São Paulo, domingo, 07 de agosto de 2005

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Para John Gray, professor da London School of Economics, a crença no progresso é a versão secularizada do cristianismo, e a Al Qaeda é "subproduto da modernidade", como foram as "religiões políticas" do século 20

A CAIXA DE PANDORA


As religiões políticas, que tantos estragos causaram no século 20, eram versões laicas da promessa cristã de salvação universal
PABLO E. CHACÓN

Para John Gray, 57, a ciência e a fé no progresso são como religiões secularizadas contemporâneas, e nisso sua lógica se aproxima daquela da rede terrorista Al Qaeda, que também acredita na existência de um sentido para a história.
"É evidente que a Al Qaeda não é a volta dos trogloditas. Ela é um subproduto da modernidade tardia, e eu não tenho tanta certeza de que sua rede de franquias esteja em decadência. Ocorre apenas que seus inimigos agora estão de sobreaviso", afirma o professor de pensamento europeu da London School of Economics, quando chamado a comentar os ataques a Londres.
Ele critica a crença no progresso, marca da modernidade, apontando sua inexistência em outros sistemas de pensamento fora do mundo ocidental ou anteriores ao século 19.
"Minha posição é um pouco a de Freud: sim ao progresso, mas dando como certo que a morte continua a fazer o seu trabalho, e que esse trabalho excede a esfera da moral", declara. "A fé no progresso é filha de um casamento celebrado na Europa, no início do século 19, entre a influência declinante do cristianismo e o poder crescente da ciência. Das esperanças escatológicas do cristianismo herdamos a crença de que a história pode oferecer não apenas sentido, mas a própria salvação. É uma versão laica da escatologia cristã."
Daí, na recusa das redenções ilusórias (seja Deus, seja o conhecimento), o elogio ao paganismo. "É que o paganismo se destacou pela modéstia de suas esperanças. Para Marco Aurélio e Epicuro, a boa vida é sempre privilégio de poucos; não existia a idéia de salvação da humanidade."
A seguir, trechos da entrevista.

Pergunta - Em "Straw Dogs", o sr. questiona a idéia de progresso que há 200 anos tem organizado o imaginário ocidental. Existem alternativas?
John Gray -
Não sou avesso ao progresso, mas também não sou benevolente. Se, por um lado, é verdade que cem anos atrás a expectativa de vida era menor que a atual, também é verdade que hoje os sistemas de saúde estão à beira do colapso, que o mundo é mais perigoso e que o tão alardeado progresso não chegou a todos.
Sou um crítico de certa idéia do progresso, não do progresso em si mesmo. Sou crítico de uma visão não-política do progresso. Dito de outro modo, minha posição é um pouco como a de Freud: sim ao progresso, mas dando como certo que a morte continua a fazer o seu trabalho e que esse trabalho excede a esfera da moral.

Pergunta - Como assim?
Gray -
A questão não é tanto a fé inabalável no progresso, mas o terror perante a idéia de renunciar a essa fé. A idéia de progresso inclui a crença de que o avanço das ciências se reproduz nas esferas moral e política. O raciocínio, que eu refuto, é o seguinte: os conhecimentos científicos são acumulativos; hoje sabemos mais que qualquer geração precedente; não há limites no futuro, portanto podemos melhorar a condição humana ilimitadamente. Embora essa convicção tenha cerca de 200 anos, agora ela se tornou imprescindível.

Pergunta - Isso é um problema?
Gray -
Olhe, refutar a idéia de progresso pode parecer um absurdo, mas se trata de uma noção que você não encontra em nenhuma religião e que os filósofos da antigüidade desconheciam. Para Aristóteles, a história era uma série de processos de crescimento e decadência. Maquiavel compartilhava esse ponto de vista. David Hume pensava que a história era cíclica, com períodos de paz e liberdade seguidos, a intervalos regulares, de guerras e ditaduras.
Nenhum deles duvidava de que certos momentos da história eram melhores que outros. Não acreditavam haver progresso na moral e na política, mas uma alternância de perdas e ganhos.

