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Para John Gray, professor da London School of Economics, a crença no progresso é a versão secularizada do
cristianismo, e a Al Qaeda é "subproduto da modernidade", como foram as "religiões políticas" do século 20
A CAIXA DE PANDORA
As religiões políticas, que tantos estragos causaram no século 20, eram versões laicas da promessa cristã de salvação universal
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PABLO E. CHACÓN
Para John Gray, 57, a ciência e
a fé no progresso são como
religiões secularizadas contemporâneas, e nisso sua lógica se aproxima daquela da rede terrorista Al Qaeda, que também acredita na existência de um sentido para a história.
"É evidente que a Al Qaeda não é a
volta dos trogloditas. Ela é um subproduto da modernidade tardia, e
eu não tenho tanta certeza de que
sua rede de franquias esteja em decadência. Ocorre apenas que seus
inimigos agora estão de sobreaviso",
afirma o professor de pensamento
europeu da London School of Economics, quando chamado a comentar os ataques a Londres.
Ele critica a crença no progresso,
marca da modernidade, apontando
sua inexistência em outros sistemas
de pensamento fora do mundo ocidental ou anteriores ao século 19.
"Minha posição é um pouco a de
Freud: sim ao progresso, mas dando
como certo que a morte continua a
fazer o seu trabalho, e que esse trabalho excede a esfera da moral", declara. "A fé no progresso é filha de um
casamento celebrado na Europa, no
início do século 19, entre a influência
declinante do cristianismo e o poder
crescente da ciência. Das esperanças
escatológicas do cristianismo herdamos a crença de que a história pode
oferecer não apenas sentido, mas a
própria salvação. É uma versão laica
da escatologia cristã."
Daí, na recusa das redenções ilusórias (seja Deus, seja o conhecimento), o elogio ao paganismo. "É que o
paganismo se destacou pela modéstia de suas esperanças. Para Marco
Aurélio e Epicuro, a boa vida é sempre privilégio de poucos; não existia
a idéia de salvação da humanidade."
A seguir, trechos da entrevista.
Pergunta - Em "Straw Dogs", o sr.
questiona a idéia de progresso que há
200 anos tem organizado o imaginário ocidental. Existem alternativas?
John Gray - Não sou avesso ao progresso, mas também não sou benevolente. Se, por um lado, é verdade
que cem anos atrás a expectativa de
vida era menor que a atual, também
é verdade que hoje os sistemas de
saúde estão à beira do colapso, que o
mundo é mais perigoso e que o tão
alardeado progresso não chegou a
todos.
Sou um crítico de certa idéia do
progresso, não do progresso em si
mesmo. Sou crítico de uma visão
não-política do progresso. Dito de
outro modo, minha posição é um
pouco como a de Freud: sim ao progresso, mas dando como certo que a
morte continua a fazer o seu trabalho e que esse trabalho excede a esfera da moral.
Pergunta - Como assim?
Gray - A questão não é tanto a fé
inabalável no progresso, mas o terror perante a idéia de renunciar a essa fé. A idéia de progresso inclui a
crença de que o avanço das ciências
se reproduz nas esferas moral e política. O raciocínio, que eu refuto, é o
seguinte: os conhecimentos científicos são acumulativos; hoje sabemos
mais que qualquer geração precedente; não há limites no futuro, portanto podemos melhorar a condição
humana ilimitadamente. Embora
essa convicção tenha cerca de 200
anos, agora ela se tornou imprescindível.
Pergunta - Isso é um problema?
Gray - Olhe, refutar a idéia de progresso pode parecer um absurdo,
mas se trata de uma noção que você
não encontra em nenhuma religião e
que os filósofos da antigüidade desconheciam. Para Aristóteles, a história era uma série de processos de
crescimento e decadência. Maquiavel compartilhava esse ponto de vista. David Hume pensava que a história era cíclica, com períodos de paz e
liberdade seguidos, a intervalos regulares, de guerras e ditaduras.
Nenhum deles duvidava de que
certos momentos da história eram
melhores que outros. Não acreditavam haver progresso na moral e na
política, mas uma alternância de
perdas e ganhos.
Pergunta - Quais as conseqüências
políticas desse argumento?
