São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2008

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Ponto de fuga

O senhor do anel


O ciclo "O Anel do Nibelungo", no festival de Bayreuth, foi uma lição de como os resultados da ópera podem surpreender: a arquiban-cada dura, o calor do verão na sala não refrigerada tornaram-se crueldade desumana

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Assistir a uma ópera pode arrebatar ou se transformar numa sessão de tortura. Dá certo, ou não, sem que a qualidade dos intérpretes explique tudo.
O ciclo "O Anel do Nibelungo", de Richard Wagner, apresentado no Festival de Bayreuth [Alemanha] deste ano, foi uma lição de como os resultados podem surpreender.
Trata-se de quatro representações em quatro dias. O prólogo é "O Ouro do Reno". Abriu-se com um cenário prodigioso: o fundo do rio parecia estar ali, no palco. Mas a regência de Christian Thielemann, sem relevo, eliminou todo o fascínio.
"O Ouro do Reno" é breve para os critérios da lentidão wagneriana: tem um ato só que demora... duas horas e 35 minutos. A arquibancada dura, o calor do verão na sala não refrigerada tornaram-se crueldade desumana.
"A Valquíria", ópera seguinte, teve Eva-Maria Westbroek, cantora excepcional e comovente no papel de Sieglinde.
Mas eis que surge Linda Watson como Brünnhilde, a valquíria do título. Ela tem o físico que de hábito se atribui às cantoras de ópera. Forçou a voz, desafinou: terrível.
Depois, no terceiro dia, vem "Siegfried". Calamidade. O tenor Stephen Gould, o herói, rivalizava com os defeitos de Brünnhilde.
Assim, o medo diante das quase cinco horas que dura "O Crepúsculo dos Deuses" era grande. Pois bem, nessa última ópera do ciclo, tudo mudou: Linda Watson estava transfigurada e parecia outra cantora.
Enfrentou seu terrível papel como uma grande intérprete.
Sua aparência não importava mais. O tenor, Stephen Gould, se não atingiu o mesmo nível, controlou a voz e defendeu-se com honra. A orquestra deixou sua apatia e se entusiasmou, admirável.
Ópera é um gênero cheio de mistérios.

Painel
Tankred Dorst, diretor de teatro alemão, foi responsável pela montagem de "O Anel do Nibelungo" em Bayreuth. Nos cenários mágicos de Frank Philipp Schlössman, imaginou que a história contada por Wagner, cheia de deuses, gnomos, dragões, anéis e espadas mágicas, se passasse num universo paralelo. A parede de uma usina contemporânea se abria para revelar a caverna dos nibelungos e o primeiro ato de "Siegfried" transcorreu numa escola abandonada.

Incógnitas
Tankred Dorst não resistiu a bizantinismos enigmáticos. Encheu o palácio de Gunther com sapatos femininos, fez correr um personagem vestido de galo no meio da cena, e o Valhala, morada dos deuses, era representado por um olho.

Cio
Ópera é feita, sobretudo, de crimes, violência, erotismo, obsessões, crueldades. Por isso mesmo tem muito em comum com o cinema chamado de "terror", normalmente desprezado por pessoas cultas.
O teatro estatal da Ópera de Munique apresentou "Salomé", composta por Richard Strauss sobre o texto de Oscar Wilde, que é saturado de devassidões, luxos e horrores.
O maestro Kent Nagano extraiu da orquestra os sons mais voluptuosos.
Numa associação aparentemente insólita, William Friedkin, diretor de cinema, autor do célebre "O Exorcista", fez a montagem. Ele a inscreveu num hall moderno e frio, como o de certos bancos ou aeroportos. Por vezes, no chão liso rasgava-se uma ravina: era a prisão do profeta.
Angela Denoke, esplêndida em seu canto, muito sedutora, apresentou-se num vestido contemporâneo, longo e negro.
Quando termina a dança dos sete véus, expõe seus seios a Herodes e ao público. Beija, erótica, a cabeça cortada de João Batista. No final, em vez de ser esmagada pelos escudos, como manda o libreto, é, ela também, decapitada.


jorgecoli@uol.com.br


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