não foram capazes, depois de algum tempo, de enquadrá-lo sob o exótico rótulo oriental ao qual o haviam reduzido. Queriam um mís tico, um sábio, e nem chegaram a perceber em Tagore o pensador ra cionalista, humanista e liberal.
O segundo ensaio trata do cinema de Satyajit Ray [1921-1992], um dos mais importantes cineastas india nos. Ray, cujo filme de estréia, "Pa ther Panchali" [Canção da Pequena Estrada], celebra seu jubileu de ouro neste ano e perdura em termos de importância, relevância e poder ci nematográfico, era mais que apenas um cineasta. Tratava-se também de um escritor, artista e compositor ex traordinariamente talentoso, capaz de se mover sem grandes solavancos entre o mundo das músicas clássicas ocidental e indiana.
Embora seus filmes tenham con quistado muitos prêmios nos festi vais de Cannes, Veneza e Berlim, ele jamais tentou fazê-los retratar uma noção preconcebida do Oriente. São trabalhos autenticamente indianos, enraizados na província da qual ele se origina (Bengala) e indisputavel mente excelentes.
Sen argumenta que Ray conseguiu essa síntese ao se aproveitar da tradi ção heterodoxa da Índia; ele estava sempre disposto a aprender com ou tras culturas e era capaz de combi nar esse conhecimento com aquele de que estava imbuído em função de suas próprias referências culturais.
"Em nossa heterogeneidade e aber tura reside o nosso orgulho, não a nossa desgraça. Satyajit Ray nos en sinou isso, e a lição é profundamente importante para a Índia. E para a Ásia e o mundo."
Trata-se de um livro que precisava ser escrito. A percepção da índia pe lo Ocidente e, de fato, entre os india nos mesmos, jamais foi mais amorfa do que agora. "The Argumentative Indian" oferecerá uma nova dimen são e perspectiva para essa percep ção. Não seria surpresa que viesse a se tornar um trabalho tão influente e definitivo quanto "Orientalismo", de Edward Said.


The Argumentative Indian (O Indiano Argumentativo)
432 págs., 25 libras - R$ 105 de Amartya Sen. Ed. Allen Lane (Inglaterra)

Onde encomendar Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) ou no site
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