Gray - Primeiro, um enfraquecimento da ciência como religião secularizada contemporânea. A fé cega no poder da ciência também levou a reengenharias sociais atrozes,
como o nazismo, entre outras. É inegável que se busca no progresso
aquilo que os deístas encontravam
na providência: a certeza de que a
história não carece de sentido. Os
defensores do progresso insistem
em que ele é comprovado pela história. E se agarram a isso para acreditar que a história é algo além de uma
fábula contada por um idiota.
Pergunta - Se a história for algo
além disso, mas impossível de ser
pensado, não haveria aí um risco iminente?
Gray - Claro que sim. O perigo
maior, hoje em dia, resulta da interação do conhecimento com as necessidades humanas, que são invariáveis. A proliferação das armas de
destruição em massa é uma resposta
a conflitos políticos insolúveis, mas é
também um efeito colateral da difusão do conhecimento. A ciência permitiu elevar a qualidade de vida nas
sociedades industriais avançadas,
mas a industrialização está dando
lugar a uma luta criminosa pelo controle dos recursos naturais, que pode estar apenas começando.
Pergunta - E então?
Gray - Então, embora a ciência traga conhecimento, o conhecimento
não constitui um bem em estado puro, podendo ser também uma maldição. Isso em grande parte contraria a filosofia ocidental, fundada na
crença de que conhecimento e virtude vão de mãos dadas.
Mas nem sempre foi assim: segundo o relato bíblico, a queda de Adão
é conseqüência de provar do fruto
da árvore do conhecimento. A mitologia grega oferece a mesma lição
quando retrata Prometeu acorrentado ao rochedo por ter roubado o fogo dos deuses. O poder desses mitos
parece vir da percepção de que a humanidade não pode voltar atrás;
contrariando Rousseau e os ecologistas atuais, é impossível retornar
para onde nunca estivemos: tendo
comido da árvore da ciência, devemos arcar com as conseqüências.
Pergunta - Como fazer isso?
Gray - Penso que uma resposta pode estar na própria história. A fé no
progresso é filha de um casamento
celebrado na Europa, no início do
século 19, entre a influência declinante do cristianismo e o poder
crescente da ciência. Das esperanças
escatológicas do cristianismo herdamos a crença de que a história pode
oferecer não apenas sentido, mas a
própria salvação. É uma versão laica
da escatologia cristã. Para o cristianismo, a história não pode carecer
de sentido: trata-se de um drama
moral que se inicia com a rebelião
contra Deus e termina com o Juízo
Final.
As religiões políticas, que tantos
estragos causaram no século 20,
eram versões laicas da promessa
cristã de salvação universal. Em um
mundo desprovido de esperanças
políticas transcendentes, a violência
é quase uma sina.
Pergunta - A situação não parece ter
mudado em função dos recentes atentados em Londres?
Gray - Penso que é preciso estudar
o papel da escatologia nos movimentos políticos modernos. Entre
os filósofos analíticos, é uma questão
de honra profissional ignorar a religião, enquanto as ciências sociais
continuam dominadas por teorias
de secularização destronadas há
mais de cem anos pela psicanálise.
Mesmo assim, a relação entre a escatologia e os movimentos revolucionários modernos não passou totalmente despercebida. Ela é o tema
central dos livros de Norman Cohn:
o mundo antigo chega ao fim e dá lugar ao novo, sem as falhas do passado. Foi essa mesma fantasia que embalou Francis Fukuyama ao anunciar o fim da história.
É evidente que a Al Qaeda não é a
volta dos trogloditas. Ela é um subproduto da modernidade tardia, e
eu não tenho tanta certeza de que
sua rede de franquias esteja em decadência. Ocorre apenas que seus inimigos agora estão de sobreaviso.
Pergunta - Em seu livro há uma espécie de elogio da sabedoria taoísta,
do zen, do epicurismo.
Gray - É que o paganismo se destacou pela modéstia de suas esperanças. Para Marco Aurélio e Epicuro, a
boa vida é sempre privilégio de poucos; não existia a idéia de salvação da
humanidade. O taoísmo tem um lado mais democrático: trata-se de um
saber fazer, de saber como e quando,
e se o esforço se justifica. É a dança
da chuva, o movimento das marés.
Somos homens de palha: não por
acaso Prometeu nasceu no Ocidente
e nunca acaba de morrer.
Esta entrevista foi publicada originalmente
no "Clarín".
Tradução de Sérgio Molina.
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