Pergunta - Quais as conseqüências políticas desse argumento?
Gray -
Primeiro, um enfraquecimento da ciência como religião secularizada contemporânea. A fé cega no poder da ciência também levou a reengenharias sociais atrozes, como o nazismo, entre outras. É inegável que se busca no progresso aquilo que os deístas encontravam na providência: a certeza de que a história não carece de sentido. Os defensores do progresso insistem em que ele é comprovado pela história. E se agarram a isso para acreditar que a história é algo além de uma fábula contada por um idiota.

Pergunta - Se a história for algo além disso, mas impossível de ser pensado, não haveria aí um risco iminente?
Gray -
Claro que sim. O perigo maior, hoje em dia, resulta da interação do conhecimento com as necessidades humanas, que são invariáveis. A proliferação das armas de destruição em massa é uma resposta a conflitos políticos insolúveis, mas é também um efeito colateral da difusão do conhecimento. A ciência permitiu elevar a qualidade de vida nas sociedades industriais avançadas, mas a industrialização está dando lugar a uma luta criminosa pelo controle dos recursos naturais, que pode estar apenas começando.

Pergunta - E então?
Gray -
Então, embora a ciência traga conhecimento, o conhecimento não constitui um bem em estado puro, podendo ser também uma maldição. Isso em grande parte contraria a filosofia ocidental, fundada na crença de que conhecimento e virtude vão de mãos dadas.
Mas nem sempre foi assim: segundo o relato bíblico, a queda de Adão é conseqüência de provar do fruto da árvore do conhecimento. A mitologia grega oferece a mesma lição quando retrata Prometeu acorrentado ao rochedo por ter roubado o fogo dos deuses. O poder desses mitos parece vir da percepção de que a humanidade não pode voltar atrás; contrariando Rousseau e os ecologistas atuais, é impossível retornar para onde nunca estivemos: tendo comido da árvore da ciência, devemos arcar com as conseqüências.

Pergunta - Como fazer isso?
Gray -
Penso que uma resposta pode estar na própria história. A fé no progresso é filha de um casamento celebrado na Europa, no início do século 19, entre a influência declinante do cristianismo e o poder crescente da ciência. Das esperanças escatológicas do cristianismo herdamos a crença de que a história pode oferecer não apenas sentido, mas a própria salvação. É uma versão laica da escatologia cristã. Para o cristianismo, a história não pode carecer de sentido: trata-se de um drama moral que se inicia com a rebelião contra Deus e termina com o Juízo Final.
As religiões políticas, que tantos estragos causaram no século 20, eram versões laicas da promessa cristã de salvação universal. Em um mundo desprovido de esperanças políticas transcendentes, a violência é quase uma sina.

Pergunta - A situação não parece ter mudado em função dos recentes atentados em Londres?
Gray -
Penso que é preciso estudar o papel da escatologia nos movimentos políticos modernos. Entre os filósofos analíticos, é uma questão de honra profissional ignorar a religião, enquanto as ciências sociais continuam dominadas por teorias de secularização destronadas há mais de cem anos pela psicanálise.
Mesmo assim, a relação entre a escatologia e os movimentos revolucionários modernos não passou totalmente despercebida. Ela é o tema central dos livros de Norman Cohn: o mundo antigo chega ao fim e dá lugar ao novo, sem as falhas do passado. Foi essa mesma fantasia que embalou Francis Fukuyama ao anunciar o fim da história.
É evidente que a Al Qaeda não é a volta dos trogloditas. Ela é um subproduto da modernidade tardia, e eu não tenho tanta certeza de que sua rede de franquias esteja em decadência. Ocorre apenas que seus inimigos agora estão de sobreaviso.

Pergunta - Em seu livro há uma espécie de elogio da sabedoria taoísta, do zen, do epicurismo.
Gray -
É que o paganismo se destacou pela modéstia de suas esperanças. Para Marco Aurélio e Epicuro, a boa vida é sempre privilégio de poucos; não existia a idéia de salvação da humanidade. O taoísmo tem um lado mais democrático: trata-se de um saber fazer, de saber como e quando, e se o esforço se justifica. É a dança da chuva, o movimento das marés. Somos homens de palha: não por acaso Prometeu nasceu no Ocidente e nunca acaba de morrer.


Esta entrevista foi publicada originalmente no "Clarín".
Tradução de Sérgio Molina.